Portugal vive inundado de cultura anglo-saxónica, repetindo talvez a obsessão da nossa elite, há um século, por tudo o que soava em francês. Devido à uniformização do gosto, temos deixado para segundo plano russos, escandinavos e centro-europeus em geral, mas também os brasileiros, o que talvez explique a relutância nacional em ler bons contos.
Nas línguas exóticas da Europa Central, o húngaro é particularmente impenetrável. E é pena, porque um dos seus escritores, Dezsö Kosztolanyi, é sem dúvida um dos maiores autores europeus do século XX.
Há um livro seu disponível, Cotovia, magistralmente traduzido do húngaro por Ernesto Rodrigues. O volume, da D. Quixote, encontra-se ainda nas feiras e livrarias e julgo que este romance atinge o patamar de perfeição de autores consagrados da mesma região, como Joseph Roth ou Robert Musil. Se o encontrarem em saldos, não hesitem. É a história de um casal de pequenos aristocratas cuja filha foi viajar. Eles não sabem o que fazer naqueles dia e os leitores acompanham-nos na sua redescoberta dos prazeres, mas também da constatação da velhice, decadência, solidão e vida provinciana. A cidade é inspirada na terra natal do escritor, Sabadka, hoje Subotica, na Sérvia. E a leitura deste livro repleto de humor e poesia permite compreender muito melhor o que aconteceu de terrível na Europa Central no último século.
Contemporâneo de Musil e de Fernando Pessoa (três anos mais velho do que o poeta português, sobreviveu-lhe um ano) Kosztolanyi era sobretudo poeta, mas tem obra em prosa, com quatro romances importantes e dezenas de notáveis contos. Era primo de um escritor brilhante, Csath Géza, cuja vida dava um filme; foi também um dos fundadores da revista modernista Nyugat (Ocidente) e amigo de outro escritor de enorme originalidade, Gyula Krudy, um impressionista que inventou um estilo a que hoje se chama "realismo mágico". Krudy é figura ímpar e personagem quase inacreditável da história da literatura da Europa Central.
Vem este post a propósito de um conto de Kosztolanyi que encontrei numa colectânea de contos húngaros de 1941, da editora Gleba, onde constam alguns dos autores então conhecidos. Certamente traduzido do francês, pois o nome do escritor surge como Desirée Kosztolanyi.
O conto, O Meu Caminho, é uma jóia de humor. Muito curto, está dividido em nove pequenos fragmentos onde se conta a história de um homem, o narrador, que tenta conquistar o seu lugar num eléctrico repleto. Num dia muito frio vemos o eléctrico a sair do nevoeiro; "está cheio", dizem lá de dentro, mas o homem decide entrar, com o pé no estribo e o perigo de cair e de morrer; ele sente o desprezo dos que estão no interior e que desejam a sua queda; mas o narrador consegue conquistar um espaço na plataforma, no meio da multidão; agarra-se a uma correia, já despreza os que estão pendurados; conquista uma posição ainda melhor perdendo dois botões do sobretudo; perde também a mulher da sua vida, ao não desistir da luta; finalmente, está no interior, avança para um lugar sentado. Vejam este trecho, com o esplendor da precisão do poeta: "Os que estavam sentados, à minha volta, eram burgueses abomináveis. Apertavam aos corpos as suas espessas peliças, fortalecidos pelos direitos que adquiriram e de que não queriam ceder a menor parcela. Contentava-me com o que se me tinha dado. Fingia não reparar no seu orgulho mesquinho. Conduzia-me como um saco. Sabia bem que os homens, por instinto, odeiam os outros homens e que perdoam mais facilmente a um saco que a um dos seus semelhantes".
Não conto o resto da história, mas dá para adivinhar: ele conquista um lugar sentado à janela, símbolo do triunfo na luta diária pela impiedosa ascensão social.
Imagem: a senhora Kosztolanyi e o filho Adam, em 1923, num quadro do pintor húngaro Vilmos Aba-Novák
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