segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Das crónicas de um misantropo (2)

A terra do esquecimento
Por muito que me esforçasse, nunca fazia bem as tarefas. Um dia, numa aula de ginástica, usei a camisola interior debaixo da camisola de ginástica e o professor obrigou-me a mudar de roupa em frente aos outros miúdos. Eu disse que tinha frio e chorei, mas ele não ligou: a camisola interior era contra as regras e tive de me despir em frente aos outros.
E como eu odiava os saltos de cavalo. Não conseguia dobrar as pernas e no impulso do salto chocava com os joelhos e estatelava-me do outro lado. E o professor de ginástica praguejava, a tentar que eu não partisse a espinha do outro lado e obrigava-me a repetir o salto. E os outros miúdos riam-se de mim, porque eu era o gordo. Para mim, era tudo mais alto e mais difícil, pois o corpo nunca me obedecia. E achavam que era a falta de vontade, a minha preguiça, mas juro que por minha vontade queria voar por cima daqueles obstáculos. E caía, como um pássaro ferido nas asas. 
E nunca me deixaram jogar à bola, nem sequer a guarda-redes.

Chamavam-me nomes e davam-me pontapés, e um dia roubaram-me a carteira de cromos que eu tinha comprado numa papelaria muito pequena que havia junto à escola e onde havia revistas e jornais e, confesso, já não me lembro bem se eram cromos ou selos, mas foi no choro dessa tarde que decidi deixar de ser coleccionador de coisas do passado, ao contrário do que fazem as pessoas normais.
A partir daí, não fiquei com mais nenhuma recordação. Não existe nenhum objecto que me apeteça guardar, nem uma fotografia, nem nada. Nenhuma memória, nenhuma pessoa.
Se me esquecer de tudo o que me aconteceu, talvez deixe de ser aquele em que todos reparam. O mais ridículo, o que faz toda a gente rir.

Os rapazes que conheci na escola cresceram e ficaram grandes. São adultos e têm recordações da infância. Mas eu não cresci, de alguma forma não cresci. Sei que se não tiver recordações, então não viverei no presente, mas poderei habitar no passado, onde já ninguém ficou. Por isso, sou o único habitante da terra do esquecimento, esse lugar infinito e solitário onde me sinto livre. E tenho toda a vida à minha frente.

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