sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O crítico


O crítico passou-se depois de arrasar um livro que não tinha lido.
Era uma figura com quem ninguém falava. Entrava na redacção e sentava-se na mesa do fundo, escrevendo os textos com uma caneta de tinta permanente que desenhava uma letra elaborada que depois os tipógrafos tinham dificuldade em decifrar. Todas as semanas aparecia no mesmo dia, a cabeleira comprida sob o chapéu fúnebre, a bengala com topo de marfim, os dedos da mão direita sempre azuis da tinta. Entrava com um gesto vago de cumprimento e saía mudo.
Um dia, notaram que parecia ter enlouquecido de algum mal súbito. Foi depois de arrasar um livro que não tinha lido. Veio na semana seguinte a saber-se destes factos, entrou mudo na redacção e sentou-se a escrever jogos de palavras com um montinho de frases que pouco mudavam. Escrevera numa das folhas o seguinte: “Aquilo que envelhece devagar quase magoa e na extensa morte que aparece sangram as feridas que não param até que enlouquece a profunda noite e um vento parvo insiste e repisa a adormecida parte. E arrefece. Ao reencontrar a certeza grito de medo e transparece em mim uma solidão cruel que é apenas uma ausência, alma que se percebe exangue e sem vida, sem dor alguma, na doce amargura perene de sumaúma que no fim sobra. E quem pede não recebe, é a fugaz sombra do mundo”.

E produziu umas vinte folhas com variações, todas muito bizarras, por exemplo esta: “O que fere no envelhecimento lento é uma morte que aparece em feridas que sangram em grande, até pararem na louca e profunda noite e na estúpida forma de um vento que dorme e se repisa. Está frio. Para encontrar um choro de medo, transparece a minha penosa solidão, que é meramente a ausência da alma sem fôlego e sem vida, ou dor e amargura. E paira uma perene e doce soma de finais. E quem não receber o que pede, será no mundo uma sombra”.
O crítico ia escrevendo estes exercícios, em formas monótonas. Passou o dia naquilo, meio alucinado, e ninguém se atreveu a criticá-lo por ter arrasado um livro que ainda nem sequer tinha sido escrito. Explicaria porventura que não gostava do autor fulano e foi num momento de impasse que um redactor mais afoito gritou no meio da sala: “Mas isto é um escândalo”.

Houve uma pausa solene nas tarefas da redacção. Todos os redactores, compenetrados numa espécie de reflexão íntima, olhavam para o crítico literário, à espera do que iria acontecer. E instalou-se aquele amargo silêncio de que falam os escritores.
Até que o crítico se debruçou de novo sobre a folha em branco e a caneta de tinta permanente recomeçou a dançar sobre o papel, com um ranger muito irritante que se arrastava como se alguém gemesse. E as letras diziam: “É um escândalo o que quase magoa na lentidão, nas feridas que aparecem ao sangrar...”
Foi só nesse momento que perceberam. O crítico passara-se muito antes de escrever a crítica sobre um livro de um autor que nem sequer existia. Ainda por cima, uma crítica negativa, a arrasar completamente a obra.
E, confortados com estes pensamentos mais sólidos, regressaram ao trabalho, inclinados sobre as suas vidas pequeninas.

domingo, 21 de novembro de 2010

Não conhecemos suficientemente bem as pessoas de quem gostamos

Um telefonema. Pensa-se primeiro que não passa de cruel engano. Que ele vai aparecer com aquele seu sorriso írónico, a dizer que era exagero, que aparecerá aqui um texto brincalhão a desmentir a notícia. Mas é verdade. Morreu o Pedro Beça Múrias.

O Pedro era daqueles jornalistas que falam pouco e ouvem muito. E que ouvem os outros com genuíno interesse, porque encontram sempre o melhor que cada um tem.
Não conheci os seus defeitos e, para mim, fica a memória de um homem bom. Não era alguém que fingisse a generosidade, mas que a exercia como quem ouve uma boa história.
Noutro país qualquer, o Pedro teria sido um daqueles jornalistas imprescindíveis. Aqui, o seu talento foi desperdiçado, talvez por causa do espírito independente, que os poderosos em portugal consideram ser defeito, mas que me parece ser uma qualidade.

Estas palavras não chegam. O Pedro era mais complexo: tinha inteligência, irreverência, bom senso, memória. E era um homem bom, já o disse. Não encontro melhor maneira de explicar.
Era um optimista e a prova de que a humanidade tende para ser melhor. 
Se o céu existe, deve ter uma salinha de espera. Não será muito grande, porque ali os serviços funcionam bem. Mas imagino o Pedro naquela sala a conversar, ou antes, a ouvir com tempo as outras almas boas e o que elas têm para contar das suas vidas.

Não conhecemos suficientemente bem as pessoas de quem gostamos. Mas o Pedro era diferente, ele parecia ter sempre tempo para os outros. E agora, certamente, tem a eternidade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

En Garde

Dois esgrimistas, um inclinado, sem fôlego, a perder o pé perante o ataque.
Segurei a gravura amarelada, escolhida de uma pilha de velharias, e deixei que a luz do sol prateado a banhasse com a sua cor de chumbo.
"Bela imagem. Vale bem o seu dinheiro", disse um homem a meu lado. Ele aproximara-se furtivamente, talvez surpreendido com o que eu encontrara no monte de inutilidades. Depois de elogiar a gravura, como que envergonhado, afastou-se e percebi o seu andar elegante, mais visível à distância. Como explicar? Um andar felino, que se mantinha ágil, apesar dos anos. Teria uns 60, mas caminhava de forma subtil e leve, como se o tempo não tivesse molestado a graciosidade do gesto. Perguntei ao vendedor se era algum vizinho, mas o feirante encolheu os ombros, num gesto desinteressado: "Não tenho ideia", disse, para sublinhar que o desconhecido não passava de um vagabundo indiferente e perdido.

Essa foi de facto a única vez que me cruzei com Léon Giraud, durante breves segundos, num encontro fortuito que o acaso determinara daquela forma. O mesmo acaso que me colocara nas mãos a gravura de dois esgrimistas a cruzarem as espadas. A mesma gravura que, trinta anos antes, aquele velho precoce observara durante dez minutos, sentado numa cama de hotel, antes de se decidir a abrir a janela e a saltar para outro mundo. Claro que ele não se lembrava da gravura (o tempo transforma em borrões todos os pormenores das existências humanas que se cruzam no tempo), apenas lhe parecera vagamente familiar e estranhamente bela. Mas eu sei o que sucedeu, por conhecer da casualidade o que a memória prefere apagar. Privilégio de fantasma. 

Aconteceu desta forma: pela janela do quarto entravam reflexos de luzes quentes. Paris não dormia, numa insónia semelhante à que pesava sobre a consciência em transformação de Léon Giraud. O plano de fugir de si próprio surgira sem um pensamento claro ou num único momento que pudesse ser dissecado nas suas complexidades. Fora antes uma amálgama de ideias soltas, encadeadas em detalhes insignificantes, até formarem a estrutura mais sólida das decisões graves que as pessoas por vezes tomam.
Foi ao olhar a gravura de dois homens que trocavam as espadas que se lembrou de fugir. Uma noção complexa que foi assumindo contornos simples. A gravura estava na parede do quarto de hotel, numa moldura de madeira, e o papel tinha sobre si um vidro que os reflexos da luminosidade da rua espelhavam em cintilações moventes e parecia que os dois homens se agitavam em gestos grotescos, um deles talvez à beira de ser vencido. Teve uma súbita pena pelo vencido, mas nunca se tratou de noção nítida, mas antes de uma desistência.
Giraud pensou que apenas a sorte, um acaso do destino, o escolhera para a equipa de espada, só porque o campeão, Manerville, se magoara nos treinos, e isso devia ser um sinal de alguma coisa importante, um facto que desencadeava consequências enormes, mudando todo o sentido da sequência, como acontece nos erros irreparáveis e nos golpes consecutivos que depois levam à perda de fôlego, ao cerco e à morte. E tudo se precipitava num turbilhão de pensamentos a esgrimir no ar: jamais poderia voltar ao conforto da sua casa, perderia para sempre o contacto com o mundo conhecido, com o aperto sufocante e a opressão dos conformistas, a desistência dos fracos, a tirania dos resignados.
Daquele quarto de hotel não poderia sair pela porta da frente. Por isso, sairia pela janela. Planeara um arriscado número de trapézio através dos telhados, depois poderia descer suavemente até ao chão. Levou alguma roupa num pequeno saco. Deixou as espadas para trás. Olhou para a gravura na parede uma última vez (haveria outra ocasião, mas ele ainda não sabia). Léon Giraud sentiu que era ele mesmo quem estava na imagem, a travar a derradeira luta pelo equilíbrio, a escolher o golpe incerto na exactidão milimétrica do combate. En garde. Mas sem mais tempo para pensar.

Nos campeonatos nacionais de esgrima, a equipa de Nimes não tinha hipótese. E a fuga de Léon Giraud desmoralizou os restantes atletas, que chegaram a admitir um rapto. Era incompreensível. Giraud fora o pior esgrimista do grupo, mas também o único que mereceu uma notícia breve em Le Figaro sobre o estranho desaparecimento sem pistas. Ironias. Os seus amigos nunca souberam o que lhe acontecera. Simplesmente, dissipou-se do mundo conhecido.

Cruzou-se comigo trinta anos depois, num marché aux puce, já despido de identidade. Vestia um velho casaco demasiado espesso para o frio que fazia e envelhecera, como acontece ao comum dos mortais e à gente que não tem destino. Falava com a pronúncia rude dos vagabundos. Por um segundo, fascinara-se pela gravura que alguém segurara no ar, reconhecendo nela certa circunstância ligada à existência, mas como se a imagem pertencesse a algo exterior e alheio, não ao seu próprio vago passado, mas a uma outra realidade imaterial.

Fantasma

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O fim

Começo pelo fim.
Começo ciente de não saber dizer, do fim, onde começa ou onde acaba. Começo confusa como em criança, diante do primeiro livro sem bonecos, ao ouvir "Agora nada de ires ver o fim.."
O fim? Qual fim? Salto a capa do livro, cheio de personagens que ignoro, jogadas em enredos que sobrevoo a jacto directamente das palavras do adulto para uma busca desenfreada: Ah não é para ler o fim?
Procuro-o numa curiosidade urgente, com critério e coragem, atrás do sofá pequeno disposto de esguelha junto à janela da sala de visitas. Procuro-o nessa tarde nesse livro sem capa, título ou princípio, como depois noutros livros com e sem bonecos. Procuro-o noutras tardes, noutras idades e cidades, nos meus cantos preferidos das casas onde vivi e, enquanto vivi longe, em cantos alheios onde não me perdia nem me escondia. Procurei-o, por acaso e sem autorização, nos livros de amigos, de namorados e conhecidos. Nas histórias dentro da minha história, o tempo levou-me à procura já não dos fins, mas de exemplos que desmontassem a certeza daquele princípio de leituras, num livro ainda folheado confusamente aos últimos pingos de luz do dia:
"Agora nada de ires ver o fim" é o cuidado adulto mais infantil. Ninguém corre o risco de anular o magnetismo da leitura galgando sofregamente direito ao fim. Não saberíamos onde poisar essa pegada de gigante enjoado do presente. Não há pontaria capaz de acertar no fim à distância. Não estão inventados gps para os desfechos.
Não podemos saber se o fim está na última página ou na última frase. Ou nas duas últimas frases. Ou a partir do início do último capítulo. Talvez na primeira linha da primeira página, ou algures a meio do volume, se o autor aposta em anacronias? Não sabemos, às vezes o autor sabe, eu não sei.
Eu sei que o pano cai quando passo a mão pela contracapa. Sei que a ficha técnica já desliza lentamente quando reclino a cabeça para trás e desfoco o olhar. Mas para ouvir o último suspiro da história eu não tenho hipótese de usar uma tele. Eu sou o batedor. Tenho de aceitar a lentidão da imagem revelando-se na penumbra de laboratório fotográfico, ou sujeitar-me ao embate de um fim salteador num troço do caminho quando menos espero.
De uma forma ou de outra, estamos seguros. Não há perigo de frisarmos o sagrado fio da história com a brasa da impaciência.
Num livro (e na vida, tão nossa como tão pouco nossa, o que nada interessa aqui), nunca sabemos onde começa, por isso não sabemos onde está, o fim. A única certeza é a surpresa.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A vida em capítulos


Quando era criança, inventava histórias divididas em capítulos e cada um deles desenhava-se na sua cabeça com todos os pormenores: os aventureiros iriam enfrentar selvas densas, infestadas de perigos; ou visualizava a cor feroz dos pendões antes da batalha e sentia o nervoso austero, confiante, do herói cavaleiro entre companheiros de justiça; ou acompanhava o explorador planetário no sinistro laboratório onde o maléfico cientista escondera raios mortais; ou observava o oceano indolente e tropical em que navegavam piratas famosos; ou o mar sufocante de areia, o detective genial, a cidade quieta e o deserto de gelo e o barco perdido e a tempestade tremenda.
Depois, compilava a sequência de capítulos, um, dois, três, e por aí fora, até vinte ou ainda até vinte e um, que já era demasiado longo, e decidia que em certo ponto haveria uma bulha e noutro um beijo à namorada (era uma menina de caracóis por quem se apaixonara na escola) e após os perigos quase fatais, o herói iria recompor-se e desvendar o mistério antes do desfecho.
Era tudo pensado ao pormenor, na imaginação. E corria pela casa a mostrar aos irmãos: olha o livro que escrevi, e logo se riam dele. Só tem capítulos. Falta escrever tudo o resto, diziam.
Na sua cabeça era como se tivesse preenchido cada linha, usado todas as palavras necessárias, mas riam-se dele: só tem a lista de capítulos, mais nada.

E foi crescendo. Para tudo fazia uma lista de capítulos. Na escola. Um curso, a universidade que nunca frequentou, depois o doutoramento brilhante. Na tropa. Começaria como soldado e acabaria oficial, após vencer o inimigo em batalha que nunca houve. No casamento. Casamos e arranjamos uma casa e depois um filho, o primeiro, porque depois teremos o segundo e então o terceiro e depois vão para a escola e por aí fora. Mas não teve filhos.
E fez o mesmo em cada emprego. No primeiro capítulo, seria promovido a escriturário e no segundo a quadro intermédio e depois chegava a chefe de secção e a chefe de divisão, até o convidarem para director, por verem como atravessara tão bem os patamares, obstáculos desfeitos como se fossem de papel.
E fazia a lista quando ia de férias e quando se envolveu com a amante e a mulher lhe pediu o divórcio; e preparou novos capítulos, todos muito bem pensados, para o livro completo que lhe ocorria. E a certo ponto, a personagem soltava uma espécie de raiva do coração oprimido, mas nunca escreveu uma linha.

Mudou de empregos e de cada vez fazia listas de capítulos para antecipar os acontecimentos. Conheceu outras mulheres, mas nenhum dos romances correu como ele pressentira no guião inicial. Grandes amores transformavam-se em afastamento progressivo, desilusão e rotina. 
E os episódios passavam, em doses regulares e sempre iguais de tempo.
Um dia, sozinho numa esplanada da praia, olhava o mar agitado e as ondas que esmurravam os rochedos, lembrou-se de olhar para trás e compôs numa folha de papel a lista de capítulos da sua vida.
Ainda só tinha quinze capítulos, cada um bem definido. Mais uns cinco ou seis e estaria tudo escrito, pensou.       

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O fugitivo


O livro fugira três dias antes. Estava num saco branco, encostado ao aquecedor do quarto, portanto, sem pertencer a uma colunata específica de livros abandonados à sua sorte. Veio a casa um senhor arranjar a janela e teve de tirar o aquecedor do sítio e arrumou o livro algures. Foi então que percebi que ele tinha fugido. Capa creme, sem ilustração, só o título e o autor, portanto, muito discreto. Procurei-o nas pilhas acumuladas, trinta e nove, pelas minha contas. Isso exige tirar os livros de cima, formando novas pilhas temporárias e procurar em baixo, remover tudo e reconstruir depois, baralhando a ordem. Pareceu-me escusado procurar nas estantes, porque estão sempre silenciosas e graves, com os livros escondidos nas suas cavernas quietas, em filas preguiçosas que só os bichos exploram.

Tive esperança de encontrar o livro fugitivo numa colunata de livros que a minha gata aprecia. A pilha número doze. Pareceu-me que o animal estava a dormir a maior altura naquele dia, o que quereria dizer que um livro clandestino se infiltrara.
E, de facto, encontrei o malandro entre um nabokov e um velho romance de graham greene. Até lhe bati com o dedo, para castigo de uma fuga fortuita e sobretudo impensada. O sacaninha respondeu com o que me pareceu ser um sorriso escarninho de letras vermelhas em fundo creme, lábios grossos e pele de mulher morena.

Ainda estou para saber como isso aconteceu, mas o livro fugiu de novo. Foi ontem e não tenho explicação. Lembro-me de o ter colocado na pilha da minha mesinha de cabeceira.
A empregada andou por ali em limpezas e até lhe telefonei, para perguntar se sabia o que tinha acontecido ao livro que estava na minha mesinha de cabeceira, e ela explicou que limpara o pó e arrumara os livros e pusera-os no mesmo sítio, mas talvez tenha baralhado a pilha número sete com a oito, enfim, uma deve estar agora mais alta e a outra mais baixa.

Terei de vasculhar de novo a biblioteca. e este é o quinto livro que me escapa este mês, e um deles por duas vezes. Na primeira hora de buscas, encontrei um do camilo que me fugira da vista no ano passado. O malandro ainda se estava a rir da minha incompetência de bibliófilo e coloquei-o com irritação na minha mesinha de cabeceira, e até telefonei à empregada a proibi-la de limpar ali o pó. Entretanto, a minha gata passou a dormir na pilha caótica número vinte e sete, que está perto da janela. Acho que ficou mais alta, mas não encontro uma explicação. Para saber se o livro se escondeu ali, terei de tirar a gata e o animal está a dormir como um anjinho, com um ronronar que quase me parece um riso de troça.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O atrevimento


Ler esta crónica de Manuel Vicent no suplemento Babélia do El Pais "Sólo hay que atreverse" fez-me reviver um sonho antigo de ser pintor, mas confesso que nunca tive a coragem de fazer o que fez Paul Gauguin, que abandonou a vida burguesa e a própria família para perseguir sem contemplações a sua visão artística.
Cheguei a estudar pintura, na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde aprendi algumas técnicas que me permitiriam sem dúvida pintar quadros com alguma exactidão (já quanto à beleza, não sei).
Julgo que a minha capacidade seria, no máximo, a da cópia, mas existe algo na pintura, talvez seja o cheiro das tintas ou o triunfo da cor sobre o branco visto a uma distância mínima, essa fabricação de películas que vistas de perto são manchas e vistas de longe começam a formar padrões, talvez seja isto que me fascina, o observar em cada pincelada o triunfo da ordem sobre o caos.

É isto que me fascina também na escrita, a arquitectura que emerge das palavras; mas, não sei porquê, não tenho a mesma sensação de prazer, talvez porque não seja possível ver num romance, novela ou conto tudo num só relance.

Todos os artistas sonham com a fama, impulsionados pela vaidade de saberem que há poucos que conseguem fazer aquilo que eles fazem. No caso de Gauguin havia mesmo muito poucos, mas o pintor amador, que nunca estudara em escolas convencionais, não poderia sabê-lo. Talvez tivesse essa suspeita, a intuição, mas não podia saber. Morreu na miséria, carcomido pela doença, certamente cheio de dúvidas. E se falhei a minha vida? E se a mandei fora, para nada?

Perseguir obsessões pode ser mandar uma vida fora. Mas, então, surge este título de Vicent "só é preciso atrever-se". É assim que vemos esta loucura, como sendo apenas coragem?
Li algures, uma vez (infelizmente, tenho procurado a fonte, sem a encontrar) que em Paris, em 1900, havia dez mil pintores. Acho o número gigantesco, improvável, mas sei que li este valor numa fonte que na altura considerei credível, a ponto de memorizar a informação. É muito pintor para uma cidade que teria dois milhões de habitantes, mas pode ser que estivessem ali contabilizadas as numerosas academias, os pintores que chegavam de todo o mundo para aprender na meca da pintura. Também os pintores de paredes, quem sabe? Dez mil, muitos deles com os mesmos sonhos de Gauguin, embora sem o seu talento.
Gauguin pintou cerca de 300 quadros e essa seria a produção de uma carreira relativamente curta. No caso do pintor francês, durou vinte anos, com altos e baixos. Dez mil vezes 300 dá a quantidade fabulosa de 3 milhões de quadros só para uma geração de pintores da passagem do século e do período pós-impressionista, e só em Paris. Se acharmos extraordinário e pouco credível o ponto de partida, podemos dividir por três. Ainda dá um milhão de quadros, todos bem feitos. E quantas obras conhecemos desta época? Cem, pouco mais do que isso? Uma em cada dez mil das que foram produzidas?

Dava para encher mil museus só com uma geração de artistas, mas sabemos que não será assim. É fácil perceber que a arte tem mais a ver com o fracasso do que com outra coisa qualquer. É uma espécie de loucura obsessiva que toma conta de vidas condenadas ao desperdício. E só um em cada dez mil triunfa, milagre que se deve ao atrevimento ou à loucura.
Por mim, gostava de pintar para esse enorme museu, o maior que existe, o museu das vidas desperdiçadas, das obras que nunca ninguém verá, mas que deram tanto prazer a quem as criou, camada a camada, num combate da cor sobre o branco e deste contra a cor. E poder dizer no fim da vida que, embora perdendo a luta contra o esquecimento, quase fui feliz a imaginar a luz. Mas não me atrevo. O medo é mais forte.