segunda-feira, 30 de maio de 2011

Ligações Perigosas

Calças largas



São a grande reivenção deste Verão.Chamam-se 'Flares'.
Não se inspiram nos hippies de Woodstock, não se conjugam com flores no cabelo nem erva nas mãos que os tempos são de conservadorismo. Não são demasiado largas mas de corte recto, elegante, criativo e de inspiração masculina, como a inesquecível Annie Hall de Woody Allen (1977).



e...

Onze Tipos de Solidão
Richard Yates (Quetzal)



A partir da vida de empregados de escritório de Nova Iorque, de um taxista que ambiciona a imortalidade, de jovens romancistas frustrados, de professores desprezados pelos alunos, de homens dos subúrbios e das suas mulheres deprimidas e negligenciadas, de aperitivos e martinis e bares de jazz sem glamour nenhum, Richard Yates constrói um mosaico assombroso dos anos 1950, período em que o sonho americano começava finalmente a concretizar-se e, em simultâneo, a revelar um grande vazio. Publicado a seguir ao romance que o consagrou – Revolutionary Road –, o conjunto de onze histórias – ilustrando cada uma delas uma vertente desses Onze Tipos de Solidão – cria, para lá do retrato, uma forte atmosfera de alienação e desajustamento social.

Felicidade


Como o amor, ou a transcendência, a felicidade escapa a definições e, tantas vezes, escapa-se-nos ela própria também. Íntima e subjectiva, fugidia na essência, ela é algo mais do que bem-estar e tranquilidade, com todas as suas químicas cerebrais, e não tem apenas uma dimensão pessoal: aquela de que todos podemos falar, com palavras mais ou menos vagas, mais ou menos incertas. A felicidade também tem uma dimensão colectiva e política, e olhar esta realidade complexa de um ângulo diferente pode dar pistas para uma nova reflexão sobre ela, que inclua todas as suas dimensões – individual e subjectiva, colectiva e política. Os estudos da psicologia positiva têm-no feito nos últimos dez anos, com resultados que nos provocam e interpelam. Foi isso que ouvi há dias numa excelente conferência da psicóloga e professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, Helena Águeda Marujo, em Sintra. Porque contêm sementes que podem ajudar a pensar – e a concretizar, quem sabe – sociedades mais harmoniosas e solidárias, com cidadãos mais conscientes e interventivos, mais críticos dos poderes discricionários e também menos egoístas, deixo aqui algumas das ideias que ali se debateram.
A conferência não nasceu do nada. Foi uma iniciativa do Grupo 19 de Sintra, da Amnistia Internacional Portugal (AI) – comemoram-se este ano os 50 anos da criação da AI – e o tema, “Os Direitos Humanos como pressuposto da felicidade”, pretendia justamente algo novo, ao propôr esta análise conjunta.
Para a Amnistia, que baseia a sua filosofia de actuação na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a garantia e cumprimento integral dos direitos ali consagrados são pressuposto obrigatório da felicidade. Num futuro não muito distante, talvez venha a ser necessário incluir a felicidade na Declaração, enquanto direito de cada um nós. Não se riam, não é uma ideia absurda. Há juristas que o defendem há anos.
E o que diz a psicologia sobre tudo isto? Até muito recentemente, quase nada, porque a felicidade não era estudada pela ciência. Mas isso alterou-se na última década, com a psicologia positiva, que conseguiu operacionalizar o conceito, de forma a poder estudá-la de forma séria e objectiva. E com isso a psicologia descobriu uma série de coisas interessantes, curiosas, e até, em alguns casos paradoxais em relação à vivência da felicidade. Por exemplo – e isto está desde logo relacionado com direitos humanos – o sentimento de bem-estar (e a auto-avaliação da experiência da felicidade) é proporcional ao sentimento de autonomia e de auto-controlo sobre a própria vida, o que envolve uma cascata de direitos consagrados na Declaração: liberdade de expressão, de associação e de mobilidade, direito ao trabalho e por aí fora. Numa realidade de sinal contrário, o desemprego revela-se uma das experiências mais devastadoras a nível psicológico, comparável, por exemplo, à da viuvez, como explicou a conferencista. Algo que dá que pensar, numa altura os níveis de desemprego acabam de atingir em Portugal a marca histórica de 11,1%, com mais de 600 mil desempregados.
Ao nível colectivo e político, há muitas reflexões a fazer sobre o tema da felicidade. Nos dados dos inquéritos que avaliam o nível de felicidade dos povos, Portugal surge como o país da OCDE (que inclui 30) com o mais alto índice de desconfiança dos cidadãos pelos seus parceiros. Porquê? Não se sabe exactamente, mas a vida colectiva atribulada, os problemas sociais e políticos que parecem não ter solução à vista (o desemprego outra vez?) e a desigualdade social crescente que atinge a sociedade portuguesa estão ccom certeza relacionados com este dado particular revelado pelos inquéritos dos psicólogos.
Em relação aos países, a auto-avaliação do grau de felicidade é, por outro lado, bastante elevada na América Latina, tendo em conta os altos índices de pobreza ou de violência que assolam essas sociedades. Um paradoxo, para já, sem grandes explicações.
Pelo contrário, nas sociedades da abundância e do desperdício, onde o consumo se tornou uma espécie de religião, os níveis de felicidade não cresceram proporcionalmente ao aumento de conforto e dos bens materiais. Um certo vazio espiritual e uma incapacidade de encontrar sentido para vida, reforçados por muitas solidões individuais, podem ajudar a compreender esta outra realidade. Mas como explicou Helena Marujo, estes estudos estão a começar. Para abordar algumas destas questões na sua dimensão colectiva e política, a ciência que estuda a felicidade – a psicologia positiva – terá ainda de forjar novos instrumentos de análise. E organizações como a AI, enraizadas na sociedade civil e detentoras de uma filosofia de acção e de um corpo de teoria política (em sentido lato) sofisticado, poderão até dar aí uma ajuda. Talvez esta conferência tenha sido um primeiro passo nesse sentido.

Imagem: Sara Sousa

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Descobrir Carlos de Oliveira



Naquele Verão fomos muitas vezes para junto do mar. Levámos poemas que líamos em voz alta até nos perdermos um no outro.
Em Setembro partimos em direcção às praias rochosas do Sul. Ali, num daqueles instantes em que tudo ao nosso redor parecia feito de e para o silêncio, abri, pela primeira vez na vida, um livro de Carlos de Oliveira.Baixei os olhos e li:

Estalactite

I-O céu calcário
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou de pedra
hão-de-cair
daqui a alguns milénios
e acordar
as tênues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir,
filtrado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim.
II-Imaginar
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota
nas flores antecipadas.
(…)

Mas logo desisti da leitura com medo de perder o encanto daquela luz marítima.
Ou, talvez, com medo de te perder.
Como se intuísse que ela, como nós, era fátua. Que ela, como nós, duraria apenas até ao fim do Verão.Por isso fechei o livro.

Só hoje, tanto tempo depois, volto às páginas de "Trabalho Poético". Olho para aqueles amantes que um dia fomos e, agora devagar, agora sem medo leio-lhes:

MUSGO

Dir-se-á mais tarde;
por trémulos sinais de luz
no ocaso quase obscuro;
se os templos contemplando
estes currais sem gado
ruíram de pobreza.

Dir-se-á depois
por púlpitos postos em silêncio;
peso também a decompor-se
no mesmo pouco som;
se desaba o desenho
da nave antes de fermentar
a cor da sua pedra,
como fermentam leite e lã
de ovelhas mais salinas.

Dir-se-á por fim
que nenhum tempo se demora
na rosácea intacta;

e talvez
que só o musgo dá;
em seu discurso esquivo
de água e indiferença;
alguma ideia disto.

[ Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003 ]

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Admirável Mundo Novo: Liberdade




No zoo humano criado por Jonathan Franzen habitam famílias em desagregação, homens e mulheres em processos de auto-destruição, ou fragilmente presos a utopias políticas. Encontros e desencontros amorosos, tentativas de redenção destinadas a falhar. O espírito do tempo contado por Franzen é desencadeado mais pelo sofrimento que pela felicidade, opondo-se assim a algumas das principais crenças das sociedades modernas; a crença no progresso infinito e no futuro como um paraíso onde cada um pode encontrar a glória e a alegria.

Artigo publicado no Diário de Notícias Um escritor em busca do espírito do tempo - Gente - DN

Flores Amarelas

Viu-os de longe, meio-trôpegos, a descer da carrinha. “Vamos a isto”, pensou. Elegante nos sapatos de salto alto cor de cinza, saia escura e blusa azul-petróleo, Marta Luz avançou para a porta envidraçada.
Lá vinham eles, naquela lentidão de velhos. Observou o seu vagar de rebanho, alguns apoiados em bengalas, um ou outro mais curvado. Pouco importava, ia ser rápido. Davam uma volta pela exposição, tomavam uns sumos e comiam uns bolos, a televisão fazia o lançamento do projecto e toda a gente ficava a ganhar. O lar mostrava iniciativa, a câmara apoiava e o museu conquistava novos públicos. E, já agora, apareciam nas notícias.
O director do lar, um antigo clínico aposentado, de porte aristocrático, mostrara-se encantado. “Inclusivamente, temos cá uma senhora que pinta umas naturezas mortas muito coloridas, e que é muito popular entre os pensionistas. Eles vão gostar, não têm assim tantas ocasiões para dar asas à veia estética”, dissera o velho Sepúlveda. Marta julgou ouvir ali uma ponta de ironia. Ia encrespar-se, mas em vez disso, suavizou a voz. “Claro, doutor Sepúlvada, isto é feito a pensar neles”. Sorriram ambos. Entendiam-se.
Os velhotes já vinham entrando, pareciam contentes, e ela dava-lhes as boas-vindas, distribuindo-lhes uma folha com a lista dos quadros na exposição, a que tinham dado o título +Cores+Vida. Um jogo de palavras que considerara inteligente e que resumia na perfeição o essencial: juntar os contemporâneos em torno do tema singular “muita cor, muita vida”. Os velhotes iam dar uma ajuda na divulgação.
Mas eles eram mais lentos do que previra. Alguns viam mal e aproximavam muito o rosto das telas. E se um deles tombasse para cima do quadro, ou estragasse os óleos e os acrílicos com a respiração demasiado próxima? “Ou baba, que horror”, pensou.
“Por favor, não se cheguem tanto aos quadros”, disse ela, elevando um pouco a voz, mas sem deixar de sorrir. “Vêem-se melhor de uma certa distância, ora reparem”. Recuou uns passos e fez uma expressão atenta, olhando as telas.
Os velhotes seguiram-lhe o exemplo, o que gerou uma movimentação inesperada e desorganizou a visita durante alguns minutos. Só um homem alto, de melena branca pelos ombros, não se mexeu. Mantinha o rosto pregado numa das telas, e ficou assim até que um dos outros  lhe deu um berro ao ouvido.
Marta movia-se de quadro em quadro o mais depressa que podia, arrastando atrás de si o grupo, saltou mesmo dois deles, para tentar abreviar a visita, mas sem grande sucesso.
O pessoal da televisão tinha chegado entretanto e já estava  a fazer imagens. Marta deitou-lhes um olhar rápido, endireitou mais as costas e pôs-se a falar sobre vida e cores, e sobre a bela colecção de telas que tinham conseguido reunir ali “Um acontecimento plástico único, é um prazer ter-vos aqui”, disse ela, lançando sorrisos à esquerda e à direita.
Tinham chegado, finalmente, ao átrio. A um canto, esperava-os um cavalete com os sumos e os bolos e, ao convite de Marta, o grupo encaminhou-se para lá. Ela então distendeu-se um pouco. Estavam a ir bem, em breve aquilo estaria terminado.
Nesse momento, uma das pensionistas abeirou-se de Marta, carregando a custo um grande embrulho, de forma achatada, que alguém tinha acabado de lhe entregar. “Doutora Marta,”, chamou ela, “uma lembrança nossa para o museu. Obrigada pela tarde inesquecível”. Os outros tinham-se aproximado satisfeitos.
Marta corou um pouco, fez um gesto de agradecimento e desembrulhou o objecto. Com um sorriso, revelou então um quadro, desencadeando um aplauso entre os velhotes,  e agradeceu “em seu nome próprio e do museu”. Pelo canto do olho percebeu que o câmara tinha apanhado tudo. Maravilha.
“Vai expô-lo junto dos outros na galeria?” A jornalista aproximara-se de microfone na mão.
Apanhada de surpresa, Marta vacilou um momento, mas recompôs-se imediatamente. “Essa decisão cabe ao senhor comissário de exposições, certamente vamos discutir o assunto entre nós”.
Satisfeita, a rapariga rodopiou e apontou o microfone à velhota que entregara o quadro. “Qual é mensagem deste quadro para o museu?”
“Sabe, fiz isto com as cores que lá tinha. Queria pintar umas rosas iguais às que temos no jardim, mas não tinha cor-de-rosa, por isso usei um amarelo que me tinha sobrado de outras pinturas. Mensagem não pus nenhuma. Isto foi só para agradecer à senhora doutora”, respondeu a velhota, com um brilho nos olhos.
A jornalista procurou outro pensionista. O da melena, decidiu. Esse até tinha um ar de artista. “De que gostou mais na exposição? ”
O velhote sorriu-lhe. “Olhe, menina, gostei muito do sumo de laranja. Lá no lar não nos dão disto ao lanche”. A rapariga olhou para o câmara e ele percebeu. Estava feito, era tempo de ir..
A equipa saiu apressada,  os velhotes lá se foram também, no seu passo vagaroso. Marta olhou em volta, no átrio mergulhado em silêncio, achou que tinha corrido bem. Enfim, não tinha corrido mal.
“Doutora Marta, o que faço ao quadro?”. Era a voz do Mateus, o funcionário da recepção. Ela respondeu-lhe, distraída. “Ó Mateus, se o quiser, leve-o”, e encaminhou-se ligeira, para o gabinete. Ainda precisava de enviar uns emails.
Mateus observou a imagem na tela. Tinha umas rosas de uma cor estranhamente viva, um amarelo intenso, quase eléctrico, que prendia o olhar e despertava uma ânsia qualquer. Lembrou-lhe vagamente as flores de um quadro famoso, mas este tinha qualquer coisa que não sabia definir. Como se as flores tivessem desabrochado naquele momento, na primeira luz da manhã. Cuidadosamente, voltou a embrulhar o quadro. Ia levá-lo, sim. Devia ficar bem na sala.

sábado, 14 de maio de 2011

Dance …dance, otherwise we are lost: a terceira dimensão de Pina Baush



Todo o acto humano é sacrificial. Do mais fugaz olhar ao mais ínfimo gesto. Em tudo há perda e há fé. Abnegação e apoteose. Amor e morte. Todo o acto humano nasce votado ao desaparecimento. Por isso cada movimento, cada traço, escrito, ex-crito, expulso, é uma dádiva; e porque cada um encerra uma escolha, encerra também uma perda. Pina sabia-o. Quando escolheu o lamento de Dido por Eneias (na versão de Henry Purcell) para dançar Café Müller, Pina já estava a falar de renúncia. Quando dançou sobre si mesma de olhos fechados entregando-se sacrificialmente ao nosso corpo, entregando-se ao nosso olhar predador, ensinou-nos que só pelo amor se regressa do mundo dos mortos. Foi, provavelmente a sua compreensão dessa dimensão subjacente a cada acção verdadeira e determinante que a tornou tão exigente consigo mesma e com os outros, tão obcecada com o trabalho. Pina só aceitava criar a partir desse comprometimento com o abismo, fosse ele a alegria, a lua, a Primavera, o desespero, o encontro. Por isso, na sua companhia os corpos envelhecem, os rostos têm a beleza juvenil e a beleza dos dias atravessados. Por isso todos são simultaneamente crianças e velhos.
Porque ela dançava para o instante que se subtrai no exacto momento em que acontece, a sua obra capta a essência profunda do humano, das suas profundezas arcaicas às suas exaltações quotidianas. Quando o cineasta Wim Wenders levou os bailarinos da Tanztheater Wuppertal Pina Bausch para as ruas da cidade alemã de Wuppertal, terá captado esse desejo do corpo transgredir a carne e se inscrever no mundo dos outros corpos; nos corpos férreos das fábricas abandonadas, dos carris suspensos com os seus transeuntes-anjo a percorrerem estradas imaginárias de sonhos e fome. Nos jardins, dos baldios entre carros e asfalto, nas áridas e desérticas areias na orla da cidade.
E eles dançam, dançam como ela dançava… para não se perderem no mundo dos mortos, para não se perderem no desespero de Ser. A cada bailarino Pina não exigiu menos que um sacrifício idêntico ao que Dido fez por Eneias e que Eneias fez pelo reino que haveria de fundar. O sacrifício de encontrar dentro de si algo absolutamente singular. Aquilo que cada um só pode encontrar e oferecer se tiver a coragem e a generosidade para destruir as suas fundações interiores, cuja gravidade o mantém preso ao solo. Aquilo depois do qual se encontra a absoluta leveza do movimento que não é dirigido ao espectáculo, ao presente mas sim à finitude, ao vórtice, ao amor. Um movimento, como a rosa, aberto para o nada, aberto para o mundo.
Não deixa de ser significativo que todas as peças da coreógrafa revisitadas neste filme tenham subjacente a temática do sacrifício. Café Müller, Sagração da Primavera, Vollmond e Kontakthof.
Quando Wenders decidiu filmar os bailarinos de Pina em 3D foi como se tivesse procurado introduzir a dimensão incorpórea da artista, falecida em 2009. Aquela que, para lá do corpo corruptível e mortal, a faz permanecer entre nós, aquela que impele outros a criarem. Há muito que Pina Baush não é apenas aquele rosto magro, aquele corpo esquálido, aquele longo cabelo castanho, aqueles penetrantes olhos azuis. Há muito que Pina é uma presença espectral em toda a arte. Da dança ao cinema. Da poesia ao teatro. Da arquitectura à música.
Não se pode pensar ou contar a arte contemporânea sem os corpos dos seus bailarinos projectados no espaço, sem mulheres de saltos altos e vestidos e cabelos esvoaçantes caindo sobre o nada ou sobre a certeza de haver algures um braço que as acolhe e as devolve a um Eu, que a todo o instante parecem dispostos a abandonar.Por nós.
"Dancem, dancem senão estamos perdidos" são as palavras que nos deixa.
Resta-nos então...dançar.

Sonhos tortos



Chovia copiosamente quando o palhaço se deteve no início da zebra. Pouco habituado a que parassem, dava um passo de cada vez, alternando entre o branco e o negro com os seus dois enormes sapatos vermelhos abatatados, escondido pelo guarda–chuva verde gigante que mais parecia um chapéu de praia. Mas o carro fez sinal de luzes quatro vezes, enquanto fumegava dos faróis e batia o pára–brisas como um par de asas despidas. Insistiu parado que tinha tempo e continuou a acenar na direcção dos ramos de árvore reflectidos no vidro, para que o palhaço avançasse à vontade sem hesitar. Uma rapariga altíssima vestida de negro, de tez de oiro e cabelos em chamas, acercou–se da passadeira no lado oposto da rua, junto a uma carrinha branca onde um homem arredondado descarregava caixas de madeira. Pode ter sorrido, ou piscado o olho levemente, quem sabe soprou um beijo na direcção do condutor, que a seguiu com os olhos todos, a cabeça virada, o corpo erguido do assento, e o pé caiu tenso num pedal qualquer, sem ver a frente, sem sentir o balanço, a explosão do motor. Talvez guiado pela expressão grave que sobre ela se abateu, guinou o carro para a direita em último recurso, sem saber em que pedal carregou a fundo com os dois pés, enquanto o ocupante da zebra virava o chapéu verde para baixo, como se este fosse um escudo de ferro maciço. Assustado, o comerciante largou uma das caixas que carregava e fez rebolar diversas dúzias de laranjas pela estrada, em todas as direcções, como um bando de pássaros que ouve um tiro. Caprichosa, uma das peças de fruta desviou–se de uma poça demasiado funda e foi aninhar–se sorrateira debaixo do pé de apoio do homem. Incapaz de a chutar para canto, sem mãos livres para se agarrar, estatelou–se no chão molhado. Em aquaplaning e a patinar aos rodopios como uma ventoinha de tecto, o utilitário urbano metalizado de cinco portas e tecto de abrir passou por cima de ambas as pernas do palhaço, seguiu a fazer sumo de laranja aguado para finalmente se deter num candeeiro alto e grosso que piscou duas vezes e fundiu, antes de rasgar o toldo da mercearia, a caminho do comerciante inerte no alcatrão.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Hóspede

Eu estava a conversar com um jornalista (penso que era português) quando se aproximou de nós aquela personagem (chamo-lhe assim porque já não sei até que ponto faz parte da minha memória imaginada). Era um tipo moreno e afável, vestido à ocidental, de espessa barba preta. Curiosamente, muito parecido com o meu colega (eles tinham outra semelhança, ambos falavam bem inglês).
“Chamo-me Doutor Aziz”, disse o intruso, insistindo naquele doutor, como se fizesse parte do nome.
Conversámos de forma intermitente ao longo da noite. Circulávamos pela festa e, por vezes, reencontrávamo-nos e trocávamos umas palavras.

Existir aquela festa era já por si uma estranheza. Organizada por um dos homens mais ricos de Islamabad, obrigara a certa logística reunir na casa luxuosa tantos correspondentes e repórteres, todos atraídos nessa semana ao Paquistão pela iminência de um conflito no país vizinho.
“Sabe, meu caro Rick, quando for para o interior deste país e alguém lhe disser ‘É meu hóspede’ não terá mais nada a recear”. O doutor Aziz tinha um copo de sumo na mão e, ao dizer-me aquilo, ficou algum de tempo à espera, a olhar para mim.
“Se alguém lhe disser isso em Nova Iorque”, respondi, “veja se ainda tem a sua carteira”. Quis fazer humor. O doutor Aziz riu-se com educação, mas pressenti que ficara desiludido comigo.

Circulámos mais um pouco. Meia hora depois encontrei-o a conversar com colegas de outros jornais. Um deles dissera que os fundamentalistas iam tomar conta do Paquistão (julgo que foi provocação, para motivar uma resposta, mas era um sítio bizarro para fazer tal afirmação). E o doutor Aziz, com tranquilidade, lá explicou que não era assim, que isso não ia acontecer:
“Julgam que somos monstros?”, perguntou ele, no meio da discussão, mas sem perder a sorridente paciência.
E, quando nos despedimos, segurou-me longo tempo a mão e disse:
“Seja bem-vindo no meu país. Você, Rick, é meu hóspede”.

Esqueci a simpática despedida. Esqueci a festa, que não era mais do que uma agradável distracção no meu trabalho.
Três dias depois, o jornal mandou-me fazer uma reportagem sobre uma manifestação anti-ocidental. Nas ruas estreitas desfilavam milhares de populares e aquilo durou horas, com berraria e protestos. A princípio, a confusão não me pareceu mais intensa do que ver compatriotas meus a saírem de um jogo de basebol. Mas, às tantas, quando se repetiam palavras de ordem mais acesas, porque estava um calor terrível, houve como que um tumulto, a multidão perdera as estribeiras, ganhara autonomia, força própria, como um rio fora das margens. Corria-se em múltiplas direcções e as massas humanas chocavam entre si. Comecei a ver caras contorcidas de raiva e a ouvir gritos incendiados. Por momentos, senti que estava em perigo. 

Até que um homem me puxou por uma porta, salvando-me da turba. Foi tudo confuso e rápido. Saí da luz para a penumbra. Ele vestia a longa shawaz branca, como todos os outros, colete elegante. Tinha barba negra, espessa e, quando o observei melhor, reconheci o doutor Aziz.
“Que está aqui a fazer, Aziz?” perguntei, sem esconder a minha surpresa.
“Não me chamo Aziz”, disse o desconhecido.
Observei-o de mais perto e cada vez mais me parecia o homem que eu conhecera na festa:
“Mas é você, certamente...”
“Claro que sou eu”, riu-se o desconhecido. “Mas chamo-me Daoud”.
E, no entanto, era igual ao outro. Quando a manifestação acalmou, despedimo-nos: “Você é meu hóspede”, disse ele. E não o vi mais.

Nem sequer posso afirmar que isto seja uma história. A tarefa de um repórter é a de dar sentido ao mundo que observa. Mas se o mundo ganha sentido e a história direcção, então a minha tarefa deveria ser a de encontrar aqui uma determinada ordem. Embora os tenha visto, nem sei se Aziz e Daoud existiram mesmo ou se tiveram existência separada, pois compreendo agora que a vida não passa de um vasto conjunto de factos cuja essência e verdade nos escapam a cada momento.  
 
(Este conto inspirado em coisas vividas foi escrito e publicado num blogue antigo, Prazeres Minúsculos)