quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Pensar como uma Montanha 2


O Homem mata sempre as coisas que ama, e por isso nós, os pioneiros [americanos], matámos a nossa natureza selvagem. (…) Para que servem tantas liberdades sem um único ponto vazio no mapa?. Aldo Leopold, 1949

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Dicionário das Ideias Estreitas



F

Felicidade - Sobre ela deve dizer-se sempre: é o que as pessoas mais querem da vida. Desígnio último do homo-consumus. Como se sabe, é uma meta inalcançável para quem não compra todos os produtos dos anúncios publicitários, para quem não casa, não fode, não tem filhos e para quem não aparece na televisão.

Dicionário das Ideias Estreitas




E

Elefante Branco - Espécie animal rara mas que abunda em Portugal. Diz-se de qualquer obra iniciada pelo Estado é mais um elefante branco

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Histórias de jornalistas III (O lanterna vermelha)


“Naquele tempo, as estradas eram infernais, cheias de buracos e havia perigos escondidos em cada curva. Andar na volta a Portugal em Bicicleta era uma coisa de doidos, para homens como já não se fabricam. Você, que é jovem, pergunta-me qual o momento mais fantástico a que assisti, mas não consigo escolher, de tantos episódios que me ocorrem. A memória é estranha, menino, as coisas misturam-se, baralham-se, mas o que mais tento lembrar são aqueles homens já esquecidos, os lanternas vermelhas que se arrastavam atrás do pelotão, derrotados e, no entanto, persistindo sem fôlego montanha acima, sem aplausos do público, quantas vezes com o escárnio dos que nas margens das estradas só viam o heroísmo sem verem o sofrimento. Para mim, esses eram os melhores, os que nunca desistiam, seguindo sozinhos, acompanhados apenas pelas suas dores”.

domingo, 28 de agosto de 2011

"Pensar como Uma Montanha"


A partir de hoje, durante algumas semanas, transcrevo aqui frases do fundador da Ética da Terra - o americano de origem alemã Aldo Leopold (1887-1948) - que encontro na tradução para o nosso português do seu livro A Sand County Almanaque (1949), editada pelas Edições Sempre-em-pé em 2008 com o título Pensar como uma Montanha.
São pequeninos textos. Talvez possa deixar um por dia, talvez apenas dois ou três por semana. O certo é que um, na sua simplicidade ou profundidade, universalidade ou actualidade, na sua poesia, humor, beleza ou leveza, tem o condão das asas próprias, de ficar a ecoar nas nossas cabeças, de saltar por cima do tempo como se ele ali não estivesse, talvez até de influenciar os bits informáticos e impressionar o apático hardware. Talvez, não sei. Logo veremos.
Primeira delas:

“É uma ironia que as grandes potências tenham descoberto a unidade das nações no Cairo em 1943. Os gansos de todo o mundo tinham essa noção há muito tempo já, e todos os anos em Março apostam a sua vida nessa verdade essencial.”

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Poema # 1



Amo-te. Basta-me um pássaro, uma árvore
para me transportar ao jardim
de ti — um livro, uma palavra, o peso
do silêncio
para me levarem ao poço de ti,
aos teus olhos que ofuscam
o cristal da manhã; à tua boca
aproximando-se da minha pele
como se regressasse a casa.
Cantar-te é desfazer o nevoeiro da minha vida,
desfiar uma chama, ardendo lenta,
que não se via. E basta-me um vinho
ou a tua língua,
ou a memória dela
para que em mim disparem águas
trémulas — ainda são — por isso
quando te amo
sou um pouco essa montanha que tece com o vento
uma combustão muito lenta muito paciente
como se todo o fulgor da vida
se concentrasse nos vales e nos rios do teu corpo.

[Casimiro de Brito, in AMAR A VIDA INTEIRA]

domingo, 14 de agosto de 2011

Dicionário das Ideias Estreitas



D


Dalai-lama - Pessoa que se veste sempre de cor-de laranja (não confundir com uma estrela pop). Quando fala diz coisas muito espirituais e plenas de significados místicos. Quando se cala também.
É totalmente bom. As pessoas que o seguem e tentam tocá-lo são, também elas, muito espirituais e totalmente boas. As que seguem os padres e o papa são beatas. As que vão à mesquita são fundamentalistas.
A propósito falar sempre de paz e mencionar que “gostava muito de ir ao Nepal”-

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O tempo corria devagar

Acordávamos estremunhados, ou talvez não chegássemos sequer a dormir, com medo das horas. A noite embrulhava-se, ainda, no escuro e nós vestíamo-nos à pressa, enfiando a roupa preparada de véspera, sem fazer barulho. Queríamos tanto ir.
E então íamos, muito calados, a conter a ânsia da viagem que nos levaria para longe,  para uma outra vida de tardes de sol e de sestas, de pedrinhas brancas de pederneira e folhas cheirosas dos arbustos, de fruta apanhada das árvores, de correrias e brincadeiras. Uma vida que durava os três meses inteiros que durava o Verão.
A viagem. Uma camioneta ronceira, que partia de uma praça de Lisboa, junto a uma garagem de proporções gigantescas (pensávamos nós). O céu iluminava-se de púrpura e vermelho, vencendo a escuridão aos poucos, e à volta da camioneta era  uma confusão de malas atadas com cordas, de cestos de verga e vozes sobrepostas. O motorista queria sair à hora e nós corríamos para os lugares de trás, era mais divertido, dizíamos nós, já não me lembro porquê. O farnel sobre as pernas (um panado no pão e uma peça de fruta embrulhados num guardanapo de pano), e lá íamos. Era a festa da camioneta a sair da cidade, a entrar naquelas estradas onde começavam a rarear as casas e a suceder-se as curvas.
A paisagem transformava-se, viam-se cavalos e manadas de vacas, casas de pedra isoladas nos campos, o licor beirão nas fachadas de granito das vilas perdidas no meio dos montes (o que é isso, licor beirão? mas a nossa mãe também não sabia), o cansaço das curvas, e do ronco da camioneta nas curvas e nas subidas, os pinheiros e os barrancos (nunca mais chegamos, quando é que chegamos, mãe? E ela, sempre a mesma resposta, ainda falta, dorme um bocadinho).
Nós dormíamos e a camioneta seguia devagar, sempre às curvas. Levava o dia inteiro naquilo, até que avistávamos a lagoa de águas mansas, os juncos nas margens cobertas de seixos negros, os patos voando em bando. Estávamos quase a chegar e o nosso entusiasmo reacendia-se. Esquecíamos o cansaço, o caminho ficava para trás. À chegada, lá estava a nossa avó, sorridente, à espera. Pela frente, teríamos dias inteiros de brincadeira e correrias, de pedrinhas brancas e folhas cheirosas dos arbustos, tardes de sestas e o aroma eterno da resina dos pinheiros. O tempo corria devagar, a nosso favor.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A ambulância cor-de-laranja



A oferecida da vizinha preparava-se para sair. Estava a acabar de dar um jeito ao cabelo, na casa de banho.
– Vuuuuuuuuuuuuuu. Toc, toc, toc. Klank. Toc, toc, toc. Vuuuuuuuuuuuuuuu. – O secador soprava, eléctrico e ritmado, através do tecto, interrompido pelos retoques na maquilhagem e mais uma troca de roupa.
Andava de saltos altos pela casa fora, como se estivesse na passerelle. Nem os tirou quando chegou do trabalho. Mas a roupa mudou, ai se mudou, que aquele fato másculo de advogada em ascensão não serve para a night. Sinceramente, não percebo como se pode andar de sapatos calçados em casa. A coisa que mais gosto é de estar de pantufinhas, ou descalço se estiver calor, para sentir os azulejos frios da cozinha e as franjas dos tapetes do corredor nos dedos dos pés. E só com o meu pijama vestido, ou com uns calções largos e uma t-shirt XXL esguedelhada.
Esta, anda quase sempre de saltos de agulha. É daquelas que nem os tira quando se põe de lingerie a excitar os namorados. Também já a ouvi a gemer que nem uma arara, a empenar o estrado da cama e a pedir mais força, mais força, meu cabrão! Uma desavergonhada. Mas agora põe sempre música alta, ou a televisão, para disfarçar.
Se eu desligar tudo, consigo perceber perfeitamente em que divisão está e o que anda a fazer. Chama-se Madalena, nem de propósito. Madalena Brito. Já memorizei os horários dela: de quinta-feira a domingo nunca aparece antes das cinco, seis da madrugada, a tropeçar nos degraus e a cantarolar, antes de arranhar a porta toda com a chave. E na semana de licença menstrual faz tudo menos repousar, como pretende a regulamentação, e chega a ficar às duas e três noites sem aparecer em casa. Nos outros dias finge que se porta bem, numa firma de advocacia de que aspira a ser um dos sócios. E já a vi na televisão uma vez, a defender a Luciana Abreu quando esta se divorciou daquele avançado negro do Everton, o Yannick Djaló.

domingo, 7 de agosto de 2011

DICIONÁRIO DAS IDEIAS ESTREITAS



C

Cabo-verdianos (subst) - Dos que vivem em Cabo Verde diz-se que são “um povo sorridente e hospitaleiro”.Dos que vivem em Portugal diz-se são "os pretos". Comem cachupa. Falam crioulo e trabalham nas obras.
(Cabo-Verde) - País muito apreciado por aqueles que gostam de se fazer passar por viajantes intrépidos e destemidos, mas que depois terminam sempre a falar das comodidades do hotel, das piscinas e das mulatas que passam ao longe.

DICIONÁRIO DAS IDEIAS ESTREITAS


B

Bacalhau (subst) - A propósito deste espécime é obrigatório afirmar com ares de proprietário: “em Portugal come-se bom bacalhau”. Em seguida deve-se dizer entre um vago suspiro: “agora vem todo da Noruega”, como se antes viesse todo ali da Nazaré.
Peixe que serve aos cérebros e olfactos mais rudimentares para fazerem piadas sobre o órgão sexual feminino.

DICIONÁRIO DAS IDEIAS ESTREITAS*




A


Aborto (subt)-Assunto sobre o qual todos se podem manifestar com igual ênfase. A esquerda é a favor. A direita é contra. Mas, em qualquer dos casos, não vá o diabo tecê-las, rematar a conversa afirmando “ninguém é a favor do aborto”. A propósito falar sempre do valor da vida.
(adj)- Classificar com a exclamação “é um aborto!” qualquer pessoa cujas palavras ou comportamentos são diferentes dos nossos



* Uma homenagem a Ambrose Bierce (Dicionário do Diabo) e Gustave Flaubert (Dicionário das Ideias Feitas)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Histórias de jornalistas II (Douro, paixão fluvial)


O Douro deslizava numa placidez mansa de Agosto. A cidade era uma paleta gigantesca. O senhor galante viu aquela mulher alta a passear à beira-rio: tinha um chapéu de palha azul-escuro e vestido de seda, em contraste com o brilho do sol na quietude da água. Guapa, pensou, muito guapa.
Aproximou-se porque ela estava sozinha, aproveitava para uma troca de amabilidades. Era um pouco mais baixo do que ela, sendo isso uma pequena contrariedade, que decidiu ignorar; polaina branca, casaquinha curta, a gravata prosapiosa (seria assim num jornal a descrição do conhecido escritor, mais a sua bengala à Charlot). Alfinetadas de meios literários.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Aniversário

O Emoções Básicas faz hoje um ano. No primeiro post escrevi o seguinte:

Esta seria a minha primeira experiência. Não quero abusar da paciência de ninguém. Este blogue serviria para uma espécie de diário pessoal, mas um diário público é um absurdo. Nunca confessamos os nossos pensamentos mais íntimos, antes os disfarçamos numa sucessão de vidas paralelas, como se tivessem deixado momentaneamente de ser os nossos. Seria cruel escrever a verdade. Ou não será esta a essência da literatura, habitar outras existências, como fazem os actores, mas sem sermos nós? Criar universos que não sendo os que nos rodeiam, diferindo subtilmente destes, não resultam apenas da nossa fantasia? É isto que tentarei fazer aqui: imaginar, observar, relatar experiências, embora quase nunca parecendo isso, disfarçando o autobiográfico com a camuflagem do ponto de vista. E juntar todas as emoções num catálogo, num almanaque apropriado.
Saudações aos leitores. A intenção deste blogue era criar uma espécie de oficina de escrita, com liberdade de estilos, que pudesse evoluir, a pouco e pouco, na direcção de uma autêntica revista literária online. Eu dei o pontapé de saída, depois entraram o João Villalobos e o saudoso Pedro Beça Múrias, um homem bom que infelizmente nos deixou.
A equipa foi crescendo e continuará a aumentar. Sei que o projecto era demasiado ambicioso, mas julgo que neste ano se acumulou aqui um trabalho de diferentes autores, com reflexões sobre cultura e alguma produção literária original. Houve muitos altos e baixos, pois é difícil ter disponibilidade para um trabalho exigente e voluntário. Nos blogues literários, a maior dificuldade é conseguir obter um ritmo que atraia os leitores e os fixe a uma leitura diária. Neste registo, quando aumenta a produção, baixa sempre a qualidade. Podíamos ter optado por um blogue literário tradicional, com noticiário e leituras de livros, mas preferimos apostar na crónica, no conto e na poesia. É uma aposta difícil, eu sei, mas os autores têm pelo menos uma obrigação, a de lutarem contra a invisibilidade do seu trabalho.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Um post banal sobre banalidades


Antes de existirem as redes sociais na internet, havia enorme veneração e respeito por quem tinha acesso ao espaço público da escrita, por exemplo, em jornais. Escrever e publicar um artigo de jornal era um feito digno da maior admiração e inveja. Nunca era exactamente pelo conteúdo do artigo, mas pelo facto de este ter sido publicado. E as pessoas diziam, "lá vai fulano, que publica artigos no jornal". Sabendo-se lido pela comunidade, naquele dia fulano podia entrar no café um pouco mais inchado. "Vossa Excelência leu o meu artigo no jornal? Pois eu digo lá que o governo é uma vergonha".
É fácil perceber que em dez anos a internet mudou isto tudo. As redes sociais democratizaram o acesso à escrita pública e, como acontece em todas as grandes aberturas democráticas, há os habituais abusos: as pessoas aproveitam para banalizar a sua nova liberdade, trocando mexericos, em vez de ideias que possam resistir até à edição seguinte.
A democracia incomoda os poderes e, no caso dos blogues, a crítica dos comentadores que tinham acesso exclusivo à escrita pública centra-se na agressividade do discurso dos recém-chegados. Curiosamente, estes comentadores esquecem que a imprensa mudou muito nos últimos cem anos, devido à concentração de títulos. Onde havia 30 ou 40 diferentes títulos, na sua maioria panfletários, há agora cinco ou seis, todos muito certinhos. A opinião nos jornais tornou-se profissional e séria, mas menos diversa e também menos combativa. As polémicas desapareceram por completo.
Daí que as redes sociais, a blogosfera em primeiro lugar, tenham preenchido o crescente vazio da chamada comunicação social. Não haverá muitos Cíceros, mas hoje, qualquer pessoa alfabetizada pode ter um blogue e escrever o que pensa. A dificuldade está na escolha e há fenómenos próprios do meio, como por exemplo o efeito bola-de-neve que dá excesso de visibilidade a autores menores. Por vezes, a diversidade mais parece a que existe nos hipermercados, algo ilusória, em que há dez marcas do mesmo produto, sempre com o mesmo fabrico e preços finais diferentes.
Mas por muitas ilusões que as redes sociais tragam, por muitas desilusões, existe uma democratização do espaço público da escrita, o acesso à voz do cidadão, uma partilha de ideias alargada. Sim, circula muita banalidade. E qual é o problema? Não eram afinal também banais aqueles artigos muito importantes que já toda a gente esqueceu? E não é a nossa vida, afinal, uma sucessão de interessantes banalidades?