sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Panteísmo e morcelas


O episódio é contado por José Calvet de Magalhães em "Antero - A Vida Angustiada de um Poeta". Em 1863, Antero de Quental (então ainda estudante em Coimbra) foi viver para uma casa na Rua da Trindade, onde moravam também os irmãos Alberto e José Sampaio, Frederico Filémon da Silva Avelino e Eduardo de Andrade.
Numa tarde de estudos em conjunto, Antero cansa-se da leitura partilhada da sebenta e deita-se com as botas ainda recobertas de lama sobre a cama de José Sampaio, resmungando por diversas vezes: «Acabem lá com essa maçada!».  Como os amigos não lhe fizessem a vontade, ruma até à cozinha para assistir aos preparativos da ceia, que incluia sardinhas fritas e morcelas de Arouca. A partir daqui, reproduzo as palavras de Calvet de Magalhães:
«Acabado finalmente o estudo, juntou-se ao grupo Eduardo de Andrade, que estudava para o seu quinto ano noutro quarto, e chegou mais outro convidado, um primo de Antero. A ceia principiou por um excelente caldo bem quente, seguindo-se as sardinhas fritas, aguardando todos com impaciência as deliciosas morcelas de Arouca. Foi Filémon quem as provou primeiro para, fazendo uma careta, as cuspir logo, horrorizado, o que fizeram também os outros companheiros. Só Antero, impávido, comia, dizendo que lhe sabiam bem. Chamou-se a criada e foi-lhe perguntado o que diabo tinha feito às morcelas que sabiam tão mal. A pobre mulher respondeu:
- Eu, meus senhores, não sabia como isso se cozinhava. Nunca tinha visto dessas chouriças amarelas e quem as cozinhou foi o senhor Antero.
- Mas o que é que deitaram nas morcelas? - perguntou alguém.
- O senhor Antero - retorquiu a criada - depois de eu ter frigido as sardinhas, frigiu no mesmo tacho as tais chouriças, que os senhores chamam com esse nome!
Todos se lançaram em invectivas contra Antero, injuriando-o, mas este, muito calmo,  limitou-se a dizer:
- Sois uns tolos e com um bem esquisito paladar! Que importa que se misturem morcelas com sardinhas! Tudo é matéria. Ou bem que somos panteístas, ou bem que não somos!

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