sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Desencontros


Pensara, sem o dizer de forma explícita, que a paixão era exagero, como o trovão ou a dor de dentes. A eternidade, um museu de silêncio. E as palavras, solas gastas de caminhar no chão duro da estrada.

A febre, a congestão em torno da garganta, perturbavam-lhe o raciocínio. Queria explicar aquela repentina ideia de não poder existir na ausência dela, mas estava a fungar do nariz e sofreu um irreprimível espasmo que lhe contraiu o peito, como se um elefante se tivesse sentado sobre as suas costelas; e houve aquele desejo enorme de se libertar do peso concentrado nos músculos, a vontade de explodir como um guerreiro santo. E foi isso que fez: espirrou com liberdade e alívio na direcção da mulher que (descobrira isso cinco segundos antes) começara a amar com uma forma de paixão que era exagero. O espirro soou a trovão. Felizmente, não sentia dor de dentes, isso seria azar histórico, já que tinha uma dor de cabeça que se acumulava como gás liquefeito em lata de estanho fino.

Mal tivera tempo para tapar a boca com a mão. A rapariga recuou do espirro e olhou para ele, com uma expressão assassina. Sentiu-se trespassado por mil agulhas de angústia alheia. Os outros passageiros tentavam virar as costas e, de facto, ficaram só os dois a olhar-se um ao outro, num confronto, como amantes zangados, cercados pelas costas ostensivas dos passageiros, que tinham criado um muro de betão para a privacidade deles.
O autocarro deu um súbito solavanco e imaginou que alguém tivesse atropelado um cão solitário, ou algo assim, mas tinham passado por dentro de um buraco cheio de água, formando uma onda que vergastou o passeio onde duas velhinhas tentaram ainda, com os seus frágeis guarda-chuvas, impedir a chapada de água. Um dos guarda-chuvas era amarelo, o outro encarnado. Ficaram ambas as velhinhas a pingar e a gritar para os passageiros da traseira do autocarro, que tinham contribuído para a temível onda. Lembrou-se da história da borboleta: o seu peso ajudara a provocar um mini-tsunami urbano.

As costas dos passageiros oscilavam para cima e para baixo, das gargalhadas que se ouviam sem se ver. Era um pouco como o espasmo antes do espirro, mas só com riso.
Distraído no seu casulo, sabia que se transformara num pária, a enfrentar a sua amada assassina, que não se conseguia virar de costas, presa entre os corpos comprimidos. Ela tinha caracóis louros e um olhar doce, agora transtornado. Os germes da constipação tinham voado por toda a cabina. Era inverno e estas coisas propagam-se, pensou, filosoficamente.
Em breve, a gripe estaria em todas as cabeças e ainda sentiu uma espécie de formigueiro, ao aperceber-se do museu de silêncio que cobria a eternidade. Uma mulher gorda olhou-o com fúria, mas ele sorriu-lhe em resposta, no exacto instante em que rebentou num imparável impulso de tosse cava. Tossiu, tossiu, libertando-se das entranhas. E a rapariga por quem se apaixonara deve ter sentido um pouco do bafo quente da sua respiração, moveu pobremente o braço, desalentada, e inspirou profundamente, embora não o quisesse fazer.
Por vezes, as pessoas fazem o contrário do que querem.

O autocarro chegou à paragem inundada e travou com estrondo. Os passageiros tombavam uns em cima dos outros, mas é o mesmo que acontece com os pinguins (vira isso num documentário) protegem-se uns aos outros com os corpos, amparam-se e não caem. Imaginou: se os pinguins caírem, será uma queda em dominó.
Saiu do autocarro e sentiu o vento refrescado. Era inverno e encheu os pulmões com ar impuro da cidade. A rapariga também saiu naquela paragem, dirigindo-lhe um insulto de despedida. Nunca mais a veria. Um amor morrera à nascença. Observou-a melhor, olho de perito: não perdera nada de especial, tirando os caracóis louros e a expressão doce.

E em passos cada vez mais febris, largou as solas dos sapatos molhados no chão escuro e endurecido da estrada. Alcatrão do melhor, lisinho e lixado.

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