domingo, 26 de dezembro de 2010

As múltiplas camadas


A escrita de jornal faz lembrar a música ligeira que passa na rádio. A informação é simples como uma melodia, faz parte do quotidiano, mas ninguém lhe presta verdadeira atenção. Ouve-se no carro, no meio da fila de trânsito, ou distraidamente em casa. Tem consumo rápido e absorve-se da mesma forma que o alimento básico. E a uma canção segue-se outra parecida, criando-se a rotina e o hábito.
Por vezes, quando ouvimos uma música particularmente feliz, queremos saber quem a cantou. Mas isso é raro. Geralmente, este é um mundo quase anónimo, que se esgota em pouco tempo. Mas há excepções e é possível que uma canção popular resista décadas.

A escrita de blogue também é efémera. Faz lembrar aquilo que ouvimos num clube de jazz. A atmosfera é densa, do fumo, das sombras, das conversas murmuradas; no palco, os músicos tentam divertir-se com improvisações e peças mais meditadas, onde investiram uma dose de criatividade. Mas o público está meio desatento. Por vezes, fixa a atenção num ponto apenas agradável ou deixa-se embalar num curto sonho. As pessoas que vão ao clube de jazz querem ver virtuosismo, sem compreenderem que este domínio da técnica faz parte do fogo-de-artifício e, por definição, consiste num género de espectáculo sobretudo vazio de conteúdo, embora vistoso.
Gosto de clubes de jazz, embora não entenda muito bem as pessoas que não sabem apreciar o ambiente e não respeitam os músicos, a ponto de fazerem barulho, como se estivessem na pista de dança para se mostrarem.

A escrita literária é exigente. Lembra um quarteto de cordas. Há espaço para interpretação, até para a pequena liberdade fiel à época, mas tudo se baseia num trabalho silencioso e a prazo que visa a perfeição inalcançável entre várias vozes que têm a sua própria personalidade. Há modelos de base, anos de estudo, exames difíceis, formas a respeitar, tradição a conhecer. Exige cultura sólida e tempo de treino.
A literatura é complexa e o público tem dificuldade em distinguir as boas interpretações. Por vezes, há um nome que os media repetiram, recomendado por especialistas. E aquele estilo torna-se na bitola que se exige depois a todos os outros quartetos, o modelo dos clássicos.
E o que se pretende? A precisão milimétrica, mas sem perder o carácter. Não existe arte sem espontaneidade. Mais importante ainda será a sinceridade do intérprete. Quanto mais exposto e vulnerável, maior a vibração, a intensidade e a força.
À medida que procuramos a essência humana nas camadas sucessivas de escrita que vamos escavando, o que encontramos é fragmentado e menos claro, mas também mais profundo. É o que fica do nosso passado, a verdade íntima que não poderíamos confessar de outra forma. Porventura as cinzas daquilo que arde no nosso espírito.   

2 comentários: