domingo, 30 de janeiro de 2011

Calisto Marcelino

Desde as 9h15 que o seu pessoal o esperava para a primeira reunião após a notícia da nomeação. Mas o hábito de começar o dia a meio do dito não cede assim ao sabor dos despachos ministeriais. E eram 11h50 quando Calisto irrompe pela porta do gabinete alcatifado. Nesse momento já o concílio ia avançado na discussão de estratégias de base, mas para o nomeado a prioridade era outra:
- "Doutor Calisto Marcelino"... Não... "Doutor Covas de Marcelino"... "Doutor Calisto Covas"... Não, nem pensar. Atenção, atenção! - O homem raciocina à custa de uma estonteante e ininterrupta, quase desesperada, alternância de pequenos passos de avanço e recuo. Olha em redor para o pequeno grupo de pessoas distribuído informalmente pelo gabinete. - Ordem na sala, por favor.
Calisto Covas de Marcelino não estava nervoso, apenas medianamente eufórico. Anos de espera, acabado de dobrar os quarenta, e ei-lo que finalmente subia mais um degrau na hierarquia do poder público. Começara como jovem idealista da ecologia, mas rapidamente se submetera ao dinheiro fácil, às concessões aos interesses económicos e à vaidade pela fama. Com o primeiro montara uma empresa de consultoria em projectos ambientais, estudos de impacte, planos de ordenamento territorial e afins, que geria a par das suas funções como técnico superior do estado. Comentava-se que lhe chegavam às mãos projetos de clientes seus da privada, sobre os quais lhe competia emitir parecer técnico imparcial, situação nada incomum na nossa administração. Mas o importante era estarem-lhe reconhecidas capacidade de trabalho e força empreendedora, qualidades que se aleavam à sua tendência bajuladora para lhe granjearem um estado de graça inicial nas suas várias tentativas de carreira na função pública. Destas, algumas abruptamente interrompidas por um intriguismo compulsivo, retirava ele três novos items para a caixinha das experiências da vida: mais amizades femininas, mais oportunidades de euros não declaráveis e mais ocasiões para fingir bom perder. Mas a presente nomeação fazia tudo isso valer a pena.
- Atenção, pessoal, que isto é importante: é o nome pelo qual o país me vai conhecer daqui para a frente! - Abre os braços em demanda de atenção: - É um nome de guerra. Tem de soar bem, sobretudo soar e ressoar nos media. A aparência, só, não chega. Vocês têm consciência de como esta nomeação me aproxima da meta de secretário de estado, certo? Isto não é só para mim: subo eu, subimos todos. O país precisa de sangue novo, fresco, pá - Vira-se urgente para a assessora: - E eu preciso de dois apelidos. Estela, dois apelidos! Toda a gente que se preza faz-se apresentar por dois apelidos. O tempo dos José Matias e dos Carlos Sousa já foi.
Perpassa pelos belos olhos azuis de Estela Arnaud, desde a primeira hora contactada para assessora de imagem, um laivo de troça:
- Ó chefe, você perdoe-me, mas esse apelido da família da sua mãe não lembra ao diabo. De todo! "Covas", acha isto normal?
Nem todo o espírito de conveniência em agradar a um recém-nomeado pelo ministro da tutela evita o reverberar de risos na sala. Toma a palavra o assessor número dois, Urbano Martins, recrutado à pressa dos tempos da faculdade:
- E é que o teu nome próprio também não ajuda nada, pá, agora a sério!
Calisto sente a exasperação a subir e abre os braços como quem vai parar uma locomotiva. Afasta a franjinha, tique antigo.
- Agora que já se divertiram, posso contar com alguma destreza mental para me avançarem com uma solução? "Calisto" vem do fascínio da minha mãe pela história grega."Covas" é outra história antiga de um bisavô meu que... Eh pá, mas já nos estamos a desviar do assunto!
Os presentes entreolham-se. Com a matéria-prima disponível, será difícil parir um nome apresentável. E é o que lhe transmitem. E também que o nome, apesar de tudo, não se revela assim tão determinante no sucesso e no respeito ao detentor de um cargo público. É mais relevante uma certa atitude e... Calisto impacienta-se:
- Eh pá, calma! Eu quero fazer as coisas bem feitas. E se... Inventa-se um apelido do meio! Ávila, por exemplo. Quem é que vai saber se é verdadeiro ou não? - Alonga o olhar pelo poster com o delta do Nilo e ensaia: - Ávila Marcelino... "O doutor Calisto Ávila Marcelino será..."
- Ó chefe, isso não é possível! De todo! - Estela entesa-se no sofá de couro, com um sorriso desajeitado. - Ai eu vou fingir que não ouvi isto! Então na nomeação do diário da república já aparece o seu nome completo, é obrigatório. Vem aqui, olhe...
Num saudável gesto de curiosidade, o novo director arranca o exemplar da mão da colaboradora, deixando-se cair na cadeira de design moderno em pele e cromados. Afasta a franjinha. Arregaça as mangas da camisa como se o esperasse uma tarefa árdua. Está habituado a moldar a realidade à sua maneira, a cozinhar conveniências, a fabricar as verdades. Desagradam-lhe estes pequenos reveses logo na primeira manhã. E lê na olíqua, voz a meia haste, o conteúdo da nomeação:
- "Diário da República, 1.ª série, decerto-lei de 2009, 13 de Fevereiro, hmm tal tal, hmm, é nomeado, pelas suas notáveis qualidades de organização, capacidade de trabalho, ah!, experiência e bom relacionamento interpessoal, ah!, hmmm, etc etc, o licenciado Calisto-Covas-de-Marcelino, pois, cá está a porra, técnico superior do quadro deste ministério, sim sim sim sim, para provir o lugar de director da equipa técnica e de gestão da Paisagem Natural do Lago de Simboa, exacto, sim senhor, tal tal, este despacho entra em vigor no dia útil imediato ao da sua publicação, isso já sabe, assim e assado, o ministro do ambiente, recursos naturais e território ordenado, fulano..
Sopra ruidosamente, como que para afastar as evidências. O nome que lhe destinaram à nascença parece agora um beco sem saída repleto de ironias.
Vale-lhe o assessor, cheio de bom-senso:
- Calisto, o que não tem remédio é para esquecer. Depois estudamos umas manobras de marketing para compensar essa infeliz composição. - Contorcem-se-lhe as vísceras por baixo da camisa de popelina azul-clara, mas mantém a postura: - Fica Covas Marcelino, pronto. Sai assim no press-release e serve para os jornalistas à porta da cerimónia da tomada de posse. Alegra-te por não seres Covas Silva ou...
- ... ou Pereira... - participa Estela, já embrenhada no próximo ponto da agenda.
- ... ou Covas Lopes... - adianta a secretária, que ainda não entrara activamente na cena.
- ... ou Cov... - recomeça o assessor.
- Eh pá, vão à merda!
Felizmente nomeado mas infelizmente denominado, Calisto sai porta fora. Intempestivo e rosado, com a indiferença da secretária, para divertimento do assessor e apesar de Estela, inconformada:
- Urbano, você acha isto normal?!

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Escrita jornalística


Muitas pessoas pensam que a literatura tem semelhanças à escrita de jornal, mas julgo que as diferenças são imensas.
O jornalismo é uma amálgama de pontos de vista e tenta chegar a uma visão do mundo.
A literatura é geralmente um ponto de vista que tenta alcançar a essência do mundo.
A verdade embelezada ou distorcida não cabe no jornalismo, o qual não suporta o mínimo desvio dos factos. A literatura é exactamente o inverso e não tolera a cópia noticiosa da realidade.
Escrever num jornal equivale a aplicar uma técnica simples; aliás, a simplicidade é requerida. Jornalismo é trabalho oficinal, para operários da palavra que funcionam em equipa e hierarquia; o texto jornalístico relata-nos a experiência efémera, com tempo marcado e em linguagem que estimula o lugar-comum, a trivialidade e até a forma burocrática. Apesar de tudo, o jornal devia ser como a aula de pintura perante o seu modelo, nunca havendo dois relatos iguais. 

A literatura é solitária, incómoda, de preferência incompreendida. Pode ser mais livre no vocabulário, mas também na forma, no ritmo e na autenticidade subjectiva do texto. A verdade está na aproximação ao real, mas não na sua reprodução fiel. O texto literário está cheio de emoções e não tem função, não pretende ensinar nem convencer. Muito menos informar.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Promessa 1 - A Romã Aberta

Ainda aqui hei-de escrever, com tempo que agora não tenho, sobre certa romã, de sorriso escancarado, vermelho apodrecendo ao sol. Romãs assim têm nome de gente. Gente vivendo encostada ao conforto das palavras vazias, agindo diariamente no campo oposto aos seus próprios ideiais: cérebro vs. coração, teoria vs. prática, aparência vs. genuinidade - duas metades separadas da romã aberta ao meio, exposta à desintegração. E das pessoas-romã emana essa baixa vibração de vitalidade desperdiçada, de alma desagregada de si própria.
Bonito de ver é a romã inteira luzindo à luz do dia, ou as suas bagas brilhantes distribuídas ao acaso sobre mesas, pratos e saladas.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Lançamento a 7 de Fevereiro


Já aqui anunciei que a partir de 5 de Fevereiro estará nas livrarias o meu novo romance, Jardim Botânico, publicado pela Quetzal. O lançamento está marcado para dia 7 de Fevereiro, às 18 e 30, na livraria Bertrand do Chiado, em Lisboa. A apresentação será feita por Pedro Mexia. Lá esperarei todos os leitores de Emoções Básicas.
Este é o meu quinto livro publicado. Alguns dos anteriores já não estão disponíveis, como é o caso do primeiro.
Quanto a Jardim Botânico, tem por cenário a perturbação político-militar na Guiné-Bissau em 1998.

Deixo dois excertos:
"A planície torrava ao sol e parecia não ter fim. A travessia durava há sete horas. A estrada desenhava uma longa linha recta sobre a paisagem semidesértica. O chão árido fora pincelado em tons de castanho e ocre. Daniel via as árvores secas, solitárias no meio de campos ocos, arbustos espinhosos que formavam fileiras contra o vento áspero e algumas ervas sôfregas, queimadas, que sobreviviam entre as pedras. A atmosfera era uma lente a distorcer o movimento preguiçoso dos rebanhos de cabras magras"(...)

E. muito mais à frente:
"O cadáver jazia no meio da estrada, formando à sua volta uma mancha de líquidos que tinham escurecido a terra. Sobre o corpo, o tecido de uma farda, que perdera a cor; e o calor chupara a carne, até não restar mais do que uma superfície lisa e seca, que parecia feita de plástico ou de algum material artificial, meio transparente ou pouco compacto. A pele mantinha um tom róseo, mas havia grandes zonas brancas, o que a princípio pareciam ser ossos a despontar entre aquela massa esmaecida; mas não era isso, antes uma substância leitosa, talvez um manto de bactérias"

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

As fotografias perdidas de Mary Poppins


Não sei se esta é uma história triste ou uma história bela. Talvez a tristeza e a beleza possam andar de mãos dadas, como acontece na vida e obra de uma mulher misteriosa, Vivian Maier, cuja figura tem de ser imaginada. Era uma mulher muito simpática, dizem os que a conheceram. E toda a gente se encantava com a sua bondade natural. Os que na altura eram crianças e tiveram a sorte de se cruzar com ela, recordam uma espécie de Mary Poppins; e quem viu o filme terá de sorrir.
Sabe-se que nasceu em 1926, em Nova Iorque. Que regressou à grande cidade depois da II Guerra Mundial e que viveu bastante tempo em França, embora ninguém saiba o que ali fez. Estaria por lá durante a guerra? Mas como era isso possível?
Enfim, temos de preencher um enorme vazio, imaginar.
Quando regressou a Nova Iorque e Chicago, Vivian trabalhava como educadora infantil e usava sotaque francês, o que me parece um detalhe delicioso. Seria snobismo? Mas isso não joga com o resto. Prefiro pensar que era excentricidade. Vivian (vivia) num mundo pessoal que não partilhou com ninguém, excepto nas aventuras que os petizes recordam ainda, daquela senhora que parecia Mary Poppins, e sobretudo nas fotografias amadoras, melancólicas e sentimentais, que por acaso se salvaram. Imagens cheias de ternura e de um olhar bondoso, de imperfeita simetria que é, afinal, a forma do próprio mundo humano. Mas as fotografias eram negativos que ela guardou até à velhice. Apenas negativos, que só ela sabia o que continham, e que se perderam.

As fotografias salvaram-se por mera sorte, leiloadas e encontradas na caótica acumulação de objectos inúteis em que se transformam todas as obras de arte, todos os rastos das nossas vidas, todas as lembranças daquilo que fomos.
Alguém reparou nelas: não foi momento de iluminação, apenas um processo, como se aquela visão, o mundo secreto de Vivian Maier só fizesse sentido após a revelação. As imagens tinham primeiro de ser transformadas. E só então se podia ver o mundo interior e secreto daquela mulher estranha.
A história que se conta tem ainda uma crueldade final: quando foi "descoberta", Vivian morrera três dias antes.
Ou talvez isto não seja exactamente cruel, apenas muito lógico e acertado. Vivian Maier nunca pretendeu ser "descoberta" ou que lhe interrompessem o silêncio. O seu mundo era tão belo e tão triste, que era só dela.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Aniversário


Encheu o copo de água tónica, deitou-lhe umas gotas de limão e umas folhas de hortelã. Gostava do aroma da hortelã, do travo doce diluído na água áspera, e experimentou a sensação intensa daquele sabor enquanto olhava as luzes trémulas da cidade, com o castelo iluminado, ao longe. Luzes ásperas e doces. Um sorriso iluminou-lhe o rosto por um breve instante, mas ela não se apercebeu disso. A solidão pesava-lhe mais nessa noite, como se fosse uma presença real. Pareceu-lhe que a envolvia, como um cobertor espesso, quase a sufocá-la.
A palavra desenhou-se-lhe no espírito e Sílvia sentiu um aperto súbito na garganta. O coração pulsou mais forte, teve um momento de medo. Controla-te, ordenou-se a si própria. Obedeceu. Desviou os olhos da janela e bebeu um gole refrescante, engolindo devagar, sentindo o líquido escorrer na garganta desimpedida. Respirou fundo. Raios, não vou ter para aqui um ataque de pânico qualquer. Isso é que seria muito ridículo.
Continuou a beber devagar. Fazia um ano que o Mário se tinha ido embora, mas isso não era motivo suficiente. No fim, as coisas até tinham corrido de forma tranquila. Mário era discreto, e ela só muito tarde soube dos nomes todos: Alice, Raquel, Maria, talvez outras mais. Lisa tinha sido a última: a gota de água. No último dia, ele tinha-lhe dado um beijo na face, quase lhe pedira desculpa, mas não chegou a fazê-lo. Não saberia de quê, ele era assim e pronto.
Uma separação exemplar, tinham dito os amigos de ambos, quase satisfeitos. Sílvia suspirou, observando as luzes da cidade, que cintilavam à sua frente, como um firmamento que tivesse tombado no solo. Tão perto e tão distante. Apetecia-lhe sair, mas não se levantou do sofá.
Olhava ainda as luzes quando, no silêncio da sala, o telemóvel pareceu acordar.
Era uma mensagem curta, de poucas palavras, mas o conteúdo pareceu-lhe misterioso, indecifrável. “Desculpa querida, amo-te tanto. Não volta a acontecer, prometo, Júlio”.
Júlio? O único Júlio que conhecia era aquele tio velhote de Braga, que tinha uma mercearia daquelas antigas, com os pacotes de arroz à mostra nas prateleiras e as moscas rondando os pratos de biscoitos sobre o balcão. Ainda seria vivo? Devia ser, se não alguém a teria avisado. A prima Geninha, teria dito qualquer coisa. Mas aquela mensagem não podia ser do tio Júlio.
A este pensamento, Sílvia deu uma pequena gargalhada. Era engano, só podia ser. Releu a mensagem, aquele apelo que parecia tão genuíno e sentido, e pensou que a querida daquele Júlio sem rosto não chegaria a ler aquelas palavras. E a essa hora, Júlio estaria ansioso, andando de um lado para o outro numa calçada qualquer da cidade, à espera de um sinal no seu telemóvel, à espera das palavras que anunciariam a reconciliação, e não podia saber que elas não chegariam nunca, porque a destinatária não recebera a sua mensagem.
Pobre Júlio. Que teria ele feito que exigia perdão e aquela promessa: não volta a acontecer?
Na verdade, não tinha nada a ver com isso. A mensagem chegara-lhe por um simples acidente, mas não conseguia deixar de pensar como um pequeno erro poderia mudar a vida daquelas duas pessoas, afastadas definitivamente uma da outra por causa de uma coisa tão ínfima e casual.
Então, numa decisão súbita, Sílvia pôs-se a teclar no telemóvel. Escreveu “Júlio, esta mensagem não era para mim. Boa sorte”, olhou para as palavras bem encadeadas, murmurou para si própria cá vai, agora amanha-te, e depois carregou na tecla enviar.
Lá fora, a cidade continuava a brilhar na noite. Todo um firmamento tombado do céu, que a esperava. Sim, ia sair.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Traição


O engenheiro Sombart começara por falar do futuro, mas Brandes sabia que não havia saída: os insectos capturados na teia de aranha ficam ainda mais presos quando tentam escapar. Por isso, limitou-se a ouvir a longa exposição sobre como seria o país daí a dez anos e daí a cem. A sala estava abafada e sentiu uma vertigem. A voz de Sombart tornara-se monótona e Brandes sabia que suava em excesso e que o outro sentia de certeza o seu medo à superfície da pele.
“E este futuro dependerá do nosso esforço colectivo, de remarmos todos no mesmo sentido”, disse o engenheiro. E ficou à espera:
“Sei que você, Brandes, acredita no nosso futuro”, insistiu.
“Só faço o meu dever, o melhor que posso”, murmurou o subordinado, num voz sumida. Pela primeira vez desde que entrara no gabinete teve esperança de que poderia escapar. Não era ele o insecto na teia.
“Por isso lhe peço que diga com franqueza o que pensa do seu amigo Georg Trasser”.
“É um excelente amigo”, respondeu Brandes, após breve hesitação.
Sombart recostou-se na cadeira, tinha o ventre mais inchado, parecia meditar, desapontado.
“Mas será um bom amigo nosso?”
“Julgo que sim”.
O engenheiro limitou-se a suspirar, mas agora num súbito tom de ameaça:
“Vocês são chegados, não é? Muito leais um ao outro”.
Brandes pensou depressa. Por certo havia uma desconfiança em relação a Trasser e estavam a ligá-lo ao amigo. Se não cortasse a ligação, apenas cairia com ele. Sentiu-se encurralado, a desfalecer:
“Não somos assim tão chegados”, sugeriu. “E já ouvi Georg Trasser mencionar algumas das suas dúvidas”.
“Dúvidas?”
“Enfim, talvez seja uma palavra excessiva. Numa conversa, ele admitiu que talvez o nosso futuro não seja tão positivo como eu ou o senhor pensamos que vai ser”.
“Uma forma de traição, portanto...”
Brandes tentou rir, mas saiu-lhe um patético sopro de pânico.
“Não, nada disso. Georg Trasser apenas tem...” procurou a palavra certa, hesitou, depois decidiu-se: “...dúvidas”.
Depois, descobriu uma palavra mais inócua e repetiu-a:
“Tem reticências, quero dizer!”


Não havia recuo. No meio do silêncio, tentou distrair-se com um pensamento mais inofensivo, enquanto avaliava o que dissera. O engenheiro Sombart estudava a frase. Olhou-o com intensidade. Depois reclinou-se na cadeira, brincou com um lápis que tinha na mão.
“O Georg sempre foi muito arrogante, não acha?”, perguntou o engenheiro.
Brandes ficou em silêncio. Pensou na conversa que tivera com Georg Trasser. Fora ele, Brandes, a falar em dúvidas sobre o futuro e o seu amigo, um idealista, explicara que ainda havia esperança. Mas se fosse interrogado, Trasser seria o primeiro a comprometê-lo. Não hesitaria, para salvar a carreira, a sua boa vida. Era vital convencer o engenheiro Sombart de que era ele, Brandes, o mais fiel:
“Ele acha-se superior a nós”, sentenciou.
E o outro concordou, com um movimento muito ligeiro da cabeça.
A mentira mais eficaz é aquela que se desvia apenas milímetros da verdade, pensou Brandes. Permitiu-se sorrir interiormente, mas sem mover um músculo da cara. Só lhe restava ser cruel e uma intensa onda de calor trespassou cada fibra do seu corpo.
Georg Trasser conseguira o êxito que ele nunca conseguira, um salário mais alto, uma esposa mais bonita, a admiração geral. E sempre o considerara a ele, Brandes, um inferior, alguém a quem se ajuda por caridade. Isso era o mais imperdoável, admitiu, e a raiva dominou-o por um instante em que perdeu o controlo:
“No fundo, ele é um traidor, como o senhor diz”.
Sombart concordou. Já fizera a sua escolha. Decidira esmagar Georg Trasser, quebrar-lhe a espinha. Brandes moveu um músculo em torno do lábio. Sorrira, mas o engenheiro não viu, ocupado com o lápis. Depois, Sombart fez um pequeno gesto, a dispensar o subordinado.

Brandes saiu do gabinete, aliviado com a frescura no exterior. Caíra a noite e o mundo enchera-se de sombras e luzes fracas. Enquanto caminhava no espesso nevoeiro, sentiu a satisfação que lhe dava reencontrar uma espécie de liberdade. E pensou, quase feliz, que talvez pudesse empurrar Trasser no destino de queda, ou melhor, muito melhor, talvez até lhe desse a mão, para o humilhar ainda mais com a sua inútil caridade.

(Este microconto antigo saiu da gaveta, foi transformado e prolongado. Decidi manter os nomes originais das personagens, excepto um deles)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Jardim Botânico


Esta é a capa do meu próximo livro, "Jardim Botânico". O romance será publicado muito em breve pela Quetzal e estará nas livrarias a partir de 5 de Fevereiro.

Este pequeno texto na contracapa poderá esclarecer melhor os leitores sobre o tema:
"Em Junho de 1998, estalou uma inesperada rebelião militar na Guiné-Bissau. Não estavam em causa questões étnicas ou religiosas, mas sobretudo a rivalidade entre dois homens, o Presidente Nino Vieira e o chefe das forças armadas, brigadeiro Ansumane Mané. A rebelião provocou um curto período de guerra civil, que durou sete semanas. Seguiu-se quase um ano de impasse e uma década de alta instabilidade. Na realidade, a Guiné nunca recuperou daquele episódio (...)".

Podem ler aqui um excerto do texto:
"Falaram de tudo e de coisa nenhuma, passeando ao acaso entre as ruas estreitas, abordados por cada um dos vendedores do mercado, que lhes falavam em francês. Ana comprou um lenço vermelho, que pôs ao pescoço, e aquilo deu-lhe um encanto imprevisto. Era daquelas mulheres que, por vezes, quase se tornam belas. Sobretudo quando sorria, mais feliz e distraída com os sons da vida. Vestia calções e usava botas grossas, e a brancura das pernas contrastava com a riqueza do colorido temperado no tumulto humano que os rodeava."

"Jardim Botânico" é a minha quinta obra de ficção e o meu quarto romance. Publiquei dois na Campo das Letras, "O Silêncio do Vento" (1998) e "Os Reis da Peluda" (2003), além de uma novela, "Homens no Fio" (2005). Na Quetzal, publiquei o romance "Territórios de Caça" (2009). O meu trabalho na área da ficção inclui uma dezena de contos publicados em diversas revistas e ainda pequenos contos e crónicas nos blogues literários colectivos Prazeres Minúsculos (2005-2007), As Penas do Flamingo e aqui, nas Emoções Básicas.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

E os livros perderão a sua magia


O politicamente correcto chegou a este ponto, de pegar num clássico americano e tirar-lhe o sabor de uma linguagem de época, alterando subtilmente duas palavras, negando-lhe o sentido original, tirando-as do contexto histórico. As palavras malditas são "nigger" e "indjun", substituídas por "escravo" e "índio". Muitas pessoas são contra, naturalmente, e proliferam os protestos. As edições originais de Huckleberry Finn ainda serão publicadas, embora imagine que no futuro muitas bibliotecas prefiram a edição revista. Ainda por cima, Mark Twain não era racista, tentara captar a linguagem que de facto existia no tempo da sua infância, nas margens do grande rio Mississippi.

Hoje, num mundo onde as ideologias se esbatem, triunfa uma espécie de puritanismo de comportamento, muito autoritário e fingidor, que atrás da capa da hipocrisia impõe a visão sanitizada da História. É uma forma de revisionismo, de limpeza de arquivos, no fundo como faziam os soviéticos nas famosas alterações de fotografias dos dirigentes comunistas, em que as pessoas que caíam em desgraça íam desaparecendo dos factos.
No nosso mundo digital, onde cresce a incerteza sobre o que é real e o que foi manipulado, esta mudança constante dos padrões da verdade é ainda mais fácil de realizar do que num passado que inspirou 1984 de George Orwell.
Talvez este seja o mundo do futuro, em que os escritores já não terão qualquer certeza sobre aquilo que verdadeiramente escreveram. Na qualidade de clássicos, os seus textos serão alteráveis pelas circunstâncias, adaptados ao novo tempo, acrescentados e diminuídos conforme a conveniência ideológica do momento, numa actualização permanente dos valores que tentaram transmitir.
Os livros deixarão de envelhecer, na realidade, mas o preço será o de perderem parte da sua magia.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Carta do Pai Natal a um disperso escrevedor (Ao abrigo do direito de resposta e ainda a tempo do Dia de Reis)

Meu Caro Jovem
Perdoe-me a demora na resposta. Sucede que, polémicas à parte, continuo muito solicitado e andei ocupadíssimo, primeiro nas lides habituais, depois compensando a minha mulher pelas longas horas fora de casa.
Foi com profunda tristeza, alguma complacência e a máxima arterial a 170 que li e reli as suas desalentadas palavras. Vasculho na minha história, sondo de ponta a ponta a minha consciência, e não encontro passos merecedores de tamanha diatribe. Creio que apenas a sã irreverência, própria da juventude cinquentenária do meu amigo, justifica tal tratamento a um idoso como eu. Bem me avisou em tempos certa astróloga: por volta dos meus 115 anos, uma grande arrelia chegaria por correio e, de tão contundente, far-me-ia crescer (Ainda perguntei "Crescer mais?? Para quê? Mas ela lançou-me um olhar reprovador).
Sou pessoa sensível e magoaram-me algumas das suas farpas, quer as de natureza mais filosófica, quer as alusivas à minha aparência. Sem cerimónias, eis o que se me oferece dizer sobre as primeiras:
Mas agora tenho de levar a toda a hora com a lengalenga anti-consumo a pretexto dos primórdios da minha existência? Por dá cá aquela palha, salta alguém a responsabilizar-me pela agressividade mercantil da marca que me inventou? É injusto e é absurdo.
Injusto, porque eu não tenho culpa das minhas origens. Não podemos arcar pela vida fora com o ónus das opções e acções dos nossos progenitores. Absurdo, pela questão dos prazos de validade: as alianças fazem-se e desfazem-se. No meu caso, mergulhei directamente do acto de criação para uma tarefa especificamente comercial, é verdade. Foi nos anos 30 do século passado. Mas onde é que isso já vai! Há que tempos ninguém me vê agarrado a um dístico de refrigerantes. É como um indivíduo divorciar-se e passada uma década ainda lhe falarem constantemente da ex-mulher. Desagradável. Ainda por cima são essas vozes de revolta mal dirigida que alimentam, nesta quadra e gratuitamente, o portentoso caudal de publicidade à referida marca, pois, como sabe, nos códigos do marketing o que importa é ser-se falado, bem ou mal.
Quanto a promover o consumismo: Eu? Eu, que só saio da toca duas ou três semanas em Dezembro? Então os outros onze meses do ano? Sou eu que canalizo milhares para formigarem pelos centros comerciais das vilas e cidades nos fins-de-semana de sol, nas tardes de primavera? (Dou este exemplo, por me constar que o seu país vai à frente nesse distinto passatempo).
E antes que lhe ocorra imputar-me as enormes desigualdades materiais das famílias, digo-lhe já que reclame noutra secção, com quem fez o mundo assim. Limito-me a entregar o que me mandam - sou apenas o estafeta. Abracei o projecto de distribuir prendas aos miúdos porque me identifiquei com ele. Comecei como mero assalariado, nunca subi na hierarquia, não pedi para ser a estrela do consumismo sazonal do ocidente, e há muito que opero na base do voluntariado responsável. Faço o melhor que posso.
Acredito ter conquistado, assim, o direito a uma existência autónoma, digna e íntegra. Não sou avalista de todas as palermices que inventam a meu respeito, e sou alheio às réplicas da minha pessoa empoleiradas aí pelas varandas. Alguém, nesta época de twitters e facebooks, poderá assumir os usos indevidos da sua imagem globalizada? Se vamos a matutar nisso, será melhor eu pôr-me a despejar tranquilizantes pelas chaminés abaixo.
É verdade que já poderia ter arrumado as botas. Mas, por um simples erro de génese, vestia agora um fato de treino e enterrava a cabeça nas neves da Lapónia? Não. Como é ingénuo o meu amigo, ao pensar que me movem as comissões das grandes multinacionais. O meu intento é outro. É adiar o face-a-face com a solidão na velhice, é resistir ao medo terrível da inutilidade. Há muito que me sinto escorregando num plano untado a sebo de rena, inclinado a 30 graus sobre a fenda escura da morte. Esta sensação é comum na minha idade e até em pessoas mais novas. Passar a noite de Natal voando pelos céus, nas asas da imaginação, nossa ou de outros, é a minha forma de me agarrar a qualquer ressalto ou cavidade que encontre nessa supefície ímpia. É a minha forma de iludir um tempo que corre muitíssimo mais veloz do que me foi prometido no início da minha existência.
Quanto ao menino Jesus, nada contra. Nutro um carinho de avô por esse eterno bebé, e além disso há mercado para os dois. Tenho alguma vaidade por reunir o consenso entre as famílias que não se revêem nos episódios e personagens bíblicas, mas ninguém me ouvirá uma palavra menos cortês sobre a concorrência. Excessos de competição são desaconselhados na minha idade e esvaziam-nos de energia anímica. Já a quebra de popularidade do Pequeno no coração das pessoas, palpita-me que se deve, isso sim, à incorrigível soberba da massa católica, dos marechais aos soldados rasos.
Por fim: A minha fatiota. Que é que tem?? Eu gosto. O vermelho significa alegria e tonicidade, qualidades nada de desprezar num velho. Além disso, como sou forte, nem tudo me assenta bem. Efectivamente, já nasci com este índice de massa corporal, e ninguém se penaliza mais por isso. Não poderia adoptar uma tanga tipo Jesus, que praticamente nasceu nos trópicos, e também não estou para imitar o São Nicolau: o púrpura e o marfim não me favorecem e as vestes compridas travam-me os movimentos.
Dito tudo isto, meu jovem amigo, estou consigo no desalento perante um Natal esvaziado de sentido. Porém, na tresloucaria refinada que é Dezembro, eu não vejo tanto a ânsia de consumir e possuir - vejo mais a urgência das pessoas em quebrar a rotina a todo o custo, em encher os dias com objectivos palpáveis e próximos, passos e palavras especiais, ainda que frívolos e fugazes. O espírito até existe, mas agora é outro. Jesus cresceu. A humanidade está para lá de madura.
Deste, que afectuosamente o compreeende,
Pai Natal