sexta-feira, 24 de junho de 2011

Bobeei, dancei


1. E logo o moleque decidiu nascer no dia da final da Copa do Mundo. Eu pegara um rádio de bolso para ouvir o relato falado e logo apareceu na ladeira a santinha da dona Ermelinda, dizendo, seu Florindo, o estão chamando lá na maternidade do doutor Rubem Fonseca, porque o neném está nascendo.

Puta sorte, logo naquela hora, em que o Brasil descia no gramado.

A maternidade fica no limite da zona sul, é preciso tomar ônibus. Me meti à estrada, a pensar em como seria a esplendorosa final, quero dizer, mas também me preocupava com a Mônica, minha mulher, uma mulata braba e cheirosa, que amo muito, embora a meu jeito.

Naquela altura, eu escrevia novela romântica para uma editora de livro popular, das de dois cruzeiros. Estava bolando uma história de herdeira apaixonada por cara caipira, assim como eu, moço enxuto e fogoso, dentuça grande e bigode à Rivelino.
Tinha saudade da Mônica, que a minha sogra nessa manhã levara para a maternidade, pegando carona do siô Inácio, que tem um táxi lá na favela. A criança deveria nascer no dia seguinte, só no dia seguinte, mas se antecipou, feito ponta-de-lança. Catástrofe para mim! Dona Ermelinda me deu a bruta notícia, mas notícia deve ter sempre hora adequada, não deve ser coisa extemporânea (O leitor se interroga com essa de extemporânea, mas convém meter de vez em quando uma palavra mais grossa e de belo efeito).

Saí do ônibus na ladeira de Santa Engrácia, a um quilómetro, ou mais, da maternidade, porque vi um botequim aberto onde se reunira uma agitada multidão de torcedores. Por isso desci. Havia um televisor, com um esplêndido preto e branco, que me permitia ver quanto apertado era o terreno de jogo. Os brasileiros corriam pelo campo fora, pareciam ter asas; os italianos eram circunspectos e ferozes, mas semelhantes a bicho caçado e sem rota de fuga. A turma no botequim lembrava congresso de catatua, olhando um só ponto da floresta e meditando, com subtileza, nas agruras da vida.



2. Foi nessa altura que o Brasil marcou o primeiro gol. Indescritível, pois eu tinha desviado o olhar por alguns segundos, fixado na peituda que estava a meu lado. Me distraí com tanta opulência, perdendo a ginga, o chute e o delírio na arquibancada. Valeu que a mulher também deu uns pulos e, num instante apenas, tive a percepção nítida do que significa a força gravitacional nas esferas celestes. Coisa gostosa.

Marcara Pelé e pensei que talvez seria um bom nome para colocar no menino que me esperava na maternidade, certamente ansioso por conhecer seu progenitor. Só precisava de convencer a Mônica e a grã-fina da mãe dela, com seus dois filhos bandidos. Juro que é verdade, os dois meio-irmãos mais novos de Mônica são bandido de verdade, procurados pela polícia.
Corri do botequim, ouvindo nos varandins os gritos enlouquecidos dos torcedores. Estava sem grana e não podia tomar de novo o ônibus, corri como um alucinado, rumo à vitória, sentindo a força do vento, a leveza dos meus pés, o estrilho do segundo gol brasileiro, num delírio explodido, num grito em uníssono, como se todo o mundo fosse irmão.

Depois, no rádio de bolso que se colara ao meu ouvido, soube da ansiedade do contra-ataque, do italiano malvado se aproximando da baliza de Gerson, a bola em arco espairecendo perigosamente perto do alvo e o goleiro se esticando numa única palavra arrepiada, e bateu para escanteio. Eu estava sem fôlego quando cheguei à maternidade doutor Rubem Fonseca, no limiar da zona sul.

3. Subi até à enfermaria e lá estava a Mônica e o neném, um morceguinho engelhado, de olhinho fechado e uma ternura de mão. A equipa médica, feliz, o rádio de bolso a debitar correrias na minha orelha. Peguei no frágil pacotinho, uma delicada porcelana. De repente, aquele gol, sambado até à felicidade. Rivelino passou a Gerson, Gerson meteu em Pelé, que dançou em frente ao zagueiro italiano, que parecia árvore plantada ou espantalho fixo no gramado, e mete em Juninho, que dispara a gol, feito vulcão explodindo ou orgasmo fodido.

Goooool.

Não sei como fiz aquilo. Estava ouvindo pela rádio e as minhas mãos seguravam o neném, os braços envolviam aquela pequena bola mágica, que saiu voando, direito ao tecto, eu gritando, parecendo louco, gooooll, lembro-me de ver a expressão de pânico das enfermeiras, da minha sogra, do médico que tinha um físico de armário. Foi um pandemónio, candomblé pé-ante-pé, o menino voando em câmara lenta na direcção do tecto da enfermaria e o médico saltando, feito goleiro italiano, e a bola já descia em arco, o doutor se estirando na atmosfera, estetoscópio pendurado e a bata branca parecendo nuvem, e pegou o menino na via descendente, se estoirou no chão, ele, amparando no vasto amplexo o pobre do pimpolho, que saiu ileso.

Virei árbitro enfrentando torcida zangada. Mônica permanecia lívida, quase desmaiada, Recuperara num instante do seu estado bovino e ensonado e me encarava, incrédula. E eu pensei assim: bobeei, dancei.
Me queriam pegar, estraçalhar. Era cabra marcado para morrer. Minha sogra me rogou uma praga horrível e prometeu lançar seus dois filhos bandidos procurados para me cortarem as jóias da família, tipo trofeu.

O meu minino se machucou, chorou Mônica. Eu disse que nunca chegara a bater no tecto. Terá roçado a centímetros, como bola na trave, mas para fora. O médico estudava a moleirinha do neném, não sofreu nada, dona Mônica, percebi que tinha sido tempestade em copo de água.
Mônica me largou outra praga. Era braba, a mulata. Depois, me expulsaram do hospital doutor Rubem Fonseca, pelo que tive pela primeira vez a sensação do jogador que leva vermelho directo.

Mas, enfim, o Brasil ganhara e a emoção foi passando, como fim de carnaval. O samba se acabara. Mônica me proibiu de abrir a boca e me expulsou de casa. Foi ela quem convenceu os meio-irmãos a não me retalharem, para não deixarem órfão o probrezinho do pequeno. Temi que tivesse acabado o tempo bacana, mas ela acabou por me perdoar. Há um filósofo alemão ou europeu, que fala no eterno retorno e penso que sei o que é isso. No fundo, um conceito simples, quase brasileiro. Passei três meses de castigo. Estava chovendo e eu fora de casa. Pus a cara na vidraça e olhei para dentro, como cachorro abandonado. E Mônica se compadeceu. Abriu a porta. Me abraçou. Me beijou na boca. É sempre assim, é isso o eterno retorno, o final de cada uma das nossas brigas.

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