segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Vulgares de Lineu

A solidão da escrita tem um lado de liberdade, pois se ninguém ler isto, então para quê limitar o pensamento? Por vezes, escrever é como caminhar, colocar um passo atrás do outro, procurar o melhor caminho; quando se anda, o corpo funciona de forma automática; por outro lado, encontrar palavras é tarefa que, sem cansar os músculos, exige um sentido.
Uma personagem de Kundera achava as mulheres todas iguais, pelo menos em 999 porções de mil, e dizia que procurara, em todas as mil mulheres que tinha amado, o milésimo de diferente. Não sou tão pessimista, acho as pessoas todas diferentes em maior grau do que um milésimo, sobretudo as mulheres. Existe uma taxionomia dos seres humanos, na visão de quem os observe a certa distância: há pequenas diferenças de Lineu, que se somam umas às outras e formam grandes famílias, como acontece nas flores, com a forma das pétalas, dos caules e das folhas, numa profusa variedade de diferenças, embora não infinita. Tento observá-los à lupa, todos ambiciosos dentro da sua modéstia, esmagados no meio da sua independência, felizes entre as suas muitas tristezas, alguns com esperança outros resignados. Enfim, cada um a fazer o seu caminho, sem saber bem para onde ir, um pouco como fiz neste texto, colocando uma palavra à frente da outra, com muito esforço. 

Pensar como uma Montanha 37 (e última)

Seja qual for a equação entre os Homens e a Terra, é improvável que conheçamos já todos os seus termos.



Aldo Leopold, A Sand County Almanac, Pensar como uma Montanha, 1949

sábado, 26 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 36

Uma ética da terra altera a função do Homo sapiens tornando-o de conquistador da comunidade da terra em membro e cidadão pleno dela. Implica respeito pelos outros membros seus companheiros e também respeito pela comunidade enquanto tal.

Aldo Leopold, A Sand County Almanac, Pensar como uma Montanha, 1949

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 35

Cada um deles, à sua maneira, é um caçador. E por que razão cada um deles se considera a si próprio um amigo da natureza? Porque os seres selvagens que ele procura caçar lhe fugiram, e ele espera, graças a alguma necromancia das leis, das dotações orçamentais, dos planos regionais (…) fazer com que fiquem como estão.
[sobre as “enxames” humanos que procuravam o ar livre aos fins-de-semana em meados do século XX, nos EUA].


Aldo Leopold, A Sand County Almanac, Pensar como uma Montanha, 1949

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 34

A compreensão da ecologia não a encontramos necessariamente nos cursos que se intitulam de ecologia; é mais provável que as encontremos nos que se intitulam geografia, botânica, agronomia, história ou economia.

Aldo Leopold, A Sand County Almanac, Pensar como uma Montanha, 1949

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 33


… a maioria dos membros da comunidade da terra não tem valor económico. Exemplos disso são as flores selvagens e o canto dos pássaros.



Aldo Leopold, A Sand County Almanac (Pensar como uma Montanha), 1949

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 32

No Canadá e no Alasca existem ainda vastas extensões de terras virgens “Onde os homens sem nome vagueiam através de rios sem nome e em vales estranhos sozinhos encontram estranha morte.”

Aldo Leopold, A Sand County Almanac (Pensar como uma Montanha), 1949

sábado, 12 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 31

O progresso não consegue permitir que as terras agrícolas e as terras pantanosas, a vida selvagem e a vida domesticada existam lado a lado numa tolerância e numa harmonia mútuas.

Aldo Leopold, a Sand County Almanac (Pensar como uma Montanha), 1949

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 30


A educação, é esse o meu receio, consiste em aprender a ver uma coisa tornando-nos cegos para outra.

Aldo Leopold, A Sand County Almanac (Pensar como uma Montanha), 1949

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 29

A característica mais notável da percepção é que ela não provoca nem o consumo nem o desgaste de qualquer recurso. (…). Promover a percepção é a única parte verdadeiramente criativa da indústria da recreação ao ar livre.

Aldo Leopold, A Sand County Almanac (Pensar como uma Montanha), 1949

domingo, 6 de novembro de 2011

Pensar como uma Montanha 28

O Homo sapiens já não se contenta com a rotina à sombra da sua própria vinha e figueira; ele verteu no seu depósito de gasolina a força motora armazenada de inúmeras criaturas que aspiram, desde as épocas mais remotas, a abrir caminho serpenteando agitadamente através de novas paisagens.

Aldo Leopold, A Sand County Almanac (Pensar como uma Montanha), 1949

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 27


O homem moderno típico está separado da terra por numerosos intermediários e por inúmeras bugigangas mecânicas. Não tem uma relação vital com a terra. (…) Deixem-no à solta na terra por um dia e, se o local onde o deixaram não for um campo de golfe ou uma área “pitoresca”, ele aborrecer-se-á mortalmente.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 26


Cada região possui uma alimentação humana que simboliza a sua fertilidade.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

domingo, 16 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 25


Nenhuma alteração ética importante alguma vez se realizou sem a alteração interna das nossas prioridades intelectuais, das nossas lealdades, afectos e convicções.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 24


A natureza selvagem é a matéria-prima a partir da qual o homem cinzelou esse artefacto chamado civilização.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 23


A física da beleza é uma parte da ciência natural ainda na Idade das Trevas. Nem sequer os manipuladores do espaço curvo tentaram solucionar as suas equações.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Escaravelhos nos Ouvidos



Acabara de acordar, a gritar e a escorrer suor.
Desta vez, agradeci o sol ofuscante que me queimava as têmporas. Sonhei que a Luizinha tinha morrido. Estava ali comigo, mas defunta.
Não sei como, não me lembro porquê, mas fui buscá–la a um caixote do lixo malcheiroso, nas traseiras do edifício. Tinha o corpo rígido, frio, encardido e desconjuntado, com uma erva daninha a crescer no ventre.
E corri com ela nos braços pelo parque fora, aos soluços e a bradar aos céus, a pedir ajuda e a enxotar um corvo que lhe queria comer uma orelha e o nariz. Ninguém veio, ninguém quis vê–la, ninguém quis salvá–la.
Agiram como se não estivéssemos ali, como se não existíssemos, mas desconfio que espreitavam com mil olhos das janelas e troçavam do desespero que sentia, da catástrofe que nos tolhera. Ficámos à porta do Sanatório, numa tarde de enorme calor e vento seco e ruidoso, eu chorava com a Luizinha despojada a meus pés, como ela nunca estivera.
Hirta demais para o meu gosto.
Arrastei–a pelas mãos a um dos fontanários como se fosse um travesseiro, lavei–lhe a cara, o pescoço, as mãos e as pernas, estendi–a e cruzei–lhe os braços em cruz. E desfiz tudo e rasguei–lhe a roupa, um vestido vermelho cintado, que desviei da pele como se fosse papel de embrulho.
Os seios não tinham mamilos, mas lavei–os também, e ao umbigo, à púbis farta, a esconder o sexo. Dos orifícios começaram a crescer ervas daninhas. Arranquei–lhe as urtigas e com um pouco de cuspo tirei–lhe o sangue do nariz e da orelha, debicados. Virei–a de costas e lavei–lhe as nádegas.
A pele estava fria, a carne dura.
A água não a limpou, a sujidade esborratou, num contraste absoluto com a lividez. Virei–a para mim e lambi–a, amarga e ácida. E masturbei–me sôfrego, junto à boca dela, semiaberta mas sem um sopro. Depois de um ligeiro estremecer, espalhei o meu creme viscoso pelo seu rosto e dei–lhe algum a beber, com a ajuda dos dedos.
Ela acordou com um grito de terror. E não se calava. Cada vez mais brutal, mais estridente, de olhos esbugalhados fixos nos meus. E eu chorei de vergonha, ainda com o tronco dela entalado entre as minhas coxas. Não fui capaz de me desviar do esbracejar, fiquei impassível aos murros e ao espernear frenético.
Até que o corpo dela se desfez em pó e se dissipou.
Estava assim quando acordei, ajoelhado e ranhoso. Olhei para o pulso que me ardia e vi um golpe tão grande junto às veias que parecia uma boca cujos lábios mexiam e falavam comigo, sem compreender o que diziam.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Flores de papel-III*


Silenciosa, Mariana aguardava, olhando-os fixamente. O Águas compreendeu que teria de dizer tudo até ao fim. Inspirou com esforço.
“Queríamos pedir-lhe o grande favor de nos fazer as flores. A gente dá o arame e o papel...a filha da Albertina pode ajudar.”
Pronto, tinha pedido. E agora, que se rebaixara, já não estava disposto a baixar outra vez os olhos. Encarou-a, com um misto de raiva e de uma força que não compreendia bem. Já podia calar-se também.
Mariana permanecia imóvel. O tempo parecia parado na sala imensa, embora o relógio de parede continuasse com o seu tique-taque irritante, pensou o Águas, que começara a torcer outra vez o chapéu entre as mãos.
Sem aviso, a mulher pareceu então despertar. Juntou as mãos, como se fosse rezar, levou-as assim juntas aos lábios, e sem se erguer da cadeira, encarou o homem com uma expressão estranha, um sorriso quase amável nos lábios. Não havia raiva no seu olhar, apenas alguma tristeza, ou um resto de doçura. O olhar que lhe conheciam de sempre, pensou o Águas.
 Não lhes queria mal, não. Eram só uns fracos. Foi nestas palavras que ela pensou. Devia dizer-lhes que sim? Reviu os últimos meses, um tempo pardo e estranho. Os tropeços do Albano, sempre com aquela saudação “santas tardes menina Mariana”, e mais nada. A ferocidade das mulheres, todas de preto, que se juntavam a cochichar, o silêncio cobarde dos homens. E agora queriam flores.
“Vou pensar”, disse ela. “Passe cá amanhã”, respondeu ao Águas.
 Deixou-se ficar sentada e deixou também de os olhar, como se já não estivessem na sala. Observava agora, através da janela, as montanhas que se esbatiam no horizonte, para lá dos telhados e dos pomares, para lá da floresta comacta de pinheiros. Eles despediram-se à pressa. Recuaram até à porta, atabalhoados, como um rebanho desordenado, e saíram. Mariana tinha o olhar perdido na janela, fez apenas um gesto breve que podia ser de despedida.
As flores? Sim, talvez fizesse as flores.

*Conclusão

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 22


Faz parte da sabedoria nunca voltar a visitar uma região selvagem, pois quanto mais duradouro é o lírio, mais certo é que alguém o dourou por fora. (…) É apenas na mente que a brilhante aventura permanece para sempre luminosa.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Pensar como uma Montanha 21

Que uma espécie exprima o luto pela morte de outra espécie é algo de novo sob o sol. O homem de Cro-Magnon que chacinou o último mamute apenas pensava no seu churrasco. O atirador que baleou o último pombo pensava apenas na sua proeza. O marinheiro que agrediu à cacetada o último arau não pensava em nada. Mas nós, que perdemos os nossos pombos, manifestamos o nosso luto [Sobre o monumento ao pombo erguido por uma sociedade ornitológica americana]

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Flores de papel-II


Mariana dominava o espaço, como se a envolvesse uma atmosfera particular. Sempre deixava essa impressão quando percorria os campos, nos seus passeios solitários. Parecia levar uma luz invisível, uma espécie de brilho. Antes – antes do Albano – quando ela surgia na curva do caminho, as crianças que andavam por ali correndo atrás das galinhas, paravam, seguiam-na com o olhar. Ela então acenava-lhes, e um miúdo ou outro corriam ao seu encontro e punham-se a caminhar ao seu lado, sem dizer nada. Mariana soltava umas gargalhadas cristalinas e doces e às vezes fazia-lhes festas ao de leve na cabeça. E tudo se desvanecia a seguir. Ela ia andando, os miúdos voltavam às correrias.
Mas tudo isso, pensava o Joaquim Águas, tinha sido antes do Albano, e antes de as mulheres, acicatadas pela Tia Matilde – o raio da velha – se terem voltado contra a rapariga. Ela nunca tinha sido bem um deles, tão diferente, tão delicada, como uma menina da cidade. Que raio se metera na cabeça do Albano?
Ninguém soube como aquilo aconteceu mas, a certa altura, o rapaz era só olhos para ela. Quando Mariana saía a dar os seus passeios, quando ia à missa ao domingo de manhã, ou à venda, a buscar açúcar e arroz, o Albano fazia sempre por encontrá-la. Estava sempre lá, num canto qualquer, à espera. Saía-lhe ao caminho, desbarretava-se, ela sorria, e ele ficava ali apatetado, sem saber o que dizer, até que ela se despedia e se ia embora.
A miudagem começou a meter-se com ele. Os rapazes, quando o viam, punham-se aos beijinhos no ar e riam-se, até que o Albano se enfurecia e corria com eles ao pontapé e aos gritos. Mas a graça pegou, o moço andava mal-encarado.
Na venda, os homens sorriam quando ele entrava. Uma tarde, entre dois golos de aguardente, o Januário entrou a mangar com ele, disse-lhe que  tivesse juízo. “Aquilo não é para o teu dente, ó cachopo”. Era um modo de dizer. Um dichote sem importância, mais para o rapaz descer terra. “Aquilo” não era para o dente de nenhum deles, sabiam-no todos. Por isso se riam do Albano.
O rapaz levou aquilo a peito. Empalideceu, e depois transfigurou-se. Ainda apontou um dedo ao Januário, numa intenção qualquer, mas não conseguiu dizer nada. Saíu porta fora. Foi a última vez que o viram.
Na manhã em que descobriram o corpo no fundão da ribeira, com o rosto já desfigurado e cinzento, a boca inutilmente aberta, a velha Matilde, de olhar desvairado, gritou à porta da capela até perder a voz. Que ela lhe embruxara o rapaz, que lho desgraçara. “Que vai ser de mim”, gemia ela, no meio das outras mulheres, que a ouviam num silêncio receoso.
O enterro foi rápido, numa cova aberta e fechada à pressa num canto afastado do cemitério. De má cara, o padre benzeu o caixão, só se ouviam os gemidos da velha Matilde, transformados numa lamúria cansada. 
Mariana, muito pálida, de lenço escuro na cabeça, também estava lá, um pouco afastada. Parecia perplexa, como se não percebesse o que estava ali a fazer. Ninguém lhe dirigiu palavra. As mulheres olhavam-na de lado, com expressão feroz. Uma delas cuspiu para o chão e desviou os olhos. Os homens baixavam a cabeça.
Durante uma semana, o Januário não apareceu na venda. Voltou uma tarde, já a Primavera se anunciava nos campos e nas árvores. Entrou na venda, pediu aguardente, bebeu-a num único sorvo, e limpou a boca à manga escura da camisa. Depois deu um estalo com a língua e enfrentou os olhares inquietos em volta. “Que se há-de fazer?”, disse encolhendo os ombros. Alguns abanaram a cabeça, concordando. “É”, respondeu um deles. Pediram mais uma rodada, que se havia de fazer?

*Esta história continua

Pensar como uma Montanha 20


Para um átomo encerrado numa rocha, o tempo não passa.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

sábado, 1 de outubro de 2011

Flores de Papel-I



Sabia que viriam. Com as festas a chegar, as flores por fazer e a Albertina tolhida, teria de ser. Não iria ficar despido o andor, isso nunca tinha acontecido antes. Tinha-os esperado todos esses dias, escutando os próprios sonhos, e as vozes distantes, nas tardes mansas, quando um vento morno se levantava nas copas dos pinheiros. Sentava-se na penumbra da sala, na velha cadeira de baloiço e ficava em silêncio, escutando o que lhe pareciam vozes segredadas. Murmúrios, como um rumor de ondas embrulhadas, muito ao longe, que vinham ter com ela, trazendo palavras soltas. Ouvia-as misturadas nos próprios pensamentos, não sabia explicar. Sabia apenas que viriam.
Estavam ali, agora, perfilados na sua frente, embaraçados, num aprumo que não era deles. Olhou-os em silêncio. Deviam ter bebido um copo para ganhar coragem daquela aguardente bruta, que faziam em alambiques desconjuntados à sorrelfa, na penumbra das caves sob o sobrado das casas. Olhou-os um a um, como se o tempo fosse todo dela, encostou-se na cadeira e esperou. Tinham os rostos afogueados, os olhos postos no chão. Podia esperar.
A casa tornara-se mais sombria. Ou talvez fosse uma nuvem passando de manso sobre a aldeia, não importava. De repente, no meio do silêncio, o aparador estalou, sobressaltando os quatro homens. Mariana reprimiu o riso, pensou que fariam mais uma história. “Ali até os móveis gemem”, diriam uns aos outros, baixando as vozes, arregalando os olhos.
Adiantou-se o Joaquim Águas, muito apertado no fato, com a barriga a saltar do cinto, o cabelo ainda húmido mas já a desmanchar-se, e a escorrer suor nas têmporas, apesar da frescura na sala. Apertava a aba do chapéu de feltro nas mãos, sem dar conta. Encarou a rapariga sentada, de olhos serenos pregados nos dele, tropeçou nas palavras. Os outros pareciam perdidos num vazio qualquer.
“A menina Mariana, desculpe”, gaguejou o homem, como que a tomar balanço. “Viemos por todos”. Virou-se para trás, mas os outros três encolheram-se mais. Dissesse o que tinha a dizer, que se despachasse. Por eles nem estariam ali. O Fagundes lançou um olhar ao Águas, quando ele se virou para trás. O outro percebeu, ganhou balanço.
“Sabe ao que vimos.A Albertina, de repente entrevada, as festas à porta e não há flores para o andor. E mais ninguém para as fazer”. A voz esmoreceu-lhe. O Águas queria parar ali, ela com certeza percebera, raios. Mas o silêncio alongava-se, numa agonia. 

*Esta história continua

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dicionário das Ideias Estreitas



H

Hábito (subst)- Aquilo que têm os outros, essas pessoas monótonas e enfadonhas, tão diferentes de nós, que somos sempre divertidos, espirituosos e criativos até mais não. Coisa aborrecida; negativa; mortal.
Hábito, outra palavra para a batina dos padres. Sobre ela especular sempre se não estarão nus lá por baixo e contar uma anedota que envolva padres e sexo.

Hospitalidade (subst) - Consta, entre os portugueses, que são considerados um povo muito hospitaleiro. Como só circula por cá não há ninguém que o desminta. A propósito, falar sempre da quantidade de comida servida nos restaurantes

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 19


Só a montanha viveu o bastante para escutar objectivamente o uivo de um lobo.


Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 18

Parece provável que o mau tempo seja o único assassino tão desprovido de humor e de sentido das proporções a ponto de matar um chapim.
(Foto: Naturlink)

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha , 1949

A dieta de Rita


Zangada, ela tinha olhares tiranos,
dizia o que lhe vinha à cabeça.
Passou-se isto há uma porrada de anos
ninguém espera que lhe aconteça.
A sinceridade pode causar danos,
mas Rita fazia sempre tiro à peça.

Tenho alma tranquila e quieta,
nas mulheres isso dá boa nota.
Mas a minha amada estava em dieta
Andava nervosa, toda espigadota.
Comíamos numa tasca discreta
E ela acabou tudo, pensei que era anedota.

Rita disse que eu era um fracassado
e olhei as escadinhas do Bairro Alto.
Foi assim, à bruta, tudo acabado.
Faltas-me, amor, protestei; não, não falto.
O meu sonho jazia arruinado
E, aqui, o tempo tem de dar um salto.



O amor devia ser simples, no fundo,
dois amantes alheados do mundo
Mas para mim foi um sopro, uma aragem
Falta-me fôlego, um pouco de coragem.

A taberna onde comíamos já não existe
quem a procura mais depressa desiste
É agora parte de um prédio devoluto
um entre muitos nesta cidade em luto


Sou um tolo, um parvo, um otário
Escusado procurarem no dicionário
Quero dizer que gastei a minha vida
Para o tempo me ganhar a corrida


Viver não é mais do que mistério
Andei como anda um surdo ou um cego
Ausente, esquecido, meio aéreo.
Muita raiva e dor não renego
Por um amor, o único que senti a sério
Afinal, tão preciso a magoar o ego


Vinte anos depois, nem a reconheci
Como se fosse um fantasma, ali estava
Anos a mais, menos segura de si
Contou que vivera fora e agora regressava
Perguntou-me o que eu fizera e menti
Também não acreditei no que me contava

Há um epílogo nesta história.
Com a idade, a minha alegria acabou,
as lembranças apagam-se da memória.
Ando por aqui, apenas nada mudou.
Mas agora cabe-me a cruel vitória
Já esquecia: a dieta dela não funcionou.

domingo, 25 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 17

Será a instrução, por acaso, um processo em que se troca a atenção à realidade por coisas de menor valor? Um ganso que fizesse essa troca depressa se tornaria um monte de penas.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

Pensar como uma Montanha 16

A nossa capacidade para percepcionar qualidade na natureza começa, tal como na arte, com o que tem beleza. Expande-se através de estádios sucessivos do belo até valores que a linguagem ainda não captou.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 16

Os pinheiros, como as pessoas, são difíceis de satisfazer no que toca às companhias, e não conseguem abstrair-se das suas simpatias e antipatias. Por isso há uma afinidade entre os pinheiros-brancos e as amoras, entre os pinheiros-vermelhos e a eufórbia em flor, entre os pinheiros-banksiana e o feto-doce.

ALdo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 15

Quando algum dos nossos remotos antepassados inventou a pá, também ele se tornou um dador: capaz de plantar uma árvore. E quando o machado foi inventado, tornou-se um tomador: podia abatê-la à machadada e reduzi-la a cavacos. Quem quer que seja proprietário da terra assumiu assim, quer o saiba ou não, as funções divinas de criar e destruir plantas.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Equinócio



A casa era igualzinha à minha, mas o chão tinha soalho flutuante escuro e nas paredes havia muito mais quadros e fotografias. Numa delas aparecia uma criança de cabelos loiros e olhos muito abertos, que identifiquei de imediato como a Luizinha, e a que tirei o pó com um dedo e dois valentes sopros.
O sofá estava coçado nos encostos e tinha uma cova no assento da ponta, onde ela se reclina a ler revistas ou a olhar o vazio.
A sala cheirava a chocolate, como se tivesse ficado acesa uma daquelas velas aromáticas. O que eu não dava por uma mousse! Espero que a Luizinha saiba cozinhar, que fast food não é nada saudável. É uma verdadeira praga, esta coisa do take away, se bem que dá jeito para comer sentado no sofá, frente à televisão. Liguei o aparelho dela – um velho LCD – e pus em mute. Na SIC Notícias falavam de nós, num directo junto ao portão de um dos institutos. Em rodapé corria «Mais de duzentos internados libertados esta manhã». «Suspeitos de comportamento amoral estão a ser deixados em casa». « No Jornal da Noite, entrevista exclusiva com a cineasta Raquel Freire – um dos internados de Beja».
Da cozinha chegava um apito constante, uma espécie de alarme. Devia ser o frigorífico a queixar–se da comida fora de prazo. Fui à janela para ver a minha casa. Os meus estores estavam todos levantados, e viam–se as paredes nuas. Por uma das portadas podia vislumbrar–se o tripé dos meus binóculos. A casa não parecia remexida, mas alguém foi arejá–la. Provavelmente a minha mãe, que é a única que tem uma chave.
O Outono chegava convicto e lavado. A rua estava cheia de folhas caídas, pintada de dourado duma ponta à outra. A lua já espreitava no meio de nuvens vagas, num céu plúmbeo que se confundia com a fachada dos prédios, mas acolhedor.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 14


Os actos de criação estão habitualmente reservados aos deuses e aos poetas, mas as pessoas mais humildes podem contornar esta restrição se souberem como. Para plantar um pinheiro, por exemplo, não é necessário ser deus nem poeta; apenas é necessária uma pá.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

domingo, 18 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 13


A única conclusão a que alguma vez cheguei é que amo todas as árvores, mas estou apaixonado pelos pinheiros.

sábado, 17 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 12


Sei de um quadro tão evanescente que raramente é visto sequer, excepto por algum veado vagabundo. É um rio quem maneja o pincel, e é o mesmo rio que, antes que eu possa trazer os meus amigos para verem o seu trabalho, o apaga para sempre da vista humana. Depois disso, o quadro existe apenas no olhar da minha mente.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 11


Os funcionários cadastrais são uns sujeitos dorminhocos, que nunca verificam os registos prediais antes das nove das manhã. (…) Com cadastro ou sem cadastro, é um facto que ao nascer do dia eu sou o único proprietário de todos os hectares que for capaz de percorrer.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 10


Quando tento lembrar-me das minhas mais antigas impressões, fico a pensar se o processo a que habitualmente se chama crescer não será de facto um processo de encolher; se a experiência, tão gabada pelas adultos como aquilo que falta às crianças, não será uma diluição progressiva das coisas essenciais do trivial da vida.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Dicionário das Ideias Estreitas



G

Gamar (Verbo)- Roubar, subtrair, retirar sem consentimento do proprietário
Diz-se de todas as pessoas ricas e políticos em geral que gamaram .
A palavra deve ser dita baixando o tom de voz, fazendo uma expressão de quem vai dizer um segredo e girando os dedos em espiral. Este movimento hábil da mão é, como se sabe, imprescindível a qualquer ladrão.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 9


A capacidade de apreender o valor cultural da natureza selvagem reduz-se, em última análise, a uma questão de humildade intelectual. O homem moderno de mente superficial, que perdeu o seu enraizamento na terra, julga que descobriu já o que é importante; ele é do género de se pôr a palrar de impérios, políticos ou económicos, que hão-de durar mil anos.

Diário de ideias soltas (5)



Transeuntes

O que fica da vida vai ficando
é encolher os ombros e ir andando.
O polícia suspira, não há nada para ver
circulem, circulem, vamos a mexer
e a multidão passa, deita a vista
olha com a curiosidade do turista.

O passeio compacto, é preciso paciência
e não esquecer os deveres da obediência.
Barulho frenético, a enorme agitação
todos calados, em vaga onda de emoção
e o agente continua a ladainha
vamos a andar, que a rua está cheiinha.

Circulem, vamos, que a cidade não pára
nem para ver um atropelado sem cara.
Acidente de tráfego à hora de ponta
mas continuar na vida é o que conta.



Também publicado aqui

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 8


A nossa sociedade do sempre-maior-e-sempre-melhor comporta-se hoje como um hipocondríaco de tal forma obcecado com a sua própria saúde económica que acabou por perder a capacidade de permanecer saudável.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 7


Uma virtude peculiar da ética da vida selvagem é que habitualmente o caçador não dispõe de uma plateia que aplauda ou desaprove a sua conduta. Sejam quais forem os seus actos, eles são ditados pela sua própria consciência e não por uma multidão de espectadores. Não é demais insistir na importância desse facto.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Diário de ideias soltas (2)


Ao ler uma História da China, de John Keay, deparei com a personagem do imperador Hongwu, ou Zhu Yuanzhang, que governou durante 30 anos, no século XIV. Zhu era um camponês e tomou o poder após uma revolta e a guerra civil que levou à queda da dinastia Yuan, consequência do caos que se seguiu à peste negra. O fundador da dinastia Ming é hoje visto pelos historiadores como um unificador que impôs a ordem no país. Todos os dias condenava pessoas à morte, mas o pormenor que mais me interessou foi o conceito de “execução até ao quinto grau”. Um dos métodos de matar os condenados era esquartejamento lento, mas este quinto grau não dizia respeito ao requinte na forma, mas sim à extensão da colheita. O ministro em causa chamava-se Hu Weiyong e os documentos sobreviventes dizem que teria sido demasiado poderoso, corrupto ou incompetente, não se sabe ao certo. Em 1380, este ministro foi condenado ao quinto grau, o que implicou a morte de 30 mil a 40 mil dos seus familiares, até ao quinto grau de parentesco. Segundo se conta, um confuciano escandalizado com estas prepotências apresentou-se perante o imperador e criticou-o. Vinha acompanhado do próprio caixão e, após terminar a sua crítica, deitou-se dentro dele. Impressionado com a coragem deste homem, o imperador, por uma vez, exerceu a clemência.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 6


Quem possuir um velho carvalho de grandes bolotas possui algo mais do que uma árvore. Possui uma biblioteca histórica e um lugar cativo no teatro da evolução.

Diário de ideias soltas (1)

Passeio breve. Muitos trabalhadores vieram de férias e o trânsito está outra vez caótico. Em três locais diferentes, pessoas discutiam. Uma rapariga gorda gritava para um velho, talvez com razão; sandália chã, como se usa agora, a blusa sem chegar à calça, mostrando um pneu de banha a nível da cintura. Um velho e uma velha sentados num dos novos bancos de jardim gritavam um com o outro: “Deixe-me falar”, explodiu ele, a certo ponto; não percebi o tema da discussão; quando reparei neles, aquilo continuava: iam ao fundo da rua, ele atrás dela; chegaram a um prédio e entraram.

Sol manso, ar de cristal, ocorreu-me isto:



Observo o esplendor do dia

Que passa em morna monotonia

Dois velhos discutem

Ela exige que a escutem

E diz ele, deixa-me falar

Não há meio daquilo acabar

Se houvesse só gente amável

O mundo seria mais suportável

Mas talvez fosse muito banal

Sempre a sorrir, sempre igual
 
também publicado aqui

domingo, 4 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 5

A canção de um rio significa em geral a música que as águas tocam tendo como instrumentos as rochas, as raízes e os rápidos. (…) Para ouvir nem que sejam umas poucas notas dessa canção, é preciso em primeiro lugar viver-se aqui por tempo prolongado, e aprender a conhecer o discurso das colinas e dos rios. (…) Cada rio canta a sua própria canção, mas na maior parte dos casos a canção foi desde há muito desfigurada pelas desarmonias provenientes dos maus tratos. (…) Existiram outrora homens capazes de habitar um rio sem romperem a harmonia da vida que nele vivia.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 4


Todas as pessoas desiludidas deveriam passar a

segunda semana de Maio numa mata de pinheiros
.

[Sobre a Primavera no Estado do Wiscousin, EUA]

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 3


Todas as profissões recorrem a uma pequena manada de epítetos, e necessitam de pastagens onde eles possam correr livremente. Por isso, os economistas precisam de encontrar algures campo livre para o seu linguajar preferido, por exemplo 'submarginalidade', 'regressão' e 'rigidez institucional'.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Pensar como uma Montanha 2


O Homem mata sempre as coisas que ama, e por isso nós, os pioneiros [americanos], matámos a nossa natureza selvagem. (…) Para que servem tantas liberdades sem um único ponto vazio no mapa?. Aldo Leopold, 1949

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Dicionário das Ideias Estreitas



F

Felicidade - Sobre ela deve dizer-se sempre: é o que as pessoas mais querem da vida. Desígnio último do homo-consumus. Como se sabe, é uma meta inalcançável para quem não compra todos os produtos dos anúncios publicitários, para quem não casa, não fode, não tem filhos e para quem não aparece na televisão.

Dicionário das Ideias Estreitas




E

Elefante Branco - Espécie animal rara mas que abunda em Portugal. Diz-se de qualquer obra iniciada pelo Estado é mais um elefante branco

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Histórias de jornalistas III (O lanterna vermelha)


“Naquele tempo, as estradas eram infernais, cheias de buracos e havia perigos escondidos em cada curva. Andar na volta a Portugal em Bicicleta era uma coisa de doidos, para homens como já não se fabricam. Você, que é jovem, pergunta-me qual o momento mais fantástico a que assisti, mas não consigo escolher, de tantos episódios que me ocorrem. A memória é estranha, menino, as coisas misturam-se, baralham-se, mas o que mais tento lembrar são aqueles homens já esquecidos, os lanternas vermelhas que se arrastavam atrás do pelotão, derrotados e, no entanto, persistindo sem fôlego montanha acima, sem aplausos do público, quantas vezes com o escárnio dos que nas margens das estradas só viam o heroísmo sem verem o sofrimento. Para mim, esses eram os melhores, os que nunca desistiam, seguindo sozinhos, acompanhados apenas pelas suas dores”.