segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Ainda por cima nem sequer é loura!

Foi há breves minutos. Eu e a minha vizinha “loura“, aquela que me rejeita, que me repudia, que me bloqueia, que nada quer comigo no Face, trocámos breves olhares à porta do supermercado.


E faltou-nos a “fulminância” do olhar. Um quase ódio estampado na face foi o máximo que lhe consegui.

Chocado percebi que nunca haverá intimidade, qualquer cumplicidade entre estas nossas duas almas. Não fazem chispa. Não há fogo, nem nada arde sem se ver. De nada me vale saber que usava roupa interior rosa, pois vi que faltava hoje esse conjunto no seu estendal.

Triste, apeteceu-me gritar-lhe: ÉS A MINHA DESMUSA! ÉS A MINHA DESMUSA!

Sentindo-me traído pelo destino, uma forte tentação quase me fez cuspir em todos os livros do Paulo Coelho que vi numa livraria ao lado. Mas tive que correr. A padaria estava a fechar!

sábado, 25 de setembro de 2010

O pão e o plástico




Na Viena da sua infância dos começos do século XX, Bruno Bettelheim adorava os cacetes quentinhos que eram a mais conhecida especialidade da padaria Âncora. Devorava-os ao pequeno-almoço e entre as refeições. Foi esse prazer do jovem Bruno pelos pães Âncora que o ajudou, como partilhou num dos seus ensaios, a perceber mais tarde as madalenas de Proust.  
Talvez o odor, sabor e textura desses cacetes tenham regressado pela ausência à memória de um esfomeado e já adulto Bruno, durante esse ano de aparência interminável que passou entre os campos de Dachau e Buchenwald.
Em 1983, o autor de Psicanálise dos Contos de Fadas representou o seu próprio papel em Zelig, tal como Saul Bellow e Susan Sontag. Woody Allen escreveu uma vez: "Podes viver até aos cem se abdicares de tudo o que te dá vontade de viver até aos cem". Bettelheim viveu até aos 87. Depois abdicou dessa vontade de viver e de tudo o resto, incluindo a decadência da mente e do corpo, asfixiando-se enfiando a cabeça num saco. Entre o cheiro do plástico misturado com o do seu último hálito e o aroma do pão saído do forno decorreu uma vida. 

Sonho

Encontrei esta notícia bem interessante, de um robô que quer ser artista. Vi os seus quadros e lembrei-me de uma história que podem ler aqui, se tiverem a paciência. Foi escrita em Agosto de 2009. Será porventura um bocadinho sentimental, mas alguns robôs talvez saibam sonhar.

Please allow me to introduce myself

Permitam-me que me apresente: sou o Pedro Beça Múrias... sim, aquele das salas de espera...

Aqui vos deixo o meu cartão de visita, ou a minha vida contada em entrevista a Nuno Costa Santos.

Abraços

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Solidão

Há momentos em que é preciso mudar de vida. Momentos em que nos forçam a olhar para trás e vemos que não há ali nada.
Estes acidentes de percurso têm a utilidade de nos obrigar a ver as contrariedades a uma luz diferente. As humilhações mais sérias dizem-nos que o tempo à nossa frente é sobretudo escasso e que adiámos tudo o que era importante. Dizem que nos enganámos no caminho, que demos demasiados passos em falso, que nos gastámos em episódios já esquecidos, que somos do passado que não regressa e que nos perdemos no tempo.
Mas pouco importa, no fundo, que o sabor amargo da vida nos domine e nos arrase, desde que seja possível aprender com ele.
Aprender que se nos enganámos no caminho só resta sair da estrada interdita e inventar novas veredas, as do espírito, as da liberdade.
A escolha é sempre a via solitária e a solidão é triste, mas necessária. Não precisa de disfarces nem de desculpas.

Quando te dizem que não és ninguém, então podes finalmente assumir que és tu próprio.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A crise financeira segunda Átila, o Huno


O magnificente Átila, o Huno, tinha um pequeno problema de tesouraria e mandou chamar o conselheiro Paupérrimus, que tinha sido contratado em Roma, na escola liberal de finanças da Rua Áurea.
“Miserável verme Paupérrimus, mandei empalar os meus cinco anteriores ministros das finanças, esses traidores, mas continua a faltar-me dinheiro. Que devo fazer?”
“Oh, esplendor das estepes, podíamos recorrer ao clássico de mandar privatizar a economia”, disse Paupérrimus, que tremia como varas verdes.
“Isso não dá. Está tudo privatizado em meu nome. Podia tentar vender os nossos assessores romanos, mas julgo que ninguém está disposto a pagar por eles…”
“O problema, ó sublime académico e ditador imprevisível, é que para equilibrarmos as contas temos de colocar as despesas iguais às receitas, portanto, ou baixamos as primeiras ou aumentamos as segundas. Por isso, parece-me lógico proceder a um aumento de impostos”.
“Os hunos não gostam de pagar impostos, toda a gente sabe isso, ó insecto rastejante. E se a taxa de IRS já está em 100%, não vejo como é que a posso aumentar. Até eu, que sou analfabeto, sei fazer essa conta”.
“Uma redução da despesa do Estado, então…”
“Pareces um jumento, ó Paupérrimus. Isso nunca foi tentado, porque é impossível. A despesa alimenta o monstro e se deixas de alimentar o monstro, ele devora-te. Isso é o Bêabá da política, ó francamente estúpido”.

“Mas se continuamos a gastar assim, mais do que aquilo que temos, vamos continuar a acumular dívida e estaremos sob o ataque dos mercados…”
“Estamos a ser atacados? O Grande Átila o Huno está a ser atacado? E ninguém me dizia?”
“É uma metáfora, ó grandioso e sublime terror dos pusilânimes. Na realidade, os mercados fazem subir os juros da nossa dívida, de forma que esta se torna cada vez maior. É como se vossa majestade grandiloquente tentasse cavalgar levando um peso que aumentava ao longo do tempo. A certo ponto, o cavalo entrava em colapso e vossa soberba perfeição teria de prosseguir a pé”.

“Não gostei nada dessa tua metáfora, ó velhaco ululante”.
“Peço infinitas desculpas a vossa melhoria, mas os cofres do estado estão vazios e os credores estão à porta”.
“E de onde são os nossos credores?”
“De Roma”.
“Os que estiverem à porta, manda-os passar à espada. Isto de ser atacado pelos mercados não me agrada. A melhor solução é retribuir. Onde ficam esses mercados?”
“Em Roma”.
“Pois bem, invadimos Roma”.

Átila estava tão contente com a solução que encontrara para a crise financeira que colocou o braço no ombro de Paupérrimus, até com algum afecto e cumplicidade.
“És um bom conselheiro, infeliz e deplorável lombriga, e como és também um homem do mundo, queria fazer-te uma pergunta: como é que são as romanas?”
Paupérrimus ainda pensou em dizer que a invasão de Roma ia aumentar a despesa, devido aos custos da campanha militar, mas teve o bom senso de responder à pergunta:
“São bonitas”.
“Sempre quis ter escravas romanas. Ouvi dizer que têm mamas grandes”.
Neste ponto, o conselheiro foi demasiado profissional e franco. Tentou desfazer o equívoco:
“Pelo contrário, ó imperador das planícies infinitas. As mulheres romanas são obcecadas pela magreza e só comem saladas”.
Átila ficou pensativo. Depois, um pouco irritado, ordenou:
“Não faz mal, ó pobre ignaro. Vais colocar uma nova rubrica na coluna das despesas do Estado: um programa de engorda para as minhas futuras escravas romanas. Valerá bem o custo. Terão refeições de hora a hora e tudo do melhor, bolos com natas, carne suculenta e nada de saladas”.



segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Das crónicas de um misantropo (2)

A terra do esquecimento
Por muito que me esforçasse, nunca fazia bem as tarefas. Um dia, numa aula de ginástica, usei a camisola interior debaixo da camisola de ginástica e o professor obrigou-me a mudar de roupa em frente aos outros miúdos. Eu disse que tinha frio e chorei, mas ele não ligou: a camisola interior era contra as regras e tive de me despir em frente aos outros.
E como eu odiava os saltos de cavalo. Não conseguia dobrar as pernas e no impulso do salto chocava com os joelhos e estatelava-me do outro lado. E o professor de ginástica praguejava, a tentar que eu não partisse a espinha do outro lado e obrigava-me a repetir o salto. E os outros miúdos riam-se de mim, porque eu era o gordo. Para mim, era tudo mais alto e mais difícil, pois o corpo nunca me obedecia. E achavam que era a falta de vontade, a minha preguiça, mas juro que por minha vontade queria voar por cima daqueles obstáculos. E caía, como um pássaro ferido nas asas. 
E nunca me deixaram jogar à bola, nem sequer a guarda-redes.

Chamavam-me nomes e davam-me pontapés, e um dia roubaram-me a carteira de cromos que eu tinha comprado numa papelaria muito pequena que havia junto à escola e onde havia revistas e jornais e, confesso, já não me lembro bem se eram cromos ou selos, mas foi no choro dessa tarde que decidi deixar de ser coleccionador de coisas do passado, ao contrário do que fazem as pessoas normais.
A partir daí, não fiquei com mais nenhuma recordação. Não existe nenhum objecto que me apeteça guardar, nem uma fotografia, nem nada. Nenhuma memória, nenhuma pessoa.
Se me esquecer de tudo o que me aconteceu, talvez deixe de ser aquele em que todos reparam. O mais ridículo, o que faz toda a gente rir.

Os rapazes que conheci na escola cresceram e ficaram grandes. São adultos e têm recordações da infância. Mas eu não cresci, de alguma forma não cresci. Sei que se não tiver recordações, então não viverei no presente, mas poderei habitar no passado, onde já ninguém ficou. Por isso, sou o único habitante da terra do esquecimento, esse lugar infinito e solitário onde me sinto livre. E tenho toda a vida à minha frente.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Das crónicas de um misantropo (1)

O regresso a casa
Sempre me consideraram infantil, uma espécie de criança grande, como dizia um tio meu que era igualzinho a mim e que nunca chegou a crescer.
Agora, tenho quase 40 anos, mas sinto que ainda não cheguei aos 30. Fui virgem até aos 25 (ou seria até aos 26?); e percebo risinhos aí desse lado, mas podem ter a certeza de que não sou caso virgem. Os rapazes são todos gabarolas e usam a imaginação para fingir que sabem tudo sobre sexo, quando na realidade não sabem nada.
Nunca tive jeito com as mulheres. Fico vermelho quando percebo que uma delas se interessa por mim, até no caso das feias, ou talvez ainda mais no caso das feias, pois nunca estive com uma bonita. Por timidez. E as namoradas feias têm a vantagem de não estarem muito beneficiadas nesta competição por parceiros e, por isso, não nos trocam por um nadador salvador.
Pelo menos é o meu caso. A minha Cristina trocou-me por um tipo que trabalha num call-center. Ela gostou sobretudo da voz dele.
Às vezes, penso que as mulheres são quase tão inseguras como eu. É um pensamento que me tranquiliza, mas devo estar errado.

Se eu tivesse na altura mais maturidade, nunca teria ficado com a Cristina. Havia até aquela canção antiga, "Cristina, não vais levar a mal, mas beleza é fundamental". Uma vez queria brincar com ela e cantei aquilo e levou mais de uma semana a esquecer-se.
No outro dia, por causa do meu rival, pôs-me na rua, sem mais cerimónias. Afonso, não passas de uma criança grande, disse ela. Volta para a tua mamã.
Foi o que fiz.

A mamã está velhota e vive na nossa casa antiga, de onde saí há dois anos para ficar com a Cristina que agora me deu uma guia de marcha. (Faz-me lembrar os tempos da tropa, mas conto noutra crónica).
Fiquei com o quarto antigo e foi uma boa sensação poder regressar à vida privilegiada de um adolescente.
Quando pôs a comida na mesa (Ah! os sublimes sabores da infância!), a mamã ainda me ralhou e pensei em dizer-lhe, mamã, tenho quase 40 anos, mas depois achei que o ralhete me agradara, porque fora dito num tom maternal e suave que a Cristina nunca teve quando barafustava comigo.
Hoje, senti-me outra vez com 29 anos. E espero chegar aos 19 ainda esta semana. Dentro de 15 dias, terei outra vez dez anos, que é a idade mais feliz. Depois, tenciono ficar por lá, que foi o que aconteceu com o meu tio Bernardo, que quando morreu tinha 70 anos no bilhete de identidade, mas que não passava de uma criança grande.

Tudo isto tem um lado negativo: terei provavelmente de abdicar das mulheres. E eu gosto de mulheres, teoricamente gosto, embora não as compreenda.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Consultório do doutor Benji (3)


Dr. Benji. Estivemos as duas numa grande aflição porque os nossos macaquinhos foram viajar. O que nos aconselha a fazer no futuro? (Bicas e Tricas, Lisboa)
Tomei conta dos vossos macaquinhos durante as férias e, deixem-me ser franco, a vossa vida deve ser uma barra pesada. Raramente tenho encontrado seres humanos tão ineptos. Horários de comida baralhados, não trocam a areia, poucas festinhas e um menu à base de comida enlatada. Pescada, nem vê-la. Não se enxergam, passam o tempo a dormir e a filosofar e, pior ainda, têm aquele irritante sentido de humor que me parece ser de longe a pior característica humana. E não se calam, sempre aquele blá-blá-blá monótono. Da próxima vez que eles forem viajar, façam de conta que não deram por nada e tentem esconder o bilhete de avião de volta. Como são muito incompetentes, estes dois macaquinhos embarcam para férias e só lá é que vão perceber que já não podem regressar à vossa casa.

Nunca percebi a dieta humana, dr. Benji. E odeio quando a minha tia me tenta dar daquela comida horrível. Que fazer? (Napoleão, Cascais)
Dadas as suas origens sociais, meu caro, o problema deve ser bastante grave. Pedaços de brioche pela manhã, camarão à tarde e caviar à noite. Lamento o seu pesadelo. A única solução que vislumbro é tentar provar à sua dona, à sua tia, quero dizer, que tudo o que entra pela boca mais tarde ou mais cedo sai pelo rabo. Tente arranjar algum cocó de animais repugnantes aí do jardim e espalhe pela casa, em locais estratégicos, num protesto firme. Como sabe, as classes altas odeiam protestos e têm horror a reivindicações. Mas nunca deixe de ser um gato elitista, caro Napoleão. Baixar o nível seria um erro. Quando a sua dona, perdão, a sua tia, lhe fornecer de novo comida de gato, exija marcas cujo preço seja compatível com o estatuto que merece.

Vi na televisão que existe uma crise financeira e que o desemprego aumentou. Devo preocupar-me? (Lenine, Barreiro)
Não. A situação para os macaquinhos humanos parece ser séria, mas o problema do desemprego não se coloca para os gatos, pela simples razão de que os gatos não trabalham. Há ainda alguns no sector primário (camponeses) que apanham ratos e pequenos pássaros, mas nós, os urbanos, temos uma vida regalada e podemos dedicar-nos à especulação filosófica. O meu amigo é um gato suburbano, com os seus problemas específicos, mas no essencial evite qualquer esforço, exija sempre o melhor e mantenha a ditadura do gatariado aí na sua casa. 

sábado, 4 de setembro de 2010

O nenúfar de Alexandra



«Existem apenas duas coisas: Amor, todos os tipos de amor, com raparigas bonitas, e a música de New Orleans ou Duke Ellington. Tudo o resto deveria desaparecer, porque tudo o resto é feio».
Foi esta a epígrafe escolhida por Boris Vian para “A Espuma dos Dias”, livro que Alexandra Lencastre em entrevista hoje publicada na revista Única afirma reler todos os anos.
Imagino Alexandra no lugar de Chloé, essa rapariga bonita, superlativamente amada mas condenada à morte por um nenúfar parasita no pulmão, que lentamente lhe vai sorvendo toda a água do corpo e lhe corrói  os tecidos. 
"A Espuma dos Dias" foi dedicado por Vian à sua primeira mulher, Michelle Léglise, que nesta fotografia surge ao lado de Simone de Beauvoir. Junto de Vian está Jean-Paul Sartre, rebaptizado no livro como Jean-Paul Partre e cujos fãs são satirizados pelo seguidismo acrítico.
É uma obra que descreve, para além da mulher que atrofia rodeada de flores e que o amor dos outros é incapaz de salvar, uma casa, um lar, que progressivamente também reduz o espaço e asfixia quem nele vive.
É um livro que merece bem ser relido. Mas quem o lê todos os anos, como Alexandra o faz, não pode deixar de ser alguém que sofre. Por mais amor ou flores que tenha à sua volta.