terça-feira, 26 de outubro de 2010

O sonho feminino


Num dos primeiros sonhos de Jia Bao-yu, uma dama imaginária explica-lhe a diferença entre a luxúria superficial e “a luxúria da mente”: a primeira, a incessante busca do prazer carnal, a outra mais subtil e feita de “ternura inocente” e “doce fantasia feminina”. Esta é uma passagem estranha (o sonho transforma-se depressa em pesadelo) e marca a iniciação à sensualidade erótica da personagem principal do clássico chinês O Sonho do Pavilhão Vermelho (Hong Lou Meng), escrito por um autor, Cao Xueqin, que morreu em 1763 (ou 64), provavelmente com pouco mais de 40 anos. O livro é também conhecido por História da Pedra, por começar com um pequeno episódio tipicamente taoísta, envolvendo uma pedra. Na literatura chinesa (infelizmente, tão desconhecida entre nós) esta obra é considerada uma das principais jóias. Fala dos prazeres e da estranha magia que faz girar o masculino em torno do feminino, à semelhança de outras oposições, como a matéria e o sonho, a luz e a sombra, o real e o irreal.

Em outra passagem do mesmo sonho, a personagem imagina um mundo feminino, delicado e complexo, repleto de prazeres e conversas sussurradas, risos e harmonia, flores, aromas e luz. Este é um texto sobre a nostalgia da perfeição, mas também um fio de histórias em rio de impressões. Consiste na busca do eu profundo ou no desejo de esquecer a realidade mais sórdida lá fora.

O livro foi escrito num tempo perturbado e decadente, o século XVIII chinês sob a dinastia Qing, a mesma Era Manchu em que houve um importante movimento artístico, mas que coincidiu com a queda do poder mundial da China, devido à incompetência dos seus imperadores. O livro é muitas vezes comparado a Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, que os leitores portugueses conhecem, mas no fundo pertence a toda a classe de romances que choram o desaparecimento inexorável de um modo de vida.
Na obra de Cao Xueqin, o mundo feminino é exclusivamente íntimo, ou seja, corresponde ao interior da casa, protegido da turbulência, e é alheio à violência política que torna tudo precário. Na obra, existem elementos autobiográficos: no início do século XVIII, com um novo imperador, a família Cao caiu em desgraça: a beleza sonhadora foi vivida pelo autor apenas antes dos 13 anos; no fundo, o tempo da narração é o período feliz da infância do escritor chinês, que terá morrido na miséria, em idade prematura.

Este post não é sobre O Sonho do Pavilhão Vermelho, livro extenso do qual li no máximo um quinto e em relação ao qual não posso dizer muito. Apenas comecei a pensar sem rumo sobre estas ideias da perfeição feminina e da luxúria da mente. Segundo a criatura sobrenatural e luminosa que encanta o sonhador, querer todas as mulheres do mundo e possuí-las não passará da satisfação de um impulso de banalidade vazia. A luxúria da mente, por outro lado, corresponde ao “amor cego e indefeso”. Não pode ser explicada em palavras: ou se sabe o que é, ou não se sabe. Vista pelas mulheres, esta luxúria é amigável; vista pelo mundo exterior, é excêntrica e pouco prática. Em resumo, trata-se de um olhar poético sobre o que nos rodeia.

Se o feminino é o complexo, então vivemos hoje num mundo feminino, ou melhor, no mundo mais feminino em que jamais viveu a humanidade. Durante séculos afastadas das decisões mundanas, as mulheres ganharam recentemente uma influência como nunca tiveram no passado. E isso está a transformar as sociedades, pois se as mulheres exercem esse poder muitas vezes com insegurança, porque têm de ser melhores do que os homens, parecem por outro lado mais hábeis a apaziguar conflitos, a criar pontes de entendimento, a pensar no interesse das gerações seguintes.
Acredito que o mundo tende para certa harmonia, já que a evolução do Homem (que não parou) produzirá seres ainda mais sociais do que os anteriores. Nas coisas humanas, a bondade resulta. E deve até ter vantagens evolutivas.Por isso, os humanos do futuro serão talvez menos pragmáticos e mais sonhadores, o modelo do "homem bom" será menos raro. E reparem como a bondade é sobretudo feminina, ligada ao que é profundo e íntimo.

No sonho de Jia Bao-yu estamos à partida na “Terra da Ilusão”. Existe uma porta com uma inscrição a indicar esse nome e, por baixo destas palavras, escreve-se o seguinte: “A verdade transforma-se em ficção quando a ficção é verdadeira”; e, depois, “o real transforma-se em não-real quando o irreal é real”. São ideias muito taoístas, parece-me, fazem lembrar a citação de um mestre desta filosofia: “As coisas não são o que parecem, nem são de outra forma”. E também ocorre a actual física quântica.
Há quem consiga encontrar beleza em tudo e estas pessoas parecem mais felizes, embora estranhas a um mundo treinado para encontrar apenas os defeitos.
Sim, andamos à procura do que está mal e associamos isso a uma ideia de progresso. O nosso erro produziu os problemas. É um conceito muito ocidental. Se descobrirmos o erro, poderemos reparar o problema.
E, desta forma, entramos numa outra terra de ilusão, onde parecemos ter algum controlo sobre o que sonhamos.

Não leiam este texto como uma reflexão organizada. Volto aos taoístas: era Lao Tse quem dizia (cito de cor) que "os sábios são os que ficam calados" e que "o silêncio dá força".
Na nossa realidade tão tagarela, estas parecem ideias estranhas. Parece que quem fala mais alto é mais sábio. Embora não seja assim.
A um mestre vieram perguntar o que se deveria fazer com uma mão cheia de nada. Ele respondeu: "mande fora". Temo que seja válido também para este texto e para o muito vazio que lemos e para o muito vazio que somos.
O mundo contemporâneo é cheio de certezas e de "teorias verdadeiras". Mas se olharmos bem, veremos que é o mundo da incerteza, em que se esbateu a fronteira entre o irreal e o sonhado, a terra de ilusão que não sabemos bem onde fica. Precisamos de procurar o lado poético da nossa vida, exercitar a luxúria da mente; precisamos de deitar fora o vazio, em vez de deitarmos fora a irrealidade dos nossos sonhos.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Consultório do doutor Benji (4)


Doutor Benji, preocupa-me a subida do IVA para 23%, para cobrir o buraco orçamental. Isso significa que somos nós, as gatas e os gatos, a pagar outra vez a factura. Que fazer? (Lulu, Lisboa).
Tem toda a razão. Somos nós a pagar a crise e 23% é manifestamente injusto. E onde estão as contrapartidas? Temos a comida enlatada a uma taxa elevada de imposto, fazemos mover a economia, contribuímos com a nossa alimentação para a receita fiscal bruta. E onde estão os serviços para gatos, as clínicas para gatos, as escolas especiais para gatos, os hotéis públicos durante as férias dos nossos donos? O facto é que não há serviços para nós, não há socialismo que nos defenda. É pagar e não miar.

Estão na moda estas coleiras para gatos que nos impedem de lamber os nossos traseiros e manter a devida higiene. A minha dona diz que preciso da minha coleira para tratar uma ferida, mas não acredito. Acho que ela me está a enganar. (Faísca, Cascais).
Teve imensa sorte, caro Faísca, pois a sua coleira, com guizos titilantes, poderá permitir-lhe virar o feitiço contra o feiticeiro, neste caso, a feiticeira. Torture a sua dona com barulho constante da coleira. Faça frenéticas danças de guerra no quarto, quando ela estiver a dormir. Faça-lhe ver que nós, os gatos, não fomos feitos para usar coleiras que nos impeçam de lamber o nosso traseiro, que como todos sabem é uma zona sensível que precisa de lavagens constantes. Não é natural, quando a nossa língua não chega a todos os pontos do nosso corpo. Em relação ao design da sua coleira, em particular, trata-se de um cruel insulto. Quando é que os macacos humanos vão finalmente perceber que nós, os gatos, não temos sentido de humor e, portanto, não podemos ser bobos da corte?

Tenho visto na National Geographic felinos que andam soltos pela planície e que caçam búfalos. Os meus donos obrigam-me a caçar moscas e insectos voadores. Esta situação é legal? (Fifi, Amadora).
Não existe legislação nacional sobre o trabalho gatal, mas a convenção universal dos direitos dos animais, reunida em Nova Iorque, equiparou o trabalho gatal ao trabalho braçal, pelo que o seu trabalho não remunerado equipara a escravatura. Na realidade, pode processar os seus donos e obter uma choruda indemnização, mas tente recebê-la já com o IVA pago, senão terá de descontar 23%. Ou, se os seus donos são trabalhadores por conta de outrem e se não conseguem fugir aos impostos, o melhor é fazer-lhes ver que se querem um animal para caçar moscas, devem comprar um daqueles lagartos de língua comprida. Vi na National Geographic, são muito mais eficazes do que os mata-moscas tradicionais.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Vargas Llosa


Apesar de Mario Vargas Llosa ser em cada ano o primeiro nome de qualquer lista sensata para esse prémio, parecia que o Nobel da Literatura lhe iria passar ao lado, como aliás aconteceu com tantos grandes escritores com quem a academia sueca embirrou, como por exemplo Jorge Luis Borges ou John dos Passos. Há muitos outros exemplos, ao lado de nomes vencedores que os leitores esqueceram depressa.
Hoje, foi anunciado que Mario Vargas Llosa, de 74 anos, ganhou o prémio Nobel da Literatura de 2010. É uma decisão justa, sobretudo porque os seus livros escritos nos anos 60 mantêm uma juventude e uma actualidade que os temas muito políticos do autor poderiam facilmente ter comprometido.

O autor de romances como Conversa na Catedral, A Guerra no Fim do Mundo, A Festa do Chibo, Lituma nos Andes, Travessuras da Menina Má (os que li dele) é também ensaísta e contista, foi candidato presidencial peruano em 1990, derrotado por um presidente de má memória para o Peru, Alberto Fujimori.
Em muitas entrevistas, Vargas Llosa tem explicado os seus métodos de trabalho, muito precisos e regulares. Além disso, continuou a escrever textos de intervenção política e cívica, comentando os assuntos do mundo, o que não é frequente na literatura.

Vargas Llosa é porventura o autor vivo que melhor retratou a violência política dos nossos dias, a luta inglória pelas utopias, o cinismo das ditaduras e da opressão ideológica. Ele denunciou o totalitarismo da esquerda e da direita e tornou-se mais incómodo por nunca ter visto o mundo a preto e branco. Para mim, é um escritor da liberdade, da imaginação fértil, perito em personagens complexas, com o gosto do comentário social. Tem sentido de humor, subtileza, filigrana técnica e rara compreensão dos derrotados da história e dos mecanismos do poder.
A escrita do prémio nobel de 2010 (cujo próximo livro será publicado aqui) é muitas vezes quase insuportável, devido à violência das situações, a dificuldade da redenção, o sofrimento das suas personagens ou ainda por causa dos excessos devassos. Mas existe uma sensualidade permanente na sua prosa, na paisagem desmesurada, na exaltação humana, nos ímpetos da paixão que ele tão bem retrata.
Mas Héctor Abad explica tudo muito melhor.
Rui Bebiano tem aqui um bom texto e lembra um aspecto por vezes esquecido: o Prémio Nobel da Literatura tem uma componente política e ética.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A mulher de negro

As horas apertavam-me e as cinzas do dia esmoreciam na escuridão vaga do meu coração vazio.
O arrepio que recordo vinha do murmúrio das velhas folhas ainda suspensas nos ramos. Do rio feroz engrossado pelas chuvas, do ar curvado em vento, que devagar arrefecia o manto morto sobre o caminho. E, atrás do arvoredo do parque, os telhados sombrios da minha cidade.
O pálido mundo já apodrecia, numa brandura silenciosa, no sorriso disfarçado, num golpe de vento, no azul que deslizava com a triste melancolia dos entardeceres de Outono.

Além do parque, a água do rio cantava uma melodia comovente.
Ou assim me pareceu, pois era aquela mulher de negro quem chorava. Sentara-se ao frio no banco do jardim, mostrando a sua grande pena pela vida. Mas exibia a desgraça apenas às aves que passavam no céu, apressadas e alheias, e a mim, involuntariamente, cujos passos as folhas mortas tinham transformado em silêncio, e a mais ninguém, pois que não havia outras almas naquele parque deserto, por qualquer razão que não recordo passados mais de cem anos, talvez alguma ocasião solene ou festejo.
Parei em frente à mulher que chorava e ela parou de chorar. Olhou para mim. Perguntei se precisava de alguma coisa, se a podia ajudar de alguma forma. E ela respondeu que não, cavalheiro, que eu era muito gentil, mas que não se passava nada, uma tolice, apenas. Não a podia ajudar.
Ela tinha os olhos muito vermelhos e resisti a abandoná-la. Mas a mulher (observada mais de perto, tinha um vestido pouco elegante, era do povo, bastante banal de beleza) sorriu-me para me encorajar a prosseguir o meu caminho. Não era nada comigo, enfim, hesitei ainda e depois segui pela vereda de folhas, tentando meditar nos meus problemas filosóficos, nos quais pensava muitas horas.
Terá sido no dia seguinte, quando me sentei na mesa do café (como fazia sempre, às 11) que abri o jornal e li, com espanto, a notícia de que uma mulher se atirara ao fim da tarde ao rio que fica ao lado do parque. Uma mulher do povo, vestida de negro, ninguém a pudera salvar, desaparecera de imediato nas águas turbulentas do rio que atravessa a nossa cidade.

Durante uma semana, com o coração pesado, dei os meus passeios pelo parque. Instalara-se o frio e a certa hora, quando as cinzas do dia esmoreciam, não se via vivalma. Foi assim, até que, num desses passeios, julgo que era quinta-feira, ao aproximar-me de um dos bancos do jardim, vi uma mulher sentada. Vestia de preto, mas não chorava.
Aproximei-me. De súbito, percebi que era ela, a mulher que eu perdera. Parei à sua frente.
Ela sorriu para mim, lívida. E sentei-me a seu lado. 

Fantasma 

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Masturdating*

Que sente um homem só na pista de dança?
Que pensa um homem só na esplanada à beira mar?
Que compras faz um homem só no hipermercado?
Que come um homem só na cozinha?
Que lugar escolhe um homem só no cinema?
Que lugares visita um homem só numa viagem?
Que sorriso faz um homem só numa fotografia?
Que sonha um homem só que dorme só no lado esquerdo da sua cama?
Quem chama o homem que morre só numa enfermaria?
Quem amou o homem que foi só a enterrar?

* Do calão inglês

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Onde o sol morre na cruz, como Jesus

sob a projeção da luz, que inunda a sala, todos os conjurados se levantam e desaparecem pelas portas entreabertas, enquanto de ouve na rua a voz de...


O Alma


Nasce morta a luz da aurora
Sobre a terra portugueza.

E d´esta luz falecida
Nascem já murchas as flores;
E nascem almas sem vida
E sem amôres...

O´ Portugal solitário,
E´s um calvario
Onde o sol morre na cruz,
Como Jesus...
E a sombra escura,
No ar infindo
Empedernindo,
Toma não sei que tragica figura,
Ameaçadora...

Que luz tão fria!
Nasce morta luz da aurora...
E a luz do dia
Cáe, em sombra, na terra portugueza...
Ai, que tristeza
E que melancolia

(In D. Carlos - Drama em Verso, de Teixeira de Pascoaes, Quarto acto, cena I - escrito em 1919).

sábado, 2 de outubro de 2010

I will survive

Há cerca de dois meses desci a 300 metros de profundidade, sessenta abaixo do nível do mar, na mina de sal gema de Loulé.

Foi uma experiência única. A dada altura entrei sozinho num longo e escuro túnel, e dei comigo a pensar: “E se me perder? Se a única luz ao fundo do túnel for a minha? Alguém me encontrará?

Não é esquisito sermos nós a única luz num túnel?

Não estamos habituados a isso, não é? A apoiarmo-nos apenas no que a nossa vista alcança...

Pois bem, foi ali, onde o sol não entra, que se fez alguma luz sobre muitas dúvidas que tenho quanto ao meu futuro. Não há que ter medo. Um dia a luz chegará.

Há alturas na vida em que temos medo ao medo, como na canção do Fausto (Tenho medo ó medo, Leva tudo é tudo teu, Mas deixa-me ir.)

Vivi quase toda a vida em utopias, perseguindo sonhos. E muitas foram as vezes em que me espalhei.

Mas, ainda assim, recuso-me a viver num mundo onde essas duas palavras não façam sentido.

Por isso, nem que me sinta perdido num túnel, o meu mundo será sempre feito de utopias e de sonhos! Sem medos. Mesmo que os sinta. Sei que um dia, lá do fundo da mais escura galeria da mina, onde tantas vezes me sinto estar, um Anjo com asas brancas de flor do sal, iluminará o meu caminho.

Morrerei no dia em que deixar de acreditar nisso. Não sobrevivi ao que sobrevivi, para agora levar o resto da minha vida descrente disso. Não fui tocado pelo divino, mas passei a gostar também dessa palavra.

E o segredo talvez seja acreditar que num simples passeio à beira mar, uma mulher e um homem possam tocar o divino, o poético; o maior dos silêncios que se encerra num sorriso que se esboça durante uma troca de olhares.

Talvez esteja aí o divino. Talvez seja essa a dimensão do sonho e da utopia!

Talvez seja nisso que acredita o homem que dança só, numa pista de dança, algures nessa noite escura de Lisboa.