quinta-feira, 18 de novembro de 2010

En Garde

Dois esgrimistas, um inclinado, sem fôlego, a perder o pé perante o ataque.
Segurei a gravura amarelada, escolhida de uma pilha de velharias, e deixei que a luz do sol prateado a banhasse com a sua cor de chumbo.
"Bela imagem. Vale bem o seu dinheiro", disse um homem a meu lado. Ele aproximara-se furtivamente, talvez surpreendido com o que eu encontrara no monte de inutilidades. Depois de elogiar a gravura, como que envergonhado, afastou-se e percebi o seu andar elegante, mais visível à distância. Como explicar? Um andar felino, que se mantinha ágil, apesar dos anos. Teria uns 60, mas caminhava de forma subtil e leve, como se o tempo não tivesse molestado a graciosidade do gesto. Perguntei ao vendedor se era algum vizinho, mas o feirante encolheu os ombros, num gesto desinteressado: "Não tenho ideia", disse, para sublinhar que o desconhecido não passava de um vagabundo indiferente e perdido.

Essa foi de facto a única vez que me cruzei com Léon Giraud, durante breves segundos, num encontro fortuito que o acaso determinara daquela forma. O mesmo acaso que me colocara nas mãos a gravura de dois esgrimistas a cruzarem as espadas. A mesma gravura que, trinta anos antes, aquele velho precoce observara durante dez minutos, sentado numa cama de hotel, antes de se decidir a abrir a janela e a saltar para outro mundo. Claro que ele não se lembrava da gravura (o tempo transforma em borrões todos os pormenores das existências humanas que se cruzam no tempo), apenas lhe parecera vagamente familiar e estranhamente bela. Mas eu sei o que sucedeu, por conhecer da casualidade o que a memória prefere apagar. Privilégio de fantasma. 

Aconteceu desta forma: pela janela do quarto entravam reflexos de luzes quentes. Paris não dormia, numa insónia semelhante à que pesava sobre a consciência em transformação de Léon Giraud. O plano de fugir de si próprio surgira sem um pensamento claro ou num único momento que pudesse ser dissecado nas suas complexidades. Fora antes uma amálgama de ideias soltas, encadeadas em detalhes insignificantes, até formarem a estrutura mais sólida das decisões graves que as pessoas por vezes tomam.
Foi ao olhar a gravura de dois homens que trocavam as espadas que se lembrou de fugir. Uma noção complexa que foi assumindo contornos simples. A gravura estava na parede do quarto de hotel, numa moldura de madeira, e o papel tinha sobre si um vidro que os reflexos da luminosidade da rua espelhavam em cintilações moventes e parecia que os dois homens se agitavam em gestos grotescos, um deles talvez à beira de ser vencido. Teve uma súbita pena pelo vencido, mas nunca se tratou de noção nítida, mas antes de uma desistência.
Giraud pensou que apenas a sorte, um acaso do destino, o escolhera para a equipa de espada, só porque o campeão, Manerville, se magoara nos treinos, e isso devia ser um sinal de alguma coisa importante, um facto que desencadeava consequências enormes, mudando todo o sentido da sequência, como acontece nos erros irreparáveis e nos golpes consecutivos que depois levam à perda de fôlego, ao cerco e à morte. E tudo se precipitava num turbilhão de pensamentos a esgrimir no ar: jamais poderia voltar ao conforto da sua casa, perderia para sempre o contacto com o mundo conhecido, com o aperto sufocante e a opressão dos conformistas, a desistência dos fracos, a tirania dos resignados.
Daquele quarto de hotel não poderia sair pela porta da frente. Por isso, sairia pela janela. Planeara um arriscado número de trapézio através dos telhados, depois poderia descer suavemente até ao chão. Levou alguma roupa num pequeno saco. Deixou as espadas para trás. Olhou para a gravura na parede uma última vez (haveria outra ocasião, mas ele ainda não sabia). Léon Giraud sentiu que era ele mesmo quem estava na imagem, a travar a derradeira luta pelo equilíbrio, a escolher o golpe incerto na exactidão milimétrica do combate. En garde. Mas sem mais tempo para pensar.

Nos campeonatos nacionais de esgrima, a equipa de Nimes não tinha hipótese. E a fuga de Léon Giraud desmoralizou os restantes atletas, que chegaram a admitir um rapto. Era incompreensível. Giraud fora o pior esgrimista do grupo, mas também o único que mereceu uma notícia breve em Le Figaro sobre o estranho desaparecimento sem pistas. Ironias. Os seus amigos nunca souberam o que lhe acontecera. Simplesmente, dissipou-se do mundo conhecido.

Cruzou-se comigo trinta anos depois, num marché aux puce, já despido de identidade. Vestia um velho casaco demasiado espesso para o frio que fazia e envelhecera, como acontece ao comum dos mortais e à gente que não tem destino. Falava com a pronúncia rude dos vagabundos. Por um segundo, fascinara-se pela gravura que alguém segurara no ar, reconhecendo nela certa circunstância ligada à existência, mas como se a imagem pertencesse a algo exterior e alheio, não ao seu próprio vago passado, mas a uma outra realidade imaterial.

Fantasma

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