domingo, 26 de dezembro de 2010

As múltiplas camadas


A escrita de jornal faz lembrar a música ligeira que passa na rádio. A informação é simples como uma melodia, faz parte do quotidiano, mas ninguém lhe presta verdadeira atenção. Ouve-se no carro, no meio da fila de trânsito, ou distraidamente em casa. Tem consumo rápido e absorve-se da mesma forma que o alimento básico. E a uma canção segue-se outra parecida, criando-se a rotina e o hábito.
Por vezes, quando ouvimos uma música particularmente feliz, queremos saber quem a cantou. Mas isso é raro. Geralmente, este é um mundo quase anónimo, que se esgota em pouco tempo. Mas há excepções e é possível que uma canção popular resista décadas.

A escrita de blogue também é efémera. Faz lembrar aquilo que ouvimos num clube de jazz. A atmosfera é densa, do fumo, das sombras, das conversas murmuradas; no palco, os músicos tentam divertir-se com improvisações e peças mais meditadas, onde investiram uma dose de criatividade. Mas o público está meio desatento. Por vezes, fixa a atenção num ponto apenas agradável ou deixa-se embalar num curto sonho. As pessoas que vão ao clube de jazz querem ver virtuosismo, sem compreenderem que este domínio da técnica faz parte do fogo-de-artifício e, por definição, consiste num género de espectáculo sobretudo vazio de conteúdo, embora vistoso.
Gosto de clubes de jazz, embora não entenda muito bem as pessoas que não sabem apreciar o ambiente e não respeitam os músicos, a ponto de fazerem barulho, como se estivessem na pista de dança para se mostrarem.

A escrita literária é exigente. Lembra um quarteto de cordas. Há espaço para interpretação, até para a pequena liberdade fiel à época, mas tudo se baseia num trabalho silencioso e a prazo que visa a perfeição inalcançável entre várias vozes que têm a sua própria personalidade. Há modelos de base, anos de estudo, exames difíceis, formas a respeitar, tradição a conhecer. Exige cultura sólida e tempo de treino.
A literatura é complexa e o público tem dificuldade em distinguir as boas interpretações. Por vezes, há um nome que os media repetiram, recomendado por especialistas. E aquele estilo torna-se na bitola que se exige depois a todos os outros quartetos, o modelo dos clássicos.
E o que se pretende? A precisão milimétrica, mas sem perder o carácter. Não existe arte sem espontaneidade. Mais importante ainda será a sinceridade do intérprete. Quanto mais exposto e vulnerável, maior a vibração, a intensidade e a força.
À medida que procuramos a essência humana nas camadas sucessivas de escrita que vamos escavando, o que encontramos é fragmentado e menos claro, mas também mais profundo. É o que fica do nosso passado, a verdade íntima que não poderíamos confessar de outra forma. Porventura as cinzas daquilo que arde no nosso espírito.   

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Chegamos a gostar de pessoas que não conhecemos

Um email. Agradeço o convite, ignoro condicionantes de tempo, claro que aceito escrever no Emoções. Conheço todos, de outras paragens blóguicas, excepto o Pedro Beça Múrias. Investigo: há posts recentes, entre um poema de Teixeira de Pascoaes e uma desmusa de olhar hostil. Há o Facebook, onde topo com um sorriso ao longe, uma cabeleira laranja, uma menina às cavalitas. Fico com uma ideia, fico a gostar da ideia com que fico, sigo em frente.
É uma ideia low profile, não se impõe, deambula por ali, bolhinha translúcida e livre. As bolhinhas são as imagens, ocupando poucos bits, de pessoas que sabemos mas não conhecemos.
Sem tempo para abraçarmos novos outros com o espaço de antigamente (dizem..), é contudo possível circularmos por aí com uma ou duas bolhinhas dentro de nós. Ou mesmo, sem levantar suspeitas, vivermos com um interior enfeitado de bolhinhas pé-de-seda , vogando algures num limbo onde o cérebro não magica e o coração faz contas. Uma espécie de efervescência zen.
Falo por mim. O Pedro BM era uma das minhas bolhinhas. Dele, que amigos comuns me descreveram como um amor de pessoa, eu não cheguei a saber se tinha por hábito passear em shoppings desertos ao início da manhã, se era homem para gostar de rosas a cheirar a chá, se embirrava com o cinismo de alguns jurados de televisão ou enjoava no eléctrico para a Graça. Dele só tive a respectiva bolhinha ideal.
Quando finalmente se conhece alguém, sucede a bolha em causa romper-se face à realidade, a qual, com sorte, fica a ganhar-lhe. Outras vezes, ao medirem-se frente a frente, bolha e pessoa, fantasia e realidade fundem-se, anulam-se mutuamente e nunca mais se ouve falar delas. Outras vezes ainda, uma bolhinha desperta na brutalidade de uma notícia, incha na certeza de que nenhuma realidade tomará um dia o seu lugar - e dissipa-se então num texto inábil, numa veleidade informe que, por bem intencionada, espera não ofender ninguém.
Porque, se é verdade que por vezes não conhecemos suficientemente bem as pessoas de quem gostamos, também chegamos a gostar de pessoas que não conhecemos.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Desencontros


Pensara, sem o dizer de forma explícita, que a paixão era exagero, como o trovão ou a dor de dentes. A eternidade, um museu de silêncio. E as palavras, solas gastas de caminhar no chão duro da estrada.

A febre, a congestão em torno da garganta, perturbavam-lhe o raciocínio. Queria explicar aquela repentina ideia de não poder existir na ausência dela, mas estava a fungar do nariz e sofreu um irreprimível espasmo que lhe contraiu o peito, como se um elefante se tivesse sentado sobre as suas costelas; e houve aquele desejo enorme de se libertar do peso concentrado nos músculos, a vontade de explodir como um guerreiro santo. E foi isso que fez: espirrou com liberdade e alívio na direcção da mulher que (descobrira isso cinco segundos antes) começara a amar com uma forma de paixão que era exagero. O espirro soou a trovão. Felizmente, não sentia dor de dentes, isso seria azar histórico, já que tinha uma dor de cabeça que se acumulava como gás liquefeito em lata de estanho fino.

Mal tivera tempo para tapar a boca com a mão. A rapariga recuou do espirro e olhou para ele, com uma expressão assassina. Sentiu-se trespassado por mil agulhas de angústia alheia. Os outros passageiros tentavam virar as costas e, de facto, ficaram só os dois a olhar-se um ao outro, num confronto, como amantes zangados, cercados pelas costas ostensivas dos passageiros, que tinham criado um muro de betão para a privacidade deles.
O autocarro deu um súbito solavanco e imaginou que alguém tivesse atropelado um cão solitário, ou algo assim, mas tinham passado por dentro de um buraco cheio de água, formando uma onda que vergastou o passeio onde duas velhinhas tentaram ainda, com os seus frágeis guarda-chuvas, impedir a chapada de água. Um dos guarda-chuvas era amarelo, o outro encarnado. Ficaram ambas as velhinhas a pingar e a gritar para os passageiros da traseira do autocarro, que tinham contribuído para a temível onda. Lembrou-se da história da borboleta: o seu peso ajudara a provocar um mini-tsunami urbano.

As costas dos passageiros oscilavam para cima e para baixo, das gargalhadas que se ouviam sem se ver. Era um pouco como o espasmo antes do espirro, mas só com riso.
Distraído no seu casulo, sabia que se transformara num pária, a enfrentar a sua amada assassina, que não se conseguia virar de costas, presa entre os corpos comprimidos. Ela tinha caracóis louros e um olhar doce, agora transtornado. Os germes da constipação tinham voado por toda a cabina. Era inverno e estas coisas propagam-se, pensou, filosoficamente.
Em breve, a gripe estaria em todas as cabeças e ainda sentiu uma espécie de formigueiro, ao aperceber-se do museu de silêncio que cobria a eternidade. Uma mulher gorda olhou-o com fúria, mas ele sorriu-lhe em resposta, no exacto instante em que rebentou num imparável impulso de tosse cava. Tossiu, tossiu, libertando-se das entranhas. E a rapariga por quem se apaixonara deve ter sentido um pouco do bafo quente da sua respiração, moveu pobremente o braço, desalentada, e inspirou profundamente, embora não o quisesse fazer.
Por vezes, as pessoas fazem o contrário do que querem.

O autocarro chegou à paragem inundada e travou com estrondo. Os passageiros tombavam uns em cima dos outros, mas é o mesmo que acontece com os pinguins (vira isso num documentário) protegem-se uns aos outros com os corpos, amparam-se e não caem. Imaginou: se os pinguins caírem, será uma queda em dominó.
Saiu do autocarro e sentiu o vento refrescado. Era inverno e encheu os pulmões com ar impuro da cidade. A rapariga também saiu naquela paragem, dirigindo-lhe um insulto de despedida. Nunca mais a veria. Um amor morrera à nascença. Observou-a melhor, olho de perito: não perdera nada de especial, tirando os caracóis louros e a expressão doce.

E em passos cada vez mais febris, largou as solas dos sapatos molhados no chão escuro e endurecido da estrada. Alcatrão do melhor, lisinho e lixado.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Esse é o teu nome

Se deixarmos que o nosso Outro esqueça

esse nome que tivemos para Ele,

não mais beberemos das infantis marés

ébrias de Sol e prata cintilante.


Faremos a última viagem

clamando no topo do mastro, através desses dias

impelidos por azulada fúria

sem bancos de jardim ou beijos e bicicletas.


Se permites que o teu nome secreto se perca

eis que algo morre e viral arrasta nessa morte,

para sempre,

o quase Deus que vos ungiu.


Defende esse nome com a própria carne,

a tremeluzente dor vermelha de existires.

Ergue as memórias e os desejos,

espadas flamejantes perante os teus olhos fechados.


Não desistas e guarda cada uma das vontades

entre o vazio de todas as gavetas que tens dentro,

porque transparente e invisível

é aquele que se esquece de si mesmo.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O crítico


O crítico passou-se depois de arrasar um livro que não tinha lido.
Era uma figura com quem ninguém falava. Entrava na redacção e sentava-se na mesa do fundo, escrevendo os textos com uma caneta de tinta permanente que desenhava uma letra elaborada que depois os tipógrafos tinham dificuldade em decifrar. Todas as semanas aparecia no mesmo dia, a cabeleira comprida sob o chapéu fúnebre, a bengala com topo de marfim, os dedos da mão direita sempre azuis da tinta. Entrava com um gesto vago de cumprimento e saía mudo.
Um dia, notaram que parecia ter enlouquecido de algum mal súbito. Foi depois de arrasar um livro que não tinha lido. Veio na semana seguinte a saber-se destes factos, entrou mudo na redacção e sentou-se a escrever jogos de palavras com um montinho de frases que pouco mudavam. Escrevera numa das folhas o seguinte: “Aquilo que envelhece devagar quase magoa e na extensa morte que aparece sangram as feridas que não param até que enlouquece a profunda noite e um vento parvo insiste e repisa a adormecida parte. E arrefece. Ao reencontrar a certeza grito de medo e transparece em mim uma solidão cruel que é apenas uma ausência, alma que se percebe exangue e sem vida, sem dor alguma, na doce amargura perene de sumaúma que no fim sobra. E quem pede não recebe, é a fugaz sombra do mundo”.

E produziu umas vinte folhas com variações, todas muito bizarras, por exemplo esta: “O que fere no envelhecimento lento é uma morte que aparece em feridas que sangram em grande, até pararem na louca e profunda noite e na estúpida forma de um vento que dorme e se repisa. Está frio. Para encontrar um choro de medo, transparece a minha penosa solidão, que é meramente a ausência da alma sem fôlego e sem vida, ou dor e amargura. E paira uma perene e doce soma de finais. E quem não receber o que pede, será no mundo uma sombra”.
O crítico ia escrevendo estes exercícios, em formas monótonas. Passou o dia naquilo, meio alucinado, e ninguém se atreveu a criticá-lo por ter arrasado um livro que ainda nem sequer tinha sido escrito. Explicaria porventura que não gostava do autor fulano e foi num momento de impasse que um redactor mais afoito gritou no meio da sala: “Mas isto é um escândalo”.

Houve uma pausa solene nas tarefas da redacção. Todos os redactores, compenetrados numa espécie de reflexão íntima, olhavam para o crítico literário, à espera do que iria acontecer. E instalou-se aquele amargo silêncio de que falam os escritores.
Até que o crítico se debruçou de novo sobre a folha em branco e a caneta de tinta permanente recomeçou a dançar sobre o papel, com um ranger muito irritante que se arrastava como se alguém gemesse. E as letras diziam: “É um escândalo o que quase magoa na lentidão, nas feridas que aparecem ao sangrar...”
Foi só nesse momento que perceberam. O crítico passara-se muito antes de escrever a crítica sobre um livro de um autor que nem sequer existia. Ainda por cima, uma crítica negativa, a arrasar completamente a obra.
E, confortados com estes pensamentos mais sólidos, regressaram ao trabalho, inclinados sobre as suas vidas pequeninas.

domingo, 21 de novembro de 2010

Não conhecemos suficientemente bem as pessoas de quem gostamos

Um telefonema. Pensa-se primeiro que não passa de cruel engano. Que ele vai aparecer com aquele seu sorriso írónico, a dizer que era exagero, que aparecerá aqui um texto brincalhão a desmentir a notícia. Mas é verdade. Morreu o Pedro Beça Múrias.

O Pedro era daqueles jornalistas que falam pouco e ouvem muito. E que ouvem os outros com genuíno interesse, porque encontram sempre o melhor que cada um tem.
Não conheci os seus defeitos e, para mim, fica a memória de um homem bom. Não era alguém que fingisse a generosidade, mas que a exercia como quem ouve uma boa história.
Noutro país qualquer, o Pedro teria sido um daqueles jornalistas imprescindíveis. Aqui, o seu talento foi desperdiçado, talvez por causa do espírito independente, que os poderosos em portugal consideram ser defeito, mas que me parece ser uma qualidade.

Estas palavras não chegam. O Pedro era mais complexo: tinha inteligência, irreverência, bom senso, memória. E era um homem bom, já o disse. Não encontro melhor maneira de explicar.
Era um optimista e a prova de que a humanidade tende para ser melhor. 
Se o céu existe, deve ter uma salinha de espera. Não será muito grande, porque ali os serviços funcionam bem. Mas imagino o Pedro naquela sala a conversar, ou antes, a ouvir com tempo as outras almas boas e o que elas têm para contar das suas vidas.

Não conhecemos suficientemente bem as pessoas de quem gostamos. Mas o Pedro era diferente, ele parecia ter sempre tempo para os outros. E agora, certamente, tem a eternidade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

En Garde

Dois esgrimistas, um inclinado, sem fôlego, a perder o pé perante o ataque.
Segurei a gravura amarelada, escolhida de uma pilha de velharias, e deixei que a luz do sol prateado a banhasse com a sua cor de chumbo.
"Bela imagem. Vale bem o seu dinheiro", disse um homem a meu lado. Ele aproximara-se furtivamente, talvez surpreendido com o que eu encontrara no monte de inutilidades. Depois de elogiar a gravura, como que envergonhado, afastou-se e percebi o seu andar elegante, mais visível à distância. Como explicar? Um andar felino, que se mantinha ágil, apesar dos anos. Teria uns 60, mas caminhava de forma subtil e leve, como se o tempo não tivesse molestado a graciosidade do gesto. Perguntei ao vendedor se era algum vizinho, mas o feirante encolheu os ombros, num gesto desinteressado: "Não tenho ideia", disse, para sublinhar que o desconhecido não passava de um vagabundo indiferente e perdido.

Essa foi de facto a única vez que me cruzei com Léon Giraud, durante breves segundos, num encontro fortuito que o acaso determinara daquela forma. O mesmo acaso que me colocara nas mãos a gravura de dois esgrimistas a cruzarem as espadas. A mesma gravura que, trinta anos antes, aquele velho precoce observara durante dez minutos, sentado numa cama de hotel, antes de se decidir a abrir a janela e a saltar para outro mundo. Claro que ele não se lembrava da gravura (o tempo transforma em borrões todos os pormenores das existências humanas que se cruzam no tempo), apenas lhe parecera vagamente familiar e estranhamente bela. Mas eu sei o que sucedeu, por conhecer da casualidade o que a memória prefere apagar. Privilégio de fantasma. 

Aconteceu desta forma: pela janela do quarto entravam reflexos de luzes quentes. Paris não dormia, numa insónia semelhante à que pesava sobre a consciência em transformação de Léon Giraud. O plano de fugir de si próprio surgira sem um pensamento claro ou num único momento que pudesse ser dissecado nas suas complexidades. Fora antes uma amálgama de ideias soltas, encadeadas em detalhes insignificantes, até formarem a estrutura mais sólida das decisões graves que as pessoas por vezes tomam.
Foi ao olhar a gravura de dois homens que trocavam as espadas que se lembrou de fugir. Uma noção complexa que foi assumindo contornos simples. A gravura estava na parede do quarto de hotel, numa moldura de madeira, e o papel tinha sobre si um vidro que os reflexos da luminosidade da rua espelhavam em cintilações moventes e parecia que os dois homens se agitavam em gestos grotescos, um deles talvez à beira de ser vencido. Teve uma súbita pena pelo vencido, mas nunca se tratou de noção nítida, mas antes de uma desistência.
Giraud pensou que apenas a sorte, um acaso do destino, o escolhera para a equipa de espada, só porque o campeão, Manerville, se magoara nos treinos, e isso devia ser um sinal de alguma coisa importante, um facto que desencadeava consequências enormes, mudando todo o sentido da sequência, como acontece nos erros irreparáveis e nos golpes consecutivos que depois levam à perda de fôlego, ao cerco e à morte. E tudo se precipitava num turbilhão de pensamentos a esgrimir no ar: jamais poderia voltar ao conforto da sua casa, perderia para sempre o contacto com o mundo conhecido, com o aperto sufocante e a opressão dos conformistas, a desistência dos fracos, a tirania dos resignados.
Daquele quarto de hotel não poderia sair pela porta da frente. Por isso, sairia pela janela. Planeara um arriscado número de trapézio através dos telhados, depois poderia descer suavemente até ao chão. Levou alguma roupa num pequeno saco. Deixou as espadas para trás. Olhou para a gravura na parede uma última vez (haveria outra ocasião, mas ele ainda não sabia). Léon Giraud sentiu que era ele mesmo quem estava na imagem, a travar a derradeira luta pelo equilíbrio, a escolher o golpe incerto na exactidão milimétrica do combate. En garde. Mas sem mais tempo para pensar.

Nos campeonatos nacionais de esgrima, a equipa de Nimes não tinha hipótese. E a fuga de Léon Giraud desmoralizou os restantes atletas, que chegaram a admitir um rapto. Era incompreensível. Giraud fora o pior esgrimista do grupo, mas também o único que mereceu uma notícia breve em Le Figaro sobre o estranho desaparecimento sem pistas. Ironias. Os seus amigos nunca souberam o que lhe acontecera. Simplesmente, dissipou-se do mundo conhecido.

Cruzou-se comigo trinta anos depois, num marché aux puce, já despido de identidade. Vestia um velho casaco demasiado espesso para o frio que fazia e envelhecera, como acontece ao comum dos mortais e à gente que não tem destino. Falava com a pronúncia rude dos vagabundos. Por um segundo, fascinara-se pela gravura que alguém segurara no ar, reconhecendo nela certa circunstância ligada à existência, mas como se a imagem pertencesse a algo exterior e alheio, não ao seu próprio vago passado, mas a uma outra realidade imaterial.

Fantasma

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O fim

Começo pelo fim.
Começo ciente de não saber dizer, do fim, onde começa ou onde acaba. Começo confusa como em criança, diante do primeiro livro sem bonecos, ao ouvir "Agora nada de ires ver o fim.."
O fim? Qual fim? Salto a capa do livro, cheio de personagens que ignoro, jogadas em enredos que sobrevoo a jacto directamente das palavras do adulto para uma busca desenfreada: Ah não é para ler o fim?
Procuro-o numa curiosidade urgente, com critério e coragem, atrás do sofá pequeno disposto de esguelha junto à janela da sala de visitas. Procuro-o nessa tarde nesse livro sem capa, título ou princípio, como depois noutros livros com e sem bonecos. Procuro-o noutras tardes, noutras idades e cidades, nos meus cantos preferidos das casas onde vivi e, enquanto vivi longe, em cantos alheios onde não me perdia nem me escondia. Procurei-o, por acaso e sem autorização, nos livros de amigos, de namorados e conhecidos. Nas histórias dentro da minha história, o tempo levou-me à procura já não dos fins, mas de exemplos que desmontassem a certeza daquele princípio de leituras, num livro ainda folheado confusamente aos últimos pingos de luz do dia:
"Agora nada de ires ver o fim" é o cuidado adulto mais infantil. Ninguém corre o risco de anular o magnetismo da leitura galgando sofregamente direito ao fim. Não saberíamos onde poisar essa pegada de gigante enjoado do presente. Não há pontaria capaz de acertar no fim à distância. Não estão inventados gps para os desfechos.
Não podemos saber se o fim está na última página ou na última frase. Ou nas duas últimas frases. Ou a partir do início do último capítulo. Talvez na primeira linha da primeira página, ou algures a meio do volume, se o autor aposta em anacronias? Não sabemos, às vezes o autor sabe, eu não sei.
Eu sei que o pano cai quando passo a mão pela contracapa. Sei que a ficha técnica já desliza lentamente quando reclino a cabeça para trás e desfoco o olhar. Mas para ouvir o último suspiro da história eu não tenho hipótese de usar uma tele. Eu sou o batedor. Tenho de aceitar a lentidão da imagem revelando-se na penumbra de laboratório fotográfico, ou sujeitar-me ao embate de um fim salteador num troço do caminho quando menos espero.
De uma forma ou de outra, estamos seguros. Não há perigo de frisarmos o sagrado fio da história com a brasa da impaciência.
Num livro (e na vida, tão nossa como tão pouco nossa, o que nada interessa aqui), nunca sabemos onde começa, por isso não sabemos onde está, o fim. A única certeza é a surpresa.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A vida em capítulos


Quando era criança, inventava histórias divididas em capítulos e cada um deles desenhava-se na sua cabeça com todos os pormenores: os aventureiros iriam enfrentar selvas densas, infestadas de perigos; ou visualizava a cor feroz dos pendões antes da batalha e sentia o nervoso austero, confiante, do herói cavaleiro entre companheiros de justiça; ou acompanhava o explorador planetário no sinistro laboratório onde o maléfico cientista escondera raios mortais; ou observava o oceano indolente e tropical em que navegavam piratas famosos; ou o mar sufocante de areia, o detective genial, a cidade quieta e o deserto de gelo e o barco perdido e a tempestade tremenda.
Depois, compilava a sequência de capítulos, um, dois, três, e por aí fora, até vinte ou ainda até vinte e um, que já era demasiado longo, e decidia que em certo ponto haveria uma bulha e noutro um beijo à namorada (era uma menina de caracóis por quem se apaixonara na escola) e após os perigos quase fatais, o herói iria recompor-se e desvendar o mistério antes do desfecho.
Era tudo pensado ao pormenor, na imaginação. E corria pela casa a mostrar aos irmãos: olha o livro que escrevi, e logo se riam dele. Só tem capítulos. Falta escrever tudo o resto, diziam.
Na sua cabeça era como se tivesse preenchido cada linha, usado todas as palavras necessárias, mas riam-se dele: só tem a lista de capítulos, mais nada.

E foi crescendo. Para tudo fazia uma lista de capítulos. Na escola. Um curso, a universidade que nunca frequentou, depois o doutoramento brilhante. Na tropa. Começaria como soldado e acabaria oficial, após vencer o inimigo em batalha que nunca houve. No casamento. Casamos e arranjamos uma casa e depois um filho, o primeiro, porque depois teremos o segundo e então o terceiro e depois vão para a escola e por aí fora. Mas não teve filhos.
E fez o mesmo em cada emprego. No primeiro capítulo, seria promovido a escriturário e no segundo a quadro intermédio e depois chegava a chefe de secção e a chefe de divisão, até o convidarem para director, por verem como atravessara tão bem os patamares, obstáculos desfeitos como se fossem de papel.
E fazia a lista quando ia de férias e quando se envolveu com a amante e a mulher lhe pediu o divórcio; e preparou novos capítulos, todos muito bem pensados, para o livro completo que lhe ocorria. E a certo ponto, a personagem soltava uma espécie de raiva do coração oprimido, mas nunca escreveu uma linha.

Mudou de empregos e de cada vez fazia listas de capítulos para antecipar os acontecimentos. Conheceu outras mulheres, mas nenhum dos romances correu como ele pressentira no guião inicial. Grandes amores transformavam-se em afastamento progressivo, desilusão e rotina. 
E os episódios passavam, em doses regulares e sempre iguais de tempo.
Um dia, sozinho numa esplanada da praia, olhava o mar agitado e as ondas que esmurravam os rochedos, lembrou-se de olhar para trás e compôs numa folha de papel a lista de capítulos da sua vida.
Ainda só tinha quinze capítulos, cada um bem definido. Mais uns cinco ou seis e estaria tudo escrito, pensou.       

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O fugitivo


O livro fugira três dias antes. Estava num saco branco, encostado ao aquecedor do quarto, portanto, sem pertencer a uma colunata específica de livros abandonados à sua sorte. Veio a casa um senhor arranjar a janela e teve de tirar o aquecedor do sítio e arrumou o livro algures. Foi então que percebi que ele tinha fugido. Capa creme, sem ilustração, só o título e o autor, portanto, muito discreto. Procurei-o nas pilhas acumuladas, trinta e nove, pelas minha contas. Isso exige tirar os livros de cima, formando novas pilhas temporárias e procurar em baixo, remover tudo e reconstruir depois, baralhando a ordem. Pareceu-me escusado procurar nas estantes, porque estão sempre silenciosas e graves, com os livros escondidos nas suas cavernas quietas, em filas preguiçosas que só os bichos exploram.

Tive esperança de encontrar o livro fugitivo numa colunata de livros que a minha gata aprecia. A pilha número doze. Pareceu-me que o animal estava a dormir a maior altura naquele dia, o que quereria dizer que um livro clandestino se infiltrara.
E, de facto, encontrei o malandro entre um nabokov e um velho romance de graham greene. Até lhe bati com o dedo, para castigo de uma fuga fortuita e sobretudo impensada. O sacaninha respondeu com o que me pareceu ser um sorriso escarninho de letras vermelhas em fundo creme, lábios grossos e pele de mulher morena.

Ainda estou para saber como isso aconteceu, mas o livro fugiu de novo. Foi ontem e não tenho explicação. Lembro-me de o ter colocado na pilha da minha mesinha de cabeceira.
A empregada andou por ali em limpezas e até lhe telefonei, para perguntar se sabia o que tinha acontecido ao livro que estava na minha mesinha de cabeceira, e ela explicou que limpara o pó e arrumara os livros e pusera-os no mesmo sítio, mas talvez tenha baralhado a pilha número sete com a oito, enfim, uma deve estar agora mais alta e a outra mais baixa.

Terei de vasculhar de novo a biblioteca. e este é o quinto livro que me escapa este mês, e um deles por duas vezes. Na primeira hora de buscas, encontrei um do camilo que me fugira da vista no ano passado. O malandro ainda se estava a rir da minha incompetência de bibliófilo e coloquei-o com irritação na minha mesinha de cabeceira, e até telefonei à empregada a proibi-la de limpar ali o pó. Entretanto, a minha gata passou a dormir na pilha caótica número vinte e sete, que está perto da janela. Acho que ficou mais alta, mas não encontro uma explicação. Para saber se o livro se escondeu ali, terei de tirar a gata e o animal está a dormir como um anjinho, com um ronronar que quase me parece um riso de troça.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O atrevimento


Ler esta crónica de Manuel Vicent no suplemento Babélia do El Pais "Sólo hay que atreverse" fez-me reviver um sonho antigo de ser pintor, mas confesso que nunca tive a coragem de fazer o que fez Paul Gauguin, que abandonou a vida burguesa e a própria família para perseguir sem contemplações a sua visão artística.
Cheguei a estudar pintura, na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde aprendi algumas técnicas que me permitiriam sem dúvida pintar quadros com alguma exactidão (já quanto à beleza, não sei).
Julgo que a minha capacidade seria, no máximo, a da cópia, mas existe algo na pintura, talvez seja o cheiro das tintas ou o triunfo da cor sobre o branco visto a uma distância mínima, essa fabricação de películas que vistas de perto são manchas e vistas de longe começam a formar padrões, talvez seja isto que me fascina, o observar em cada pincelada o triunfo da ordem sobre o caos.

É isto que me fascina também na escrita, a arquitectura que emerge das palavras; mas, não sei porquê, não tenho a mesma sensação de prazer, talvez porque não seja possível ver num romance, novela ou conto tudo num só relance.

Todos os artistas sonham com a fama, impulsionados pela vaidade de saberem que há poucos que conseguem fazer aquilo que eles fazem. No caso de Gauguin havia mesmo muito poucos, mas o pintor amador, que nunca estudara em escolas convencionais, não poderia sabê-lo. Talvez tivesse essa suspeita, a intuição, mas não podia saber. Morreu na miséria, carcomido pela doença, certamente cheio de dúvidas. E se falhei a minha vida? E se a mandei fora, para nada?

Perseguir obsessões pode ser mandar uma vida fora. Mas, então, surge este título de Vicent "só é preciso atrever-se". É assim que vemos esta loucura, como sendo apenas coragem?
Li algures, uma vez (infelizmente, tenho procurado a fonte, sem a encontrar) que em Paris, em 1900, havia dez mil pintores. Acho o número gigantesco, improvável, mas sei que li este valor numa fonte que na altura considerei credível, a ponto de memorizar a informação. É muito pintor para uma cidade que teria dois milhões de habitantes, mas pode ser que estivessem ali contabilizadas as numerosas academias, os pintores que chegavam de todo o mundo para aprender na meca da pintura. Também os pintores de paredes, quem sabe? Dez mil, muitos deles com os mesmos sonhos de Gauguin, embora sem o seu talento.
Gauguin pintou cerca de 300 quadros e essa seria a produção de uma carreira relativamente curta. No caso do pintor francês, durou vinte anos, com altos e baixos. Dez mil vezes 300 dá a quantidade fabulosa de 3 milhões de quadros só para uma geração de pintores da passagem do século e do período pós-impressionista, e só em Paris. Se acharmos extraordinário e pouco credível o ponto de partida, podemos dividir por três. Ainda dá um milhão de quadros, todos bem feitos. E quantas obras conhecemos desta época? Cem, pouco mais do que isso? Uma em cada dez mil das que foram produzidas?

Dava para encher mil museus só com uma geração de artistas, mas sabemos que não será assim. É fácil perceber que a arte tem mais a ver com o fracasso do que com outra coisa qualquer. É uma espécie de loucura obsessiva que toma conta de vidas condenadas ao desperdício. E só um em cada dez mil triunfa, milagre que se deve ao atrevimento ou à loucura.
Por mim, gostava de pintar para esse enorme museu, o maior que existe, o museu das vidas desperdiçadas, das obras que nunca ninguém verá, mas que deram tanto prazer a quem as criou, camada a camada, num combate da cor sobre o branco e deste contra a cor. E poder dizer no fim da vida que, embora perdendo a luta contra o esquecimento, quase fui feliz a imaginar a luz. Mas não me atrevo. O medo é mais forte.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O sonho feminino


Num dos primeiros sonhos de Jia Bao-yu, uma dama imaginária explica-lhe a diferença entre a luxúria superficial e “a luxúria da mente”: a primeira, a incessante busca do prazer carnal, a outra mais subtil e feita de “ternura inocente” e “doce fantasia feminina”. Esta é uma passagem estranha (o sonho transforma-se depressa em pesadelo) e marca a iniciação à sensualidade erótica da personagem principal do clássico chinês O Sonho do Pavilhão Vermelho (Hong Lou Meng), escrito por um autor, Cao Xueqin, que morreu em 1763 (ou 64), provavelmente com pouco mais de 40 anos. O livro é também conhecido por História da Pedra, por começar com um pequeno episódio tipicamente taoísta, envolvendo uma pedra. Na literatura chinesa (infelizmente, tão desconhecida entre nós) esta obra é considerada uma das principais jóias. Fala dos prazeres e da estranha magia que faz girar o masculino em torno do feminino, à semelhança de outras oposições, como a matéria e o sonho, a luz e a sombra, o real e o irreal.

Em outra passagem do mesmo sonho, a personagem imagina um mundo feminino, delicado e complexo, repleto de prazeres e conversas sussurradas, risos e harmonia, flores, aromas e luz. Este é um texto sobre a nostalgia da perfeição, mas também um fio de histórias em rio de impressões. Consiste na busca do eu profundo ou no desejo de esquecer a realidade mais sórdida lá fora.

O livro foi escrito num tempo perturbado e decadente, o século XVIII chinês sob a dinastia Qing, a mesma Era Manchu em que houve um importante movimento artístico, mas que coincidiu com a queda do poder mundial da China, devido à incompetência dos seus imperadores. O livro é muitas vezes comparado a Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, que os leitores portugueses conhecem, mas no fundo pertence a toda a classe de romances que choram o desaparecimento inexorável de um modo de vida.
Na obra de Cao Xueqin, o mundo feminino é exclusivamente íntimo, ou seja, corresponde ao interior da casa, protegido da turbulência, e é alheio à violência política que torna tudo precário. Na obra, existem elementos autobiográficos: no início do século XVIII, com um novo imperador, a família Cao caiu em desgraça: a beleza sonhadora foi vivida pelo autor apenas antes dos 13 anos; no fundo, o tempo da narração é o período feliz da infância do escritor chinês, que terá morrido na miséria, em idade prematura.

Este post não é sobre O Sonho do Pavilhão Vermelho, livro extenso do qual li no máximo um quinto e em relação ao qual não posso dizer muito. Apenas comecei a pensar sem rumo sobre estas ideias da perfeição feminina e da luxúria da mente. Segundo a criatura sobrenatural e luminosa que encanta o sonhador, querer todas as mulheres do mundo e possuí-las não passará da satisfação de um impulso de banalidade vazia. A luxúria da mente, por outro lado, corresponde ao “amor cego e indefeso”. Não pode ser explicada em palavras: ou se sabe o que é, ou não se sabe. Vista pelas mulheres, esta luxúria é amigável; vista pelo mundo exterior, é excêntrica e pouco prática. Em resumo, trata-se de um olhar poético sobre o que nos rodeia.

Se o feminino é o complexo, então vivemos hoje num mundo feminino, ou melhor, no mundo mais feminino em que jamais viveu a humanidade. Durante séculos afastadas das decisões mundanas, as mulheres ganharam recentemente uma influência como nunca tiveram no passado. E isso está a transformar as sociedades, pois se as mulheres exercem esse poder muitas vezes com insegurança, porque têm de ser melhores do que os homens, parecem por outro lado mais hábeis a apaziguar conflitos, a criar pontes de entendimento, a pensar no interesse das gerações seguintes.
Acredito que o mundo tende para certa harmonia, já que a evolução do Homem (que não parou) produzirá seres ainda mais sociais do que os anteriores. Nas coisas humanas, a bondade resulta. E deve até ter vantagens evolutivas.Por isso, os humanos do futuro serão talvez menos pragmáticos e mais sonhadores, o modelo do "homem bom" será menos raro. E reparem como a bondade é sobretudo feminina, ligada ao que é profundo e íntimo.

No sonho de Jia Bao-yu estamos à partida na “Terra da Ilusão”. Existe uma porta com uma inscrição a indicar esse nome e, por baixo destas palavras, escreve-se o seguinte: “A verdade transforma-se em ficção quando a ficção é verdadeira”; e, depois, “o real transforma-se em não-real quando o irreal é real”. São ideias muito taoístas, parece-me, fazem lembrar a citação de um mestre desta filosofia: “As coisas não são o que parecem, nem são de outra forma”. E também ocorre a actual física quântica.
Há quem consiga encontrar beleza em tudo e estas pessoas parecem mais felizes, embora estranhas a um mundo treinado para encontrar apenas os defeitos.
Sim, andamos à procura do que está mal e associamos isso a uma ideia de progresso. O nosso erro produziu os problemas. É um conceito muito ocidental. Se descobrirmos o erro, poderemos reparar o problema.
E, desta forma, entramos numa outra terra de ilusão, onde parecemos ter algum controlo sobre o que sonhamos.

Não leiam este texto como uma reflexão organizada. Volto aos taoístas: era Lao Tse quem dizia (cito de cor) que "os sábios são os que ficam calados" e que "o silêncio dá força".
Na nossa realidade tão tagarela, estas parecem ideias estranhas. Parece que quem fala mais alto é mais sábio. Embora não seja assim.
A um mestre vieram perguntar o que se deveria fazer com uma mão cheia de nada. Ele respondeu: "mande fora". Temo que seja válido também para este texto e para o muito vazio que lemos e para o muito vazio que somos.
O mundo contemporâneo é cheio de certezas e de "teorias verdadeiras". Mas se olharmos bem, veremos que é o mundo da incerteza, em que se esbateu a fronteira entre o irreal e o sonhado, a terra de ilusão que não sabemos bem onde fica. Precisamos de procurar o lado poético da nossa vida, exercitar a luxúria da mente; precisamos de deitar fora o vazio, em vez de deitarmos fora a irrealidade dos nossos sonhos.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Consultório do doutor Benji (4)


Doutor Benji, preocupa-me a subida do IVA para 23%, para cobrir o buraco orçamental. Isso significa que somos nós, as gatas e os gatos, a pagar outra vez a factura. Que fazer? (Lulu, Lisboa).
Tem toda a razão. Somos nós a pagar a crise e 23% é manifestamente injusto. E onde estão as contrapartidas? Temos a comida enlatada a uma taxa elevada de imposto, fazemos mover a economia, contribuímos com a nossa alimentação para a receita fiscal bruta. E onde estão os serviços para gatos, as clínicas para gatos, as escolas especiais para gatos, os hotéis públicos durante as férias dos nossos donos? O facto é que não há serviços para nós, não há socialismo que nos defenda. É pagar e não miar.

Estão na moda estas coleiras para gatos que nos impedem de lamber os nossos traseiros e manter a devida higiene. A minha dona diz que preciso da minha coleira para tratar uma ferida, mas não acredito. Acho que ela me está a enganar. (Faísca, Cascais).
Teve imensa sorte, caro Faísca, pois a sua coleira, com guizos titilantes, poderá permitir-lhe virar o feitiço contra o feiticeiro, neste caso, a feiticeira. Torture a sua dona com barulho constante da coleira. Faça frenéticas danças de guerra no quarto, quando ela estiver a dormir. Faça-lhe ver que nós, os gatos, não fomos feitos para usar coleiras que nos impeçam de lamber o nosso traseiro, que como todos sabem é uma zona sensível que precisa de lavagens constantes. Não é natural, quando a nossa língua não chega a todos os pontos do nosso corpo. Em relação ao design da sua coleira, em particular, trata-se de um cruel insulto. Quando é que os macacos humanos vão finalmente perceber que nós, os gatos, não temos sentido de humor e, portanto, não podemos ser bobos da corte?

Tenho visto na National Geographic felinos que andam soltos pela planície e que caçam búfalos. Os meus donos obrigam-me a caçar moscas e insectos voadores. Esta situação é legal? (Fifi, Amadora).
Não existe legislação nacional sobre o trabalho gatal, mas a convenção universal dos direitos dos animais, reunida em Nova Iorque, equiparou o trabalho gatal ao trabalho braçal, pelo que o seu trabalho não remunerado equipara a escravatura. Na realidade, pode processar os seus donos e obter uma choruda indemnização, mas tente recebê-la já com o IVA pago, senão terá de descontar 23%. Ou, se os seus donos são trabalhadores por conta de outrem e se não conseguem fugir aos impostos, o melhor é fazer-lhes ver que se querem um animal para caçar moscas, devem comprar um daqueles lagartos de língua comprida. Vi na National Geographic, são muito mais eficazes do que os mata-moscas tradicionais.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Vargas Llosa


Apesar de Mario Vargas Llosa ser em cada ano o primeiro nome de qualquer lista sensata para esse prémio, parecia que o Nobel da Literatura lhe iria passar ao lado, como aliás aconteceu com tantos grandes escritores com quem a academia sueca embirrou, como por exemplo Jorge Luis Borges ou John dos Passos. Há muitos outros exemplos, ao lado de nomes vencedores que os leitores esqueceram depressa.
Hoje, foi anunciado que Mario Vargas Llosa, de 74 anos, ganhou o prémio Nobel da Literatura de 2010. É uma decisão justa, sobretudo porque os seus livros escritos nos anos 60 mantêm uma juventude e uma actualidade que os temas muito políticos do autor poderiam facilmente ter comprometido.

O autor de romances como Conversa na Catedral, A Guerra no Fim do Mundo, A Festa do Chibo, Lituma nos Andes, Travessuras da Menina Má (os que li dele) é também ensaísta e contista, foi candidato presidencial peruano em 1990, derrotado por um presidente de má memória para o Peru, Alberto Fujimori.
Em muitas entrevistas, Vargas Llosa tem explicado os seus métodos de trabalho, muito precisos e regulares. Além disso, continuou a escrever textos de intervenção política e cívica, comentando os assuntos do mundo, o que não é frequente na literatura.

Vargas Llosa é porventura o autor vivo que melhor retratou a violência política dos nossos dias, a luta inglória pelas utopias, o cinismo das ditaduras e da opressão ideológica. Ele denunciou o totalitarismo da esquerda e da direita e tornou-se mais incómodo por nunca ter visto o mundo a preto e branco. Para mim, é um escritor da liberdade, da imaginação fértil, perito em personagens complexas, com o gosto do comentário social. Tem sentido de humor, subtileza, filigrana técnica e rara compreensão dos derrotados da história e dos mecanismos do poder.
A escrita do prémio nobel de 2010 (cujo próximo livro será publicado aqui) é muitas vezes quase insuportável, devido à violência das situações, a dificuldade da redenção, o sofrimento das suas personagens ou ainda por causa dos excessos devassos. Mas existe uma sensualidade permanente na sua prosa, na paisagem desmesurada, na exaltação humana, nos ímpetos da paixão que ele tão bem retrata.
Mas Héctor Abad explica tudo muito melhor.
Rui Bebiano tem aqui um bom texto e lembra um aspecto por vezes esquecido: o Prémio Nobel da Literatura tem uma componente política e ética.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A mulher de negro

As horas apertavam-me e as cinzas do dia esmoreciam na escuridão vaga do meu coração vazio.
O arrepio que recordo vinha do murmúrio das velhas folhas ainda suspensas nos ramos. Do rio feroz engrossado pelas chuvas, do ar curvado em vento, que devagar arrefecia o manto morto sobre o caminho. E, atrás do arvoredo do parque, os telhados sombrios da minha cidade.
O pálido mundo já apodrecia, numa brandura silenciosa, no sorriso disfarçado, num golpe de vento, no azul que deslizava com a triste melancolia dos entardeceres de Outono.

Além do parque, a água do rio cantava uma melodia comovente.
Ou assim me pareceu, pois era aquela mulher de negro quem chorava. Sentara-se ao frio no banco do jardim, mostrando a sua grande pena pela vida. Mas exibia a desgraça apenas às aves que passavam no céu, apressadas e alheias, e a mim, involuntariamente, cujos passos as folhas mortas tinham transformado em silêncio, e a mais ninguém, pois que não havia outras almas naquele parque deserto, por qualquer razão que não recordo passados mais de cem anos, talvez alguma ocasião solene ou festejo.
Parei em frente à mulher que chorava e ela parou de chorar. Olhou para mim. Perguntei se precisava de alguma coisa, se a podia ajudar de alguma forma. E ela respondeu que não, cavalheiro, que eu era muito gentil, mas que não se passava nada, uma tolice, apenas. Não a podia ajudar.
Ela tinha os olhos muito vermelhos e resisti a abandoná-la. Mas a mulher (observada mais de perto, tinha um vestido pouco elegante, era do povo, bastante banal de beleza) sorriu-me para me encorajar a prosseguir o meu caminho. Não era nada comigo, enfim, hesitei ainda e depois segui pela vereda de folhas, tentando meditar nos meus problemas filosóficos, nos quais pensava muitas horas.
Terá sido no dia seguinte, quando me sentei na mesa do café (como fazia sempre, às 11) que abri o jornal e li, com espanto, a notícia de que uma mulher se atirara ao fim da tarde ao rio que fica ao lado do parque. Uma mulher do povo, vestida de negro, ninguém a pudera salvar, desaparecera de imediato nas águas turbulentas do rio que atravessa a nossa cidade.

Durante uma semana, com o coração pesado, dei os meus passeios pelo parque. Instalara-se o frio e a certa hora, quando as cinzas do dia esmoreciam, não se via vivalma. Foi assim, até que, num desses passeios, julgo que era quinta-feira, ao aproximar-me de um dos bancos do jardim, vi uma mulher sentada. Vestia de preto, mas não chorava.
Aproximei-me. De súbito, percebi que era ela, a mulher que eu perdera. Parei à sua frente.
Ela sorriu para mim, lívida. E sentei-me a seu lado. 

Fantasma 

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Masturdating*

Que sente um homem só na pista de dança?
Que pensa um homem só na esplanada à beira mar?
Que compras faz um homem só no hipermercado?
Que come um homem só na cozinha?
Que lugar escolhe um homem só no cinema?
Que lugares visita um homem só numa viagem?
Que sorriso faz um homem só numa fotografia?
Que sonha um homem só que dorme só no lado esquerdo da sua cama?
Quem chama o homem que morre só numa enfermaria?
Quem amou o homem que foi só a enterrar?

* Do calão inglês

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Onde o sol morre na cruz, como Jesus

sob a projeção da luz, que inunda a sala, todos os conjurados se levantam e desaparecem pelas portas entreabertas, enquanto de ouve na rua a voz de...


O Alma


Nasce morta a luz da aurora
Sobre a terra portugueza.

E d´esta luz falecida
Nascem já murchas as flores;
E nascem almas sem vida
E sem amôres...

O´ Portugal solitário,
E´s um calvario
Onde o sol morre na cruz,
Como Jesus...
E a sombra escura,
No ar infindo
Empedernindo,
Toma não sei que tragica figura,
Ameaçadora...

Que luz tão fria!
Nasce morta luz da aurora...
E a luz do dia
Cáe, em sombra, na terra portugueza...
Ai, que tristeza
E que melancolia

(In D. Carlos - Drama em Verso, de Teixeira de Pascoaes, Quarto acto, cena I - escrito em 1919).

sábado, 2 de outubro de 2010

I will survive

Há cerca de dois meses desci a 300 metros de profundidade, sessenta abaixo do nível do mar, na mina de sal gema de Loulé.

Foi uma experiência única. A dada altura entrei sozinho num longo e escuro túnel, e dei comigo a pensar: “E se me perder? Se a única luz ao fundo do túnel for a minha? Alguém me encontrará?

Não é esquisito sermos nós a única luz num túnel?

Não estamos habituados a isso, não é? A apoiarmo-nos apenas no que a nossa vista alcança...

Pois bem, foi ali, onde o sol não entra, que se fez alguma luz sobre muitas dúvidas que tenho quanto ao meu futuro. Não há que ter medo. Um dia a luz chegará.

Há alturas na vida em que temos medo ao medo, como na canção do Fausto (Tenho medo ó medo, Leva tudo é tudo teu, Mas deixa-me ir.)

Vivi quase toda a vida em utopias, perseguindo sonhos. E muitas foram as vezes em que me espalhei.

Mas, ainda assim, recuso-me a viver num mundo onde essas duas palavras não façam sentido.

Por isso, nem que me sinta perdido num túnel, o meu mundo será sempre feito de utopias e de sonhos! Sem medos. Mesmo que os sinta. Sei que um dia, lá do fundo da mais escura galeria da mina, onde tantas vezes me sinto estar, um Anjo com asas brancas de flor do sal, iluminará o meu caminho.

Morrerei no dia em que deixar de acreditar nisso. Não sobrevivi ao que sobrevivi, para agora levar o resto da minha vida descrente disso. Não fui tocado pelo divino, mas passei a gostar também dessa palavra.

E o segredo talvez seja acreditar que num simples passeio à beira mar, uma mulher e um homem possam tocar o divino, o poético; o maior dos silêncios que se encerra num sorriso que se esboça durante uma troca de olhares.

Talvez esteja aí o divino. Talvez seja essa a dimensão do sonho e da utopia!

Talvez seja nisso que acredita o homem que dança só, numa pista de dança, algures nessa noite escura de Lisboa.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Ainda por cima nem sequer é loura!

Foi há breves minutos. Eu e a minha vizinha “loura“, aquela que me rejeita, que me repudia, que me bloqueia, que nada quer comigo no Face, trocámos breves olhares à porta do supermercado.


E faltou-nos a “fulminância” do olhar. Um quase ódio estampado na face foi o máximo que lhe consegui.

Chocado percebi que nunca haverá intimidade, qualquer cumplicidade entre estas nossas duas almas. Não fazem chispa. Não há fogo, nem nada arde sem se ver. De nada me vale saber que usava roupa interior rosa, pois vi que faltava hoje esse conjunto no seu estendal.

Triste, apeteceu-me gritar-lhe: ÉS A MINHA DESMUSA! ÉS A MINHA DESMUSA!

Sentindo-me traído pelo destino, uma forte tentação quase me fez cuspir em todos os livros do Paulo Coelho que vi numa livraria ao lado. Mas tive que correr. A padaria estava a fechar!

sábado, 25 de setembro de 2010

O pão e o plástico




Na Viena da sua infância dos começos do século XX, Bruno Bettelheim adorava os cacetes quentinhos que eram a mais conhecida especialidade da padaria Âncora. Devorava-os ao pequeno-almoço e entre as refeições. Foi esse prazer do jovem Bruno pelos pães Âncora que o ajudou, como partilhou num dos seus ensaios, a perceber mais tarde as madalenas de Proust.  
Talvez o odor, sabor e textura desses cacetes tenham regressado pela ausência à memória de um esfomeado e já adulto Bruno, durante esse ano de aparência interminável que passou entre os campos de Dachau e Buchenwald.
Em 1983, o autor de Psicanálise dos Contos de Fadas representou o seu próprio papel em Zelig, tal como Saul Bellow e Susan Sontag. Woody Allen escreveu uma vez: "Podes viver até aos cem se abdicares de tudo o que te dá vontade de viver até aos cem". Bettelheim viveu até aos 87. Depois abdicou dessa vontade de viver e de tudo o resto, incluindo a decadência da mente e do corpo, asfixiando-se enfiando a cabeça num saco. Entre o cheiro do plástico misturado com o do seu último hálito e o aroma do pão saído do forno decorreu uma vida. 

Sonho

Encontrei esta notícia bem interessante, de um robô que quer ser artista. Vi os seus quadros e lembrei-me de uma história que podem ler aqui, se tiverem a paciência. Foi escrita em Agosto de 2009. Será porventura um bocadinho sentimental, mas alguns robôs talvez saibam sonhar.

Please allow me to introduce myself

Permitam-me que me apresente: sou o Pedro Beça Múrias... sim, aquele das salas de espera...

Aqui vos deixo o meu cartão de visita, ou a minha vida contada em entrevista a Nuno Costa Santos.

Abraços

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Solidão

Há momentos em que é preciso mudar de vida. Momentos em que nos forçam a olhar para trás e vemos que não há ali nada.
Estes acidentes de percurso têm a utilidade de nos obrigar a ver as contrariedades a uma luz diferente. As humilhações mais sérias dizem-nos que o tempo à nossa frente é sobretudo escasso e que adiámos tudo o que era importante. Dizem que nos enganámos no caminho, que demos demasiados passos em falso, que nos gastámos em episódios já esquecidos, que somos do passado que não regressa e que nos perdemos no tempo.
Mas pouco importa, no fundo, que o sabor amargo da vida nos domine e nos arrase, desde que seja possível aprender com ele.
Aprender que se nos enganámos no caminho só resta sair da estrada interdita e inventar novas veredas, as do espírito, as da liberdade.
A escolha é sempre a via solitária e a solidão é triste, mas necessária. Não precisa de disfarces nem de desculpas.

Quando te dizem que não és ninguém, então podes finalmente assumir que és tu próprio.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A crise financeira segunda Átila, o Huno


O magnificente Átila, o Huno, tinha um pequeno problema de tesouraria e mandou chamar o conselheiro Paupérrimus, que tinha sido contratado em Roma, na escola liberal de finanças da Rua Áurea.
“Miserável verme Paupérrimus, mandei empalar os meus cinco anteriores ministros das finanças, esses traidores, mas continua a faltar-me dinheiro. Que devo fazer?”
“Oh, esplendor das estepes, podíamos recorrer ao clássico de mandar privatizar a economia”, disse Paupérrimus, que tremia como varas verdes.
“Isso não dá. Está tudo privatizado em meu nome. Podia tentar vender os nossos assessores romanos, mas julgo que ninguém está disposto a pagar por eles…”
“O problema, ó sublime académico e ditador imprevisível, é que para equilibrarmos as contas temos de colocar as despesas iguais às receitas, portanto, ou baixamos as primeiras ou aumentamos as segundas. Por isso, parece-me lógico proceder a um aumento de impostos”.
“Os hunos não gostam de pagar impostos, toda a gente sabe isso, ó insecto rastejante. E se a taxa de IRS já está em 100%, não vejo como é que a posso aumentar. Até eu, que sou analfabeto, sei fazer essa conta”.
“Uma redução da despesa do Estado, então…”
“Pareces um jumento, ó Paupérrimus. Isso nunca foi tentado, porque é impossível. A despesa alimenta o monstro e se deixas de alimentar o monstro, ele devora-te. Isso é o Bêabá da política, ó francamente estúpido”.

“Mas se continuamos a gastar assim, mais do que aquilo que temos, vamos continuar a acumular dívida e estaremos sob o ataque dos mercados…”
“Estamos a ser atacados? O Grande Átila o Huno está a ser atacado? E ninguém me dizia?”
“É uma metáfora, ó grandioso e sublime terror dos pusilânimes. Na realidade, os mercados fazem subir os juros da nossa dívida, de forma que esta se torna cada vez maior. É como se vossa majestade grandiloquente tentasse cavalgar levando um peso que aumentava ao longo do tempo. A certo ponto, o cavalo entrava em colapso e vossa soberba perfeição teria de prosseguir a pé”.

“Não gostei nada dessa tua metáfora, ó velhaco ululante”.
“Peço infinitas desculpas a vossa melhoria, mas os cofres do estado estão vazios e os credores estão à porta”.
“E de onde são os nossos credores?”
“De Roma”.
“Os que estiverem à porta, manda-os passar à espada. Isto de ser atacado pelos mercados não me agrada. A melhor solução é retribuir. Onde ficam esses mercados?”
“Em Roma”.
“Pois bem, invadimos Roma”.

Átila estava tão contente com a solução que encontrara para a crise financeira que colocou o braço no ombro de Paupérrimus, até com algum afecto e cumplicidade.
“És um bom conselheiro, infeliz e deplorável lombriga, e como és também um homem do mundo, queria fazer-te uma pergunta: como é que são as romanas?”
Paupérrimus ainda pensou em dizer que a invasão de Roma ia aumentar a despesa, devido aos custos da campanha militar, mas teve o bom senso de responder à pergunta:
“São bonitas”.
“Sempre quis ter escravas romanas. Ouvi dizer que têm mamas grandes”.
Neste ponto, o conselheiro foi demasiado profissional e franco. Tentou desfazer o equívoco:
“Pelo contrário, ó imperador das planícies infinitas. As mulheres romanas são obcecadas pela magreza e só comem saladas”.
Átila ficou pensativo. Depois, um pouco irritado, ordenou:
“Não faz mal, ó pobre ignaro. Vais colocar uma nova rubrica na coluna das despesas do Estado: um programa de engorda para as minhas futuras escravas romanas. Valerá bem o custo. Terão refeições de hora a hora e tudo do melhor, bolos com natas, carne suculenta e nada de saladas”.



segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Das crónicas de um misantropo (2)

A terra do esquecimento
Por muito que me esforçasse, nunca fazia bem as tarefas. Um dia, numa aula de ginástica, usei a camisola interior debaixo da camisola de ginástica e o professor obrigou-me a mudar de roupa em frente aos outros miúdos. Eu disse que tinha frio e chorei, mas ele não ligou: a camisola interior era contra as regras e tive de me despir em frente aos outros.
E como eu odiava os saltos de cavalo. Não conseguia dobrar as pernas e no impulso do salto chocava com os joelhos e estatelava-me do outro lado. E o professor de ginástica praguejava, a tentar que eu não partisse a espinha do outro lado e obrigava-me a repetir o salto. E os outros miúdos riam-se de mim, porque eu era o gordo. Para mim, era tudo mais alto e mais difícil, pois o corpo nunca me obedecia. E achavam que era a falta de vontade, a minha preguiça, mas juro que por minha vontade queria voar por cima daqueles obstáculos. E caía, como um pássaro ferido nas asas. 
E nunca me deixaram jogar à bola, nem sequer a guarda-redes.

Chamavam-me nomes e davam-me pontapés, e um dia roubaram-me a carteira de cromos que eu tinha comprado numa papelaria muito pequena que havia junto à escola e onde havia revistas e jornais e, confesso, já não me lembro bem se eram cromos ou selos, mas foi no choro dessa tarde que decidi deixar de ser coleccionador de coisas do passado, ao contrário do que fazem as pessoas normais.
A partir daí, não fiquei com mais nenhuma recordação. Não existe nenhum objecto que me apeteça guardar, nem uma fotografia, nem nada. Nenhuma memória, nenhuma pessoa.
Se me esquecer de tudo o que me aconteceu, talvez deixe de ser aquele em que todos reparam. O mais ridículo, o que faz toda a gente rir.

Os rapazes que conheci na escola cresceram e ficaram grandes. São adultos e têm recordações da infância. Mas eu não cresci, de alguma forma não cresci. Sei que se não tiver recordações, então não viverei no presente, mas poderei habitar no passado, onde já ninguém ficou. Por isso, sou o único habitante da terra do esquecimento, esse lugar infinito e solitário onde me sinto livre. E tenho toda a vida à minha frente.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Das crónicas de um misantropo (1)

O regresso a casa
Sempre me consideraram infantil, uma espécie de criança grande, como dizia um tio meu que era igualzinho a mim e que nunca chegou a crescer.
Agora, tenho quase 40 anos, mas sinto que ainda não cheguei aos 30. Fui virgem até aos 25 (ou seria até aos 26?); e percebo risinhos aí desse lado, mas podem ter a certeza de que não sou caso virgem. Os rapazes são todos gabarolas e usam a imaginação para fingir que sabem tudo sobre sexo, quando na realidade não sabem nada.
Nunca tive jeito com as mulheres. Fico vermelho quando percebo que uma delas se interessa por mim, até no caso das feias, ou talvez ainda mais no caso das feias, pois nunca estive com uma bonita. Por timidez. E as namoradas feias têm a vantagem de não estarem muito beneficiadas nesta competição por parceiros e, por isso, não nos trocam por um nadador salvador.
Pelo menos é o meu caso. A minha Cristina trocou-me por um tipo que trabalha num call-center. Ela gostou sobretudo da voz dele.
Às vezes, penso que as mulheres são quase tão inseguras como eu. É um pensamento que me tranquiliza, mas devo estar errado.

Se eu tivesse na altura mais maturidade, nunca teria ficado com a Cristina. Havia até aquela canção antiga, "Cristina, não vais levar a mal, mas beleza é fundamental". Uma vez queria brincar com ela e cantei aquilo e levou mais de uma semana a esquecer-se.
No outro dia, por causa do meu rival, pôs-me na rua, sem mais cerimónias. Afonso, não passas de uma criança grande, disse ela. Volta para a tua mamã.
Foi o que fiz.

A mamã está velhota e vive na nossa casa antiga, de onde saí há dois anos para ficar com a Cristina que agora me deu uma guia de marcha. (Faz-me lembrar os tempos da tropa, mas conto noutra crónica).
Fiquei com o quarto antigo e foi uma boa sensação poder regressar à vida privilegiada de um adolescente.
Quando pôs a comida na mesa (Ah! os sublimes sabores da infância!), a mamã ainda me ralhou e pensei em dizer-lhe, mamã, tenho quase 40 anos, mas depois achei que o ralhete me agradara, porque fora dito num tom maternal e suave que a Cristina nunca teve quando barafustava comigo.
Hoje, senti-me outra vez com 29 anos. E espero chegar aos 19 ainda esta semana. Dentro de 15 dias, terei outra vez dez anos, que é a idade mais feliz. Depois, tenciono ficar por lá, que foi o que aconteceu com o meu tio Bernardo, que quando morreu tinha 70 anos no bilhete de identidade, mas que não passava de uma criança grande.

Tudo isto tem um lado negativo: terei provavelmente de abdicar das mulheres. E eu gosto de mulheres, teoricamente gosto, embora não as compreenda.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Consultório do doutor Benji (3)


Dr. Benji. Estivemos as duas numa grande aflição porque os nossos macaquinhos foram viajar. O que nos aconselha a fazer no futuro? (Bicas e Tricas, Lisboa)
Tomei conta dos vossos macaquinhos durante as férias e, deixem-me ser franco, a vossa vida deve ser uma barra pesada. Raramente tenho encontrado seres humanos tão ineptos. Horários de comida baralhados, não trocam a areia, poucas festinhas e um menu à base de comida enlatada. Pescada, nem vê-la. Não se enxergam, passam o tempo a dormir e a filosofar e, pior ainda, têm aquele irritante sentido de humor que me parece ser de longe a pior característica humana. E não se calam, sempre aquele blá-blá-blá monótono. Da próxima vez que eles forem viajar, façam de conta que não deram por nada e tentem esconder o bilhete de avião de volta. Como são muito incompetentes, estes dois macaquinhos embarcam para férias e só lá é que vão perceber que já não podem regressar à vossa casa.

Nunca percebi a dieta humana, dr. Benji. E odeio quando a minha tia me tenta dar daquela comida horrível. Que fazer? (Napoleão, Cascais)
Dadas as suas origens sociais, meu caro, o problema deve ser bastante grave. Pedaços de brioche pela manhã, camarão à tarde e caviar à noite. Lamento o seu pesadelo. A única solução que vislumbro é tentar provar à sua dona, à sua tia, quero dizer, que tudo o que entra pela boca mais tarde ou mais cedo sai pelo rabo. Tente arranjar algum cocó de animais repugnantes aí do jardim e espalhe pela casa, em locais estratégicos, num protesto firme. Como sabe, as classes altas odeiam protestos e têm horror a reivindicações. Mas nunca deixe de ser um gato elitista, caro Napoleão. Baixar o nível seria um erro. Quando a sua dona, perdão, a sua tia, lhe fornecer de novo comida de gato, exija marcas cujo preço seja compatível com o estatuto que merece.

Vi na televisão que existe uma crise financeira e que o desemprego aumentou. Devo preocupar-me? (Lenine, Barreiro)
Não. A situação para os macaquinhos humanos parece ser séria, mas o problema do desemprego não se coloca para os gatos, pela simples razão de que os gatos não trabalham. Há ainda alguns no sector primário (camponeses) que apanham ratos e pequenos pássaros, mas nós, os urbanos, temos uma vida regalada e podemos dedicar-nos à especulação filosófica. O meu amigo é um gato suburbano, com os seus problemas específicos, mas no essencial evite qualquer esforço, exija sempre o melhor e mantenha a ditadura do gatariado aí na sua casa. 

sábado, 4 de setembro de 2010

O nenúfar de Alexandra



«Existem apenas duas coisas: Amor, todos os tipos de amor, com raparigas bonitas, e a música de New Orleans ou Duke Ellington. Tudo o resto deveria desaparecer, porque tudo o resto é feio».
Foi esta a epígrafe escolhida por Boris Vian para “A Espuma dos Dias”, livro que Alexandra Lencastre em entrevista hoje publicada na revista Única afirma reler todos os anos.
Imagino Alexandra no lugar de Chloé, essa rapariga bonita, superlativamente amada mas condenada à morte por um nenúfar parasita no pulmão, que lentamente lhe vai sorvendo toda a água do corpo e lhe corrói  os tecidos. 
"A Espuma dos Dias" foi dedicado por Vian à sua primeira mulher, Michelle Léglise, que nesta fotografia surge ao lado de Simone de Beauvoir. Junto de Vian está Jean-Paul Sartre, rebaptizado no livro como Jean-Paul Partre e cujos fãs são satirizados pelo seguidismo acrítico.
É uma obra que descreve, para além da mulher que atrofia rodeada de flores e que o amor dos outros é incapaz de salvar, uma casa, um lar, que progressivamente também reduz o espaço e asfixia quem nele vive.
É um livro que merece bem ser relido. Mas quem o lê todos os anos, como Alexandra o faz, não pode deixar de ser alguém que sofre. Por mais amor ou flores que tenha à sua volta.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O meu caminho


Portugal vive inundado de cultura anglo-saxónica, repetindo talvez a obsessão da nossa elite, há um século, por tudo o que soava em francês. Devido à uniformização do gosto, temos deixado para segundo plano russos, escandinavos e centro-europeus em geral, mas também os brasileiros, o que talvez explique a relutância nacional em ler bons contos.
Nas línguas exóticas da Europa Central, o húngaro é particularmente impenetrável. E é pena, porque um dos seus escritores, Dezsö Kosztolanyi, é sem dúvida um dos maiores autores europeus do século XX.
Há um livro seu disponível, Cotovia, magistralmente traduzido do húngaro por Ernesto Rodrigues. O volume, da D. Quixote, encontra-se ainda nas feiras e livrarias e julgo que este romance atinge o patamar de perfeição de autores consagrados da mesma região, como Joseph Roth ou Robert Musil. Se o encontrarem em saldos, não hesitem. É a história de um casal de pequenos aristocratas cuja filha foi viajar. Eles não sabem o que fazer naqueles dia e os leitores acompanham-nos na sua redescoberta dos prazeres, mas também da constatação da velhice, decadência, solidão e vida provinciana. A cidade é inspirada na terra natal do escritor, Sabadka, hoje Subotica, na Sérvia. E a leitura deste livro repleto de humor e poesia permite compreender muito melhor o que aconteceu de terrível na Europa Central no último século. 

Contemporâneo de Musil e de Fernando Pessoa (três anos mais velho do que o poeta português, sobreviveu-lhe um ano) Kosztolanyi era sobretudo poeta, mas tem obra em prosa, com quatro romances importantes e dezenas de notáveis contos. Era primo de um escritor brilhante, Csath Géza, cuja vida dava um filme; foi também um dos fundadores da revista modernista Nyugat (Ocidente) e amigo de outro escritor de enorme originalidade, Gyula Krudy, um impressionista que inventou um estilo a que hoje se chama "realismo mágico". Krudy é figura ímpar e personagem quase inacreditável da história da literatura da Europa Central.

Vem este post a propósito de um conto de Kosztolanyi que encontrei numa colectânea de contos húngaros de 1941, da editora Gleba, onde constam alguns dos autores então conhecidos. Certamente traduzido do francês, pois o nome do escritor surge como Desirée Kosztolanyi.
O conto, O Meu Caminho, é uma jóia de humor. Muito curto, está dividido em nove pequenos fragmentos onde se conta a história de um homem, o narrador, que tenta conquistar o seu lugar num eléctrico repleto. Num dia muito frio vemos o eléctrico a sair do nevoeiro; "está cheio", dizem lá de dentro, mas o homem decide entrar, com o pé no estribo e o perigo de cair e de morrer; ele sente o desprezo dos que estão no interior e que desejam a sua queda; mas o narrador consegue conquistar um espaço na plataforma, no meio da multidão; agarra-se a uma correia, já despreza os que estão pendurados; conquista uma posição ainda melhor perdendo dois botões do sobretudo; perde também a mulher da sua vida, ao não desistir da luta; finalmente, está no interior, avança para um lugar sentado. Vejam este trecho, com o esplendor da precisão do poeta: "Os que estavam sentados, à minha volta, eram burgueses abomináveis. Apertavam aos corpos as suas espessas peliças, fortalecidos pelos direitos que adquiriram e de que não queriam ceder a menor parcela. Contentava-me com o que se me tinha dado. Fingia não reparar no seu orgulho mesquinho. Conduzia-me como um saco. Sabia bem que os homens, por instinto, odeiam os outros homens e que perdoam mais facilmente a um saco que a um dos seus semelhantes".
Não conto o resto da história, mas dá para adivinhar: ele conquista um lugar sentado à janela, símbolo do triunfo na luta diária pela impiedosa ascensão social.

Imagem: a senhora Kosztolanyi e o filho Adam, em 1923, num quadro do pintor húngaro Vilmos Aba-Novák   

sábado, 28 de agosto de 2010

Uma cena de ciúmes

Caros leitores: têm à vossa disposição, neste local, um conto sobre ciúmes. Decorre num bairro operário de Budapeste, em 1910, e baseia-se em histórias verídicas que se repetem ao longo dos tempos e em diferentes lugares. Pode também ser imaginação, não sei. É um dos contos de Lajos Kormányos, que já escreveu aqui posts e que tenho o prazer de traduzir do húngaro, apesar de não saber quase nada de húngaro.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A tecnofobia


Em Origem das Espécies, Francisco José Viegas lembra o recente aniversário do escritor americano Ray Bradbury. O autor fez 90 anos e foi citado como sendo tecnofóbico (algo ridicularizado no texto aqui linkado).
Para mim, Bradbury é a memória do fantástico filme de François Truffaut, Fahrenheit 451, de 1966, analisado aqui. Gosto de muitos dos seus contos, alguns de ficção científica, outros de fantasia, mais dos primeiros. Este A Sound of Thunder é particularmente impressionante. Também resultou num filme recente. Bradbury é um poeta e um sonhador, o mesmo que se pode dizer de Truffaut. Ele demonstra que o género literário não tem de ser um gueto de especialização. A ficção científica (FC) é essencialmente uma meditação sobre o presente, em demonstração por absurdo.
Um amigo dizia-me que a FC é de direita e o policial de esquerda. Apesar das generalizações tenderem a exageros grotescos, a observação é curiosa. Talvez porque as utopias têm a ver com a liberdade e as distopias com a sua ausência, a FC tende a ser bastante política. Na parte do policial já não concordo com a tese, pois vejo mais como um género pouco interessado em temas políticos.
Enfim, podia acrescentar outros elementos: a crítica ao excesso de tecnologia, por exemplo, parece ser um sábio alerta de Bradbury. Estamos tão embrenhados no mundo digital, tão distraídos com os nossos brinquedos, que progressivamente vamos perdendo a atenção pelo que nos rodeia.
A ciência já discute os efeitos deste tsunami electrónico no cérebro humano. As distracções constantes, a ansiedade relacionada com a expectativa de informação inútil impedem o pensamento profundo essencial para a poesia.
Por enquanto é uma teoria, mas está a ser testada: as máquinas podem estar a matar a poesia. 

sábado, 21 de agosto de 2010

O peru de Salinger


A retrete utilizada para os seus chichis e cocós pelo reclusivo J. D. Salinger está à venda no portal de leilões eBay por um milhão de dólares. A um olhar menos atento do leitor ou meu, a dita peça de porcelana parecerá igual àquela que temos na nossa própria casa, mas o vendedor promete um certificado de autenticidade incluindo número de série. 
Desde que fugiu da ribalta e se encafuou na localidade de Cornich onde viveu cerca de 50 anos, o autor desse livro tão do agrado dos fanáticos da conspiração que é "The Catcher in the Rye" foi envolvendo os habitantes da localidade na sua teia protectora. Quando o jornalista ou a fã indesejados chegavam com perguntas e pedidos de indicações, eram desde logo confrontados com o silêncio ou, na melhor das hipóteses, recomendações bem intencionadas para que dessem meia volta e desistissem da sua missão.
Tom Leonard, no entanto, não desistiu e terá mesmo registado as últimas palavras de Salinger proferidas a um jornalista, quando deu por ele do outro lado da janela de sua casa: "Oh não!".
A interjeição foi tudo o que Tom teve direito a ouvir do autor, mas logo compensou esse facto no artigo que escreveria com a história que lhe contou um frequentador da Igreja Unitária Universalista, recheada de úteis conselhos sobre o que fazer se porventura encontrasse Salinger num dos jantares de peru mensais da sua congregação, durante os quais o escritor dava várias vezes um ar da sua graça:
«Ninguém é suposto dar a entender que sabe que ele está ali». «Trate-o como se fosse apenas outra pessoa normal». «E não fale com ele a não ser que ele lhe dirija a palavra primeiro. Não gosta de conversa de chacha».  
Gosto de imaginar o esforço que J.D. faria para esquecer o seu misantropismo e percorrer os cerca de 15Km entre Cornich e a Igreja, apesar das sérias hipóteses de ser incomodado por um jornalista perseverante como Leonard. Devia pelar-se mesmo a sério por uma perna de perú.