Quando era criança, inventava histórias divididas em capítulos e cada um deles desenhava-se na sua cabeça com todos os pormenores: os aventureiros iriam enfrentar selvas densas, infestadas de perigos; ou visualizava a cor feroz dos pendões antes da batalha e sentia o nervoso austero, confiante, do herói cavaleiro entre companheiros de justiça; ou acompanhava o explorador planetário no sinistro laboratório onde o maléfico cientista escondera raios mortais; ou observava o oceano indolente e tropical em que navegavam piratas famosos; ou o mar sufocante de areia, o detective genial, a cidade quieta e o deserto de gelo e o barco perdido e a tempestade tremenda.
Depois, compilava a sequência de capítulos, um, dois, três, e por aí fora, até vinte ou ainda até vinte e um, que já era demasiado longo, e decidia que em certo ponto haveria uma bulha e noutro um beijo à namorada (era uma menina de caracóis por quem se apaixonara na escola) e após os perigos quase fatais, o herói iria recompor-se e desvendar o mistério antes do desfecho.
Era tudo pensado ao pormenor, na imaginação. E corria pela casa a mostrar aos irmãos: olha o livro que escrevi, e logo se riam dele. Só tem capítulos. Falta escrever tudo o resto, diziam.
Na sua cabeça era como se tivesse preenchido cada linha, usado todas as palavras necessárias, mas riam-se dele: só tem a lista de capítulos, mais nada.
E foi crescendo. Para tudo fazia uma lista de capítulos. Na escola. Um curso, a universidade que nunca frequentou, depois o doutoramento brilhante. Na tropa. Começaria como soldado e acabaria oficial, após vencer o inimigo em batalha que nunca houve. No casamento. Casamos e arranjamos uma casa e depois um filho, o primeiro, porque depois teremos o segundo e então o terceiro e depois vão para a escola e por aí fora. Mas não teve filhos.
E fez o mesmo em cada emprego. No primeiro capítulo, seria promovido a escriturário e no segundo a quadro intermédio e depois chegava a chefe de secção e a chefe de divisão, até o convidarem para director, por verem como atravessara tão bem os patamares, obstáculos desfeitos como se fossem de papel.
E fazia a lista quando ia de férias e quando se envolveu com a amante e a mulher lhe pediu o divórcio; e preparou novos capítulos, todos muito bem pensados, para o livro completo que lhe ocorria. E a certo ponto, a personagem soltava uma espécie de raiva do coração oprimido, mas nunca escreveu uma linha.
Mudou de empregos e de cada vez fazia listas de capítulos para antecipar os acontecimentos. Conheceu outras mulheres, mas nenhum dos romances correu como ele pressentira no guião inicial. Grandes amores transformavam-se em afastamento progressivo, desilusão e rotina.
E os episódios passavam, em doses regulares e sempre iguais de tempo.
Um dia, sozinho numa esplanada da praia, olhava o mar agitado e as ondas que esmurravam os rochedos, lembrou-se de olhar para trás e compôs numa folha de papel a lista de capítulos da sua vida.
Ainda só tinha quinze capítulos, cada um bem definido. Mais uns cinco ou seis e estaria tudo escrito, pensou.
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