quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 27


O homem moderno típico está separado da terra por numerosos intermediários e por inúmeras bugigangas mecânicas. Não tem uma relação vital com a terra. (…) Deixem-no à solta na terra por um dia e, se o local onde o deixaram não for um campo de golfe ou uma área “pitoresca”, ele aborrecer-se-á mortalmente.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 26


Cada região possui uma alimentação humana que simboliza a sua fertilidade.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

domingo, 16 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 25


Nenhuma alteração ética importante alguma vez se realizou sem a alteração interna das nossas prioridades intelectuais, das nossas lealdades, afectos e convicções.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 24


A natureza selvagem é a matéria-prima a partir da qual o homem cinzelou esse artefacto chamado civilização.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 23


A física da beleza é uma parte da ciência natural ainda na Idade das Trevas. Nem sequer os manipuladores do espaço curvo tentaram solucionar as suas equações.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Escaravelhos nos Ouvidos



Acabara de acordar, a gritar e a escorrer suor.
Desta vez, agradeci o sol ofuscante que me queimava as têmporas. Sonhei que a Luizinha tinha morrido. Estava ali comigo, mas defunta.
Não sei como, não me lembro porquê, mas fui buscá–la a um caixote do lixo malcheiroso, nas traseiras do edifício. Tinha o corpo rígido, frio, encardido e desconjuntado, com uma erva daninha a crescer no ventre.
E corri com ela nos braços pelo parque fora, aos soluços e a bradar aos céus, a pedir ajuda e a enxotar um corvo que lhe queria comer uma orelha e o nariz. Ninguém veio, ninguém quis vê–la, ninguém quis salvá–la.
Agiram como se não estivéssemos ali, como se não existíssemos, mas desconfio que espreitavam com mil olhos das janelas e troçavam do desespero que sentia, da catástrofe que nos tolhera. Ficámos à porta do Sanatório, numa tarde de enorme calor e vento seco e ruidoso, eu chorava com a Luizinha despojada a meus pés, como ela nunca estivera.
Hirta demais para o meu gosto.
Arrastei–a pelas mãos a um dos fontanários como se fosse um travesseiro, lavei–lhe a cara, o pescoço, as mãos e as pernas, estendi–a e cruzei–lhe os braços em cruz. E desfiz tudo e rasguei–lhe a roupa, um vestido vermelho cintado, que desviei da pele como se fosse papel de embrulho.
Os seios não tinham mamilos, mas lavei–os também, e ao umbigo, à púbis farta, a esconder o sexo. Dos orifícios começaram a crescer ervas daninhas. Arranquei–lhe as urtigas e com um pouco de cuspo tirei–lhe o sangue do nariz e da orelha, debicados. Virei–a de costas e lavei–lhe as nádegas.
A pele estava fria, a carne dura.
A água não a limpou, a sujidade esborratou, num contraste absoluto com a lividez. Virei–a para mim e lambi–a, amarga e ácida. E masturbei–me sôfrego, junto à boca dela, semiaberta mas sem um sopro. Depois de um ligeiro estremecer, espalhei o meu creme viscoso pelo seu rosto e dei–lhe algum a beber, com a ajuda dos dedos.
Ela acordou com um grito de terror. E não se calava. Cada vez mais brutal, mais estridente, de olhos esbugalhados fixos nos meus. E eu chorei de vergonha, ainda com o tronco dela entalado entre as minhas coxas. Não fui capaz de me desviar do esbracejar, fiquei impassível aos murros e ao espernear frenético.
Até que o corpo dela se desfez em pó e se dissipou.
Estava assim quando acordei, ajoelhado e ranhoso. Olhei para o pulso que me ardia e vi um golpe tão grande junto às veias que parecia uma boca cujos lábios mexiam e falavam comigo, sem compreender o que diziam.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Flores de papel-III*


Silenciosa, Mariana aguardava, olhando-os fixamente. O Águas compreendeu que teria de dizer tudo até ao fim. Inspirou com esforço.
“Queríamos pedir-lhe o grande favor de nos fazer as flores. A gente dá o arame e o papel...a filha da Albertina pode ajudar.”
Pronto, tinha pedido. E agora, que se rebaixara, já não estava disposto a baixar outra vez os olhos. Encarou-a, com um misto de raiva e de uma força que não compreendia bem. Já podia calar-se também.
Mariana permanecia imóvel. O tempo parecia parado na sala imensa, embora o relógio de parede continuasse com o seu tique-taque irritante, pensou o Águas, que começara a torcer outra vez o chapéu entre as mãos.
Sem aviso, a mulher pareceu então despertar. Juntou as mãos, como se fosse rezar, levou-as assim juntas aos lábios, e sem se erguer da cadeira, encarou o homem com uma expressão estranha, um sorriso quase amável nos lábios. Não havia raiva no seu olhar, apenas alguma tristeza, ou um resto de doçura. O olhar que lhe conheciam de sempre, pensou o Águas.
 Não lhes queria mal, não. Eram só uns fracos. Foi nestas palavras que ela pensou. Devia dizer-lhes que sim? Reviu os últimos meses, um tempo pardo e estranho. Os tropeços do Albano, sempre com aquela saudação “santas tardes menina Mariana”, e mais nada. A ferocidade das mulheres, todas de preto, que se juntavam a cochichar, o silêncio cobarde dos homens. E agora queriam flores.
“Vou pensar”, disse ela. “Passe cá amanhã”, respondeu ao Águas.
 Deixou-se ficar sentada e deixou também de os olhar, como se já não estivessem na sala. Observava agora, através da janela, as montanhas que se esbatiam no horizonte, para lá dos telhados e dos pomares, para lá da floresta comacta de pinheiros. Eles despediram-se à pressa. Recuaram até à porta, atabalhoados, como um rebanho desordenado, e saíram. Mariana tinha o olhar perdido na janela, fez apenas um gesto breve que podia ser de despedida.
As flores? Sim, talvez fizesse as flores.

*Conclusão

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 22


Faz parte da sabedoria nunca voltar a visitar uma região selvagem, pois quanto mais duradouro é o lírio, mais certo é que alguém o dourou por fora. (…) É apenas na mente que a brilhante aventura permanece para sempre luminosa.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 21

Que uma espécie exprima o luto pela morte de outra espécie é algo de novo sob o sol. O homem de Cro-Magnon que chacinou o último mamute apenas pensava no seu churrasco. O atirador que baleou o último pombo pensava apenas na sua proeza. O marinheiro que agrediu à cacetada o último arau não pensava em nada. Mas nós, que perdemos os nossos pombos, manifestamos o nosso luto [Sobre o monumento ao pombo erguido por uma sociedade ornitológica americana]

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Flores de papel-II


Mariana dominava o espaço, como se a envolvesse uma atmosfera particular. Sempre deixava essa impressão quando percorria os campos, nos seus passeios solitários. Parecia levar uma luz invisível, uma espécie de brilho. Antes – antes do Albano – quando ela surgia na curva do caminho, as crianças que andavam por ali correndo atrás das galinhas, paravam, seguiam-na com o olhar. Ela então acenava-lhes, e um miúdo ou outro corriam ao seu encontro e punham-se a caminhar ao seu lado, sem dizer nada. Mariana soltava umas gargalhadas cristalinas e doces e às vezes fazia-lhes festas ao de leve na cabeça. E tudo se desvanecia a seguir. Ela ia andando, os miúdos voltavam às correrias.
Mas tudo isso, pensava o Joaquim Águas, tinha sido antes do Albano, e antes de as mulheres, acicatadas pela Tia Matilde – o raio da velha – se terem voltado contra a rapariga. Ela nunca tinha sido bem um deles, tão diferente, tão delicada, como uma menina da cidade. Que raio se metera na cabeça do Albano?
Ninguém soube como aquilo aconteceu mas, a certa altura, o rapaz era só olhos para ela. Quando Mariana saía a dar os seus passeios, quando ia à missa ao domingo de manhã, ou à venda, a buscar açúcar e arroz, o Albano fazia sempre por encontrá-la. Estava sempre lá, num canto qualquer, à espera. Saía-lhe ao caminho, desbarretava-se, ela sorria, e ele ficava ali apatetado, sem saber o que dizer, até que ela se despedia e se ia embora.
A miudagem começou a meter-se com ele. Os rapazes, quando o viam, punham-se aos beijinhos no ar e riam-se, até que o Albano se enfurecia e corria com eles ao pontapé e aos gritos. Mas a graça pegou, o moço andava mal-encarado.
Na venda, os homens sorriam quando ele entrava. Uma tarde, entre dois golos de aguardente, o Januário entrou a mangar com ele, disse-lhe que  tivesse juízo. “Aquilo não é para o teu dente, ó cachopo”. Era um modo de dizer. Um dichote sem importância, mais para o rapaz descer terra. “Aquilo” não era para o dente de nenhum deles, sabiam-no todos. Por isso se riam do Albano.
O rapaz levou aquilo a peito. Empalideceu, e depois transfigurou-se. Ainda apontou um dedo ao Januário, numa intenção qualquer, mas não conseguiu dizer nada. Saíu porta fora. Foi a última vez que o viram.
Na manhã em que descobriram o corpo no fundão da ribeira, com o rosto já desfigurado e cinzento, a boca inutilmente aberta, a velha Matilde, de olhar desvairado, gritou à porta da capela até perder a voz. Que ela lhe embruxara o rapaz, que lho desgraçara. “Que vai ser de mim”, gemia ela, no meio das outras mulheres, que a ouviam num silêncio receoso.
O enterro foi rápido, numa cova aberta e fechada à pressa num canto afastado do cemitério. De má cara, o padre benzeu o caixão, só se ouviam os gemidos da velha Matilde, transformados numa lamúria cansada. 
Mariana, muito pálida, de lenço escuro na cabeça, também estava lá, um pouco afastada. Parecia perplexa, como se não percebesse o que estava ali a fazer. Ninguém lhe dirigiu palavra. As mulheres olhavam-na de lado, com expressão feroz. Uma delas cuspiu para o chão e desviou os olhos. Os homens baixavam a cabeça.
Durante uma semana, o Januário não apareceu na venda. Voltou uma tarde, já a Primavera se anunciava nos campos e nas árvores. Entrou na venda, pediu aguardente, bebeu-a num único sorvo, e limpou a boca à manga escura da camisa. Depois deu um estalo com a língua e enfrentou os olhares inquietos em volta. “Que se há-de fazer?”, disse encolhendo os ombros. Alguns abanaram a cabeça, concordando. “É”, respondeu um deles. Pediram mais uma rodada, que se havia de fazer?

*Esta história continua

Pensar como uma Montanha 20


Para um átomo encerrado numa rocha, o tempo não passa.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

sábado, 1 de outubro de 2011

Flores de Papel-I



Sabia que viriam. Com as festas a chegar, as flores por fazer e a Albertina tolhida, teria de ser. Não iria ficar despido o andor, isso nunca tinha acontecido antes. Tinha-os esperado todos esses dias, escutando os próprios sonhos, e as vozes distantes, nas tardes mansas, quando um vento morno se levantava nas copas dos pinheiros. Sentava-se na penumbra da sala, na velha cadeira de baloiço e ficava em silêncio, escutando o que lhe pareciam vozes segredadas. Murmúrios, como um rumor de ondas embrulhadas, muito ao longe, que vinham ter com ela, trazendo palavras soltas. Ouvia-as misturadas nos próprios pensamentos, não sabia explicar. Sabia apenas que viriam.
Estavam ali, agora, perfilados na sua frente, embaraçados, num aprumo que não era deles. Olhou-os em silêncio. Deviam ter bebido um copo para ganhar coragem daquela aguardente bruta, que faziam em alambiques desconjuntados à sorrelfa, na penumbra das caves sob o sobrado das casas. Olhou-os um a um, como se o tempo fosse todo dela, encostou-se na cadeira e esperou. Tinham os rostos afogueados, os olhos postos no chão. Podia esperar.
A casa tornara-se mais sombria. Ou talvez fosse uma nuvem passando de manso sobre a aldeia, não importava. De repente, no meio do silêncio, o aparador estalou, sobressaltando os quatro homens. Mariana reprimiu o riso, pensou que fariam mais uma história. “Ali até os móveis gemem”, diriam uns aos outros, baixando as vozes, arregalando os olhos.
Adiantou-se o Joaquim Águas, muito apertado no fato, com a barriga a saltar do cinto, o cabelo ainda húmido mas já a desmanchar-se, e a escorrer suor nas têmporas, apesar da frescura na sala. Apertava a aba do chapéu de feltro nas mãos, sem dar conta. Encarou a rapariga sentada, de olhos serenos pregados nos dele, tropeçou nas palavras. Os outros pareciam perdidos num vazio qualquer.
“A menina Mariana, desculpe”, gaguejou o homem, como que a tomar balanço. “Viemos por todos”. Virou-se para trás, mas os outros três encolheram-se mais. Dissesse o que tinha a dizer, que se despachasse. Por eles nem estariam ali. O Fagundes lançou um olhar ao Águas, quando ele se virou para trás. O outro percebeu, ganhou balanço.
“Sabe ao que vimos.A Albertina, de repente entrevada, as festas à porta e não há flores para o andor. E mais ninguém para as fazer”. A voz esmoreceu-lhe. O Águas queria parar ali, ela com certeza percebera, raios. Mas o silêncio alongava-se, numa agonia. 

*Esta história continua