domingo, 8 de agosto de 2010

Maldito na própria casa


Há cerca de vinte anos, por detrás de uma prateleira de livros nihilistas numa livraria do Vieux Port em Marselha, encontrei uma cassete áudio bem mais antiga do que eu com a gravação de "Pour en finir avec le jugement de dieu/Para acabar de vez com o julgamento de deus" (assim mesmo, em letra minúscula). Até então nada me interessara a obra e tão pouco a vida de Antoine-Marie-Joseph Artaud, nascido ali mesmo em Marselha a 4 de Setembro de 1896. Mas, quando liguei o walkman, ouvi isto e muito mais ainda.
A história em torno da censura desta peça radiofónica é bem conhecida e, quem não a saiba, descobre todos os detalhes à distância de um par de cliques na rede. Mas na biografia do autor de "Heliogabalo" há uma noite de Junho, em 1937, cujos acontecimentos me impressionaram bem mais. Uma noite que apenas li relatada - e mesmo assim en passant - no livro de Sthephen Barber.
Nesse período, Artaud "le Momô" estava finalmente em Paris, fora do confinamento no asilo de Rodez, de onde saira marcado até ao ponto de todos os dentes lhe terem caido sob o efeito traumático dos sucessivos electrochoques. Aos poucos vai recuperando alguma vida social e revê, entre outros, o seu rival de estimação André Breton.
É então que Roger Blin organiza  um sarau em sua homenagem. Todos os amigos e conhecidos de Antonin, incluindo uma das suas "filhas" do coração, Colette Thomas, estão presentes e interpretam obras suas; "Fragmentações", "As Novas Revelações do Ser"...Mas Artaud, o próprio celebrado autor Antonin Artaud, é impedido de assistir com o argumento de que poderia sofrer a experiência como demasiado chocante.
É certo que entre o sarau e um leilão, também efectuado dias depois, Breton, Adamov e outros angariaram cerca de um milhão de francos em benefício de Artaud. Mas esse momento, essa noite em que o homenageado foi impedido de comparecer num dos pontos mais altos da sua maldita e insólita carreira, no espectáculo que era seu, esse sim, é para mim um choque.



2 comentários:

  1. João, que texto delicioso de novidades.

    Quanto aos electrochoques, não se preocupe muito, segundo o dr. João Lobo Antunes, não assim tão mais como o cinema e a literatura nos querem fazer crer, e muitas vezes são até mais compensatórios, em termos de cura duma depressão, por exemplo,por a cura ser mais rápida, do que uma quantidade enorme de medicamentos que põe o doente quase inanimado.

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  2. Obrigado pelas informações Hele...quer dizer, lili. Mas mesmo assim passo. Bjs

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