segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O atrevimento


Ler esta crónica de Manuel Vicent no suplemento Babélia do El Pais "Sólo hay que atreverse" fez-me reviver um sonho antigo de ser pintor, mas confesso que nunca tive a coragem de fazer o que fez Paul Gauguin, que abandonou a vida burguesa e a própria família para perseguir sem contemplações a sua visão artística.
Cheguei a estudar pintura, na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde aprendi algumas técnicas que me permitiriam sem dúvida pintar quadros com alguma exactidão (já quanto à beleza, não sei).
Julgo que a minha capacidade seria, no máximo, a da cópia, mas existe algo na pintura, talvez seja o cheiro das tintas ou o triunfo da cor sobre o branco visto a uma distância mínima, essa fabricação de películas que vistas de perto são manchas e vistas de longe começam a formar padrões, talvez seja isto que me fascina, o observar em cada pincelada o triunfo da ordem sobre o caos.

É isto que me fascina também na escrita, a arquitectura que emerge das palavras; mas, não sei porquê, não tenho a mesma sensação de prazer, talvez porque não seja possível ver num romance, novela ou conto tudo num só relance.

Todos os artistas sonham com a fama, impulsionados pela vaidade de saberem que há poucos que conseguem fazer aquilo que eles fazem. No caso de Gauguin havia mesmo muito poucos, mas o pintor amador, que nunca estudara em escolas convencionais, não poderia sabê-lo. Talvez tivesse essa suspeita, a intuição, mas não podia saber. Morreu na miséria, carcomido pela doença, certamente cheio de dúvidas. E se falhei a minha vida? E se a mandei fora, para nada?

Perseguir obsessões pode ser mandar uma vida fora. Mas, então, surge este título de Vicent "só é preciso atrever-se". É assim que vemos esta loucura, como sendo apenas coragem?
Li algures, uma vez (infelizmente, tenho procurado a fonte, sem a encontrar) que em Paris, em 1900, havia dez mil pintores. Acho o número gigantesco, improvável, mas sei que li este valor numa fonte que na altura considerei credível, a ponto de memorizar a informação. É muito pintor para uma cidade que teria dois milhões de habitantes, mas pode ser que estivessem ali contabilizadas as numerosas academias, os pintores que chegavam de todo o mundo para aprender na meca da pintura. Também os pintores de paredes, quem sabe? Dez mil, muitos deles com os mesmos sonhos de Gauguin, embora sem o seu talento.
Gauguin pintou cerca de 300 quadros e essa seria a produção de uma carreira relativamente curta. No caso do pintor francês, durou vinte anos, com altos e baixos. Dez mil vezes 300 dá a quantidade fabulosa de 3 milhões de quadros só para uma geração de pintores da passagem do século e do período pós-impressionista, e só em Paris. Se acharmos extraordinário e pouco credível o ponto de partida, podemos dividir por três. Ainda dá um milhão de quadros, todos bem feitos. E quantas obras conhecemos desta época? Cem, pouco mais do que isso? Uma em cada dez mil das que foram produzidas?

Dava para encher mil museus só com uma geração de artistas, mas sabemos que não será assim. É fácil perceber que a arte tem mais a ver com o fracasso do que com outra coisa qualquer. É uma espécie de loucura obsessiva que toma conta de vidas condenadas ao desperdício. E só um em cada dez mil triunfa, milagre que se deve ao atrevimento ou à loucura.
Por mim, gostava de pintar para esse enorme museu, o maior que existe, o museu das vidas desperdiçadas, das obras que nunca ninguém verá, mas que deram tanto prazer a quem as criou, camada a camada, num combate da cor sobre o branco e deste contra a cor. E poder dizer no fim da vida que, embora perdendo a luta contra o esquecimento, quase fui feliz a imaginar a luz. Mas não me atrevo. O medo é mais forte.

1 comentário:

  1. atreva-se atreva-se

    Li algures, uma vez (infelizmente, tenho procurado a fonte, sem a encontrar) que em Paris, em 1900, havia dez mil pintores

    La vie parisienne 1911
    dizia que em 1890 havia
    60 mil pintores em França
    metade dos quais em Paris

    e há muitos mais

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