sexta-feira, 25 de março de 2011

Acupunctura das feras



1.

Temos o medo.

Ele amanhece connosco.

A vontade é não ter braços para o receber,

antes afastar o eco de tudo o que está dentro.

Lembramos em defesa o sabor da fruta,

nesse tempo em que os morangos eram ainda pequenos

e as ameixas na árvore se dividiam em inconfundíveis cores,

duas apenas.


2.

Com memórias de amor por quem fomos

levantamos a tarde e o corpo prossegue.

Confesso: Uma vez perdi um amigo por não saber a cor do seu nome.

Não convém atravessar a vida sem olhar


3.

Temos a esperança.

Ela dorme sem abrigo, aí onde consegue estender o coração.

Todas as noites alguém nasce

e a isso chamamos a acupunctura das feras. 
 
 
(Publicado aqui)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Portos de abrigo


A tempestade enfrenta-se melhor quando sabemos haver um porto de abrigo que nos espera, mesmo que nunca consigamos lá chegar.

domingo, 13 de março de 2011

Resposta a "Uma Carta" do Disperso Escrevedor

Bom e paciente amigo
Anda uma pessoa na sua vidinha mediana, altos e baixos, uns dias sorridos outros de sobrolhos franzidos, quando lhe salta ao caminho uma carta chamando-lhe deusa. Abana qualquer uma! Responde-se, e é como atar uma pedrinha ao cordel de um balão de hélio – retira-lhe a graça e a elevação.
Ainda assim, não resisto. Desde logo, à cortesia em ver-se o meu amigo de idade para ser meu pai. Com a nossa década e picos de diferença, já o imagino há cinquenta anos, robustecido pelas vastidões da lezíria, avesso a amores aguados mas abraçando, se não os minúsculos prazeres epistolares, certamente as emoções básicas da física do amor – e tão jovenzinho, o que só lhe fica muito bem.
Quanto à minha história com ‘hi’, pu-la a girar em torno de um manuscrito, quando se trata, em rigor, de um teclaescrito, reflexo da raridade atual do uso da caligrafia. Do tal Celúlio é que ainda pouco sei. Outro dia vi um gorgulho pequenito, redondo, tostado escapulir-se de um saco de arroz na minha despensa, e afinal era o Celúlio à saída da empresa de reciclagem. Tenho-o como pessoa de grandes planos, com quem a vida sempre desconversou. Vejo-lhe a alma cheia de tiques, um caminho povoado de amigos incompletos. Aquela vida junto ao tapete do enxovalho, um pouco espelho de como o país anda agora, e andava no tempo do Eça e no de D. Sebastião, não lhe é salutar. Enfim, oxalá me engane, que pareço uma vidente lendo uma bola de cristal.
E também parece que a alma lusa de Celúlio se compensa como pode, indo embeber-se naquela pura ilusão do paraíso bibliotecário. Aforismo inteiramente da lavra dele, já agora, embora eu tenha lá metido à socapa o meu arado. E depois não o estou a ver homem de citações, pois sobre livros selectos ele é ainda menos informado do que eu. Mas coitado! Como se as bibliotecas não fizessem parte do mundo! Cheias de silêncios forçados, de sons a aguardar vez, de vozes faladas em standby para que as palavras escritas possam respirar e brilhar, de folhas oprimidas por falto de uso, outras gastas por mãos ávidas, olhos fartos de letras, frases inteiras arranhadas pelas patitas dos ácaros, e pó, um pó insidioso e calado a picar leitores alérgicos. E, abaixo desses silêncios, remoinhos indizíveis, uma verdadeira tectónica das características humanas: desejos desencontrados, pulsões contidas entre leitores, intrigas e atrações entre funcionários, invejas e paixões entre personagens, empatias funcionários-personagens, e até vice-versa, sussurros de cordel, olhares atravessando mesas de leitura e que poeta algum soube descrever, etc, etc.
Eu percebo o Celúlio. Adoro a superfície do silêncio acariciando-me os sentidos e o espírito, esse morno mar de silêncio com ilhotas de trabalho solitário, concentrado que é uma biblioteca. Parece que estamos ali à beira de um salto quântico qualquer. Adoro a cortesia vaga, formal nas vozes microdecibélicas de leitores e funcionários. Cada biblioteca, da mais insignificante numa estante de colectividade local, à de Alexandria ou à do congresso americano, tem o seu silêncio endémico, a sua exclusiva linguagem freática.
Não sei se o Celúlio vê a coisa assim. É um bocado limitado. Possui uma mente arrumada, de matriz binária, à engenheiro. Veja bem que nem igrejas, tão ricas de história, cultura e espírito, ele aprecia visitar. Embirra que lhe leiam talhas douradas e painéis de azulejos, porque chega ao terceiro e já não se lembra do que lhe disseram do primeiro. Pronto, é como é.
E pronto também para nós, que esta resposta já vai longa e o amigo tem mais que fazer.
Um grande abraço, pelas suas palavras.

PS: Quanto às formalidades do novo acordo, que fazer? Saiba que estrebuchei q.b., disposta até a descer a avenida da Liberdade em prol da tradição, se tem havido uma convocatória no facebook. E se não resisti mais, foi por guardar a energia dos meus estrebuchos para causas mais promissoras. Dizem que é uma atitude de sabedoria, e eu acredito.

sábado, 12 de março de 2011


Abençoados os precários de espírito*,
pois deles é o reino de Portugal.

*que não vão a manifestações e preferiam que elas não existissem

sexta-feira, 11 de março de 2011

Buchas e esticas


Cheguei a este tema através do blogue de José Mário Silva, Bibliotecário de Babel, que faz um link para o blogue de António Granado e este para um texto que discute de forma bem interessante a questão da dimensão ideal das prosas de jornal. É uma discussão muito em voga nas redacções e eu estou do lado daqueles que defendem a necessidade dos artigos longos: acredito que os leitores lêem textos grandes e gostam deles, desde que sejam bem escritos.
Um jornal deve conseguir um equilíbrio entre textos extensos e outros curtos. Para mim, o jornalismo bem escrito não necessita de frases bonitas e muitas palavras tiradas dos dicionários de sinónimos; bem escrito é ir ao ponto e nunca tentar embelezar os factos. Isso pode ser conseguido numa síntese e em grandes reportagens.