As galáxias dormem,
o universo emudece.
Extingue-se a voz dos deuses.
Fica o silêncio
um nada pequenino,
só isso:
nada
Orlando Varejão pousou a caneta e olhou para o que acabara de escrever. Observou a letra retorcida – algo gótica, dissera-lhe um dia uma antiga admiradora, pestanejando muito, cheia de uma secreta esperança de ascender ao mundo literário, secretamente esperando que ele fosse o porteiro. Coitada, não se lembrava já do seu nome. Altina, seria? Nem sonhava como ele próprio estava longe desse olimpo. Tinha publicado dois livros (edição de autor, claro.Uma despesa e tanto, e nunca recuperada na totalidade). Tivera uma boa crítica no primeiro, "Passos Nocturnos". O segundo caíra no meio de um profundo silêncio, que ainda durava.
Mas sim, a letra era algo gótica. Em tempos isso orgulhara-o: distinguia-o dos demais. Agora já ninguém ligava a isso. Todo o mundo escrevia no computador, ninguém queria saber de caligrafias. Só ele teimava em rabiscar papéis com a sua velha tinta permanente, mas era cada mais difícil encontrar tinteiros. Nunca se habituara aos computadores, paciência. “Lá terei de arranjar uma esferográfica”, dizia a si próprio de cada vez que tinha de correr dez papelarias antes de conseguir arranjar um tinteiro.
Olhou as palavras marcadas no papel. O nada. Que sensaboria. A musa andava arredia. Talvez não voltasse mais, quem sabe. Suspirou. O vazio aumentava à sua volta (ou dentro de si?), ia crescendo como uma bolha estéril, à mesma velocidade a que rareavam os tinteiros. (talvez fosse uma boa metáfora?... Não, não era).
Apercebeu-se de que lhe doíam as costas.
Olhou o relógio, suspirou de novo. Cinco horas à secretária e... nada. Como no dia anterior, no outro antes deste, e no outro... Lembrou-se de um vago poeta francês, o Trajard (ou Prajard? não se lembrava), que encontrara num círculo literário em Les Jalouses, uma vilória perdida na Catalunha francesa que promovia tertúlias de poetas desconhecidos. Tinha sido convidado, e o Prajard também. "Une merde, je te dis", lamentava-se o francês depois de ter bebido três pastis de seguida.
Enfim, "côneries", como diria o Prajard.
Levantou-se da elegante cadeira de braços, libertando-se da imobilidade com muitos estalidos de ossos. Olhou de novo o papel sobre a secretária e num impulso que a si próprio colheu de surpresa amachucou-o com firmeza e – apercebeu-se – com um prazer que crescia à medida que a folha lhe ia mirrando nas mãos. Depois lançou-a no cesto dos papéis e saiu, aliviado. Ia à Baixa apanhar sol e beber um café no velho Aviz. Àquela hora não haveria por lá poetas. Talvez encontrasse a malta da sueca. Esperançado, acelerou o passo, descendo a calçada que brilhava docemente à luz da tarde.
o universo emudece.
Extingue-se a voz dos deuses.
Fica o silêncio
um nada pequenino,
só isso:
nada
Orlando Varejão pousou a caneta e olhou para o que acabara de escrever. Observou a letra retorcida – algo gótica, dissera-lhe um dia uma antiga admiradora, pestanejando muito, cheia de uma secreta esperança de ascender ao mundo literário, secretamente esperando que ele fosse o porteiro. Coitada, não se lembrava já do seu nome. Altina, seria? Nem sonhava como ele próprio estava longe desse olimpo. Tinha publicado dois livros (edição de autor, claro.Uma despesa e tanto, e nunca recuperada na totalidade). Tivera uma boa crítica no primeiro, "Passos Nocturnos". O segundo caíra no meio de um profundo silêncio, que ainda durava.
Mas sim, a letra era algo gótica. Em tempos isso orgulhara-o: distinguia-o dos demais. Agora já ninguém ligava a isso. Todo o mundo escrevia no computador, ninguém queria saber de caligrafias. Só ele teimava em rabiscar papéis com a sua velha tinta permanente, mas era cada mais difícil encontrar tinteiros. Nunca se habituara aos computadores, paciência. “Lá terei de arranjar uma esferográfica”, dizia a si próprio de cada vez que tinha de correr dez papelarias antes de conseguir arranjar um tinteiro.
Olhou as palavras marcadas no papel. O nada. Que sensaboria. A musa andava arredia. Talvez não voltasse mais, quem sabe. Suspirou. O vazio aumentava à sua volta (ou dentro de si?), ia crescendo como uma bolha estéril, à mesma velocidade a que rareavam os tinteiros. (talvez fosse uma boa metáfora?... Não, não era).
Apercebeu-se de que lhe doíam as costas.
Olhou o relógio, suspirou de novo. Cinco horas à secretária e... nada. Como no dia anterior, no outro antes deste, e no outro... Lembrou-se de um vago poeta francês, o Trajard (ou Prajard? não se lembrava), que encontrara num círculo literário em Les Jalouses, uma vilória perdida na Catalunha francesa que promovia tertúlias de poetas desconhecidos. Tinha sido convidado, e o Prajard também. "Une merde, je te dis", lamentava-se o francês depois de ter bebido três pastis de seguida.
Enfim, "côneries", como diria o Prajard.
Levantou-se da elegante cadeira de braços, libertando-se da imobilidade com muitos estalidos de ossos. Olhou de novo o papel sobre a secretária e num impulso que a si próprio colheu de surpresa amachucou-o com firmeza e – apercebeu-se – com um prazer que crescia à medida que a folha lhe ia mirrando nas mãos. Depois lançou-a no cesto dos papéis e saiu, aliviado. Ia à Baixa apanhar sol e beber um café no velho Aviz. Àquela hora não haveria por lá poetas. Talvez encontrasse a malta da sueca. Esperançado, acelerou o passo, descendo a calçada que brilhava docemente à luz da tarde.
Belíssimo! Senti-me transportado para a angústia do poeta e depois aliviado pelo passeio de fim de tarde. Obrigado
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