Era um dos miúdos mais pobres da aldeia, mas não foi por isso que deixou uma impressão indelével na jovem professora que em início de carreira, nos anos 50, tinha sido colocada naquele fim de mundo, perdido no meio da serra. “Foi o meu melhor aluno”, contava ela, muitos anos mais tarde. “O Orlando aprendia com uma facilidade como nunca vi, era extraordinário”. Tão extraordinário que ela tentou por todos os meios que a criança continuasse a estudar depois de ter feito a quarta classe. Infelizmente, apesar de todos os seus esforços e diligências – “sei lá com quantas pessoas falei”, recordava – Orlando ficou por ali. A hipótese do seminário era demasiado longínqua e irreal numa família para a qual mais um par de braços no campo podia ser a diferença entre comer e não comer.
A professora nunca esqueceu o aluno extraordinário, que apesar da apetência e da curiosidade, da rara capacidade de aprendizagem e do seu próprio desejo, tinha ficado pelo caminho. Orlando era uma espécie de derrota dos seus sonhos de jovem professora, recordava-o sempre com alguma mágoa. E sempre dizendo que tinha sido o seu melhor aluno, mesmo depois de muitos anos a ensinar numa escola perto de Lisboa e de muitas outras crianças terem passado pela sua sala de aula.
Então, um dia, aconteceu uma coisa inesperada. Um homem com os seus trinta e pouco anos, acompanhado de uma mulher jovem e de uma criança que não teria mais do que dois ou três anos, bateu-lhe à porta. “Venho visitá-la, senhora professora”, disse ele com um grande sorriso. Passada a primeira surpresa, ela não precisou de muito tempo para reconhecer o garoto de quem falava tantas vezes. “Fiz o sétimo ano, a trabalhar e a estudar”, contou-lhe nessa tarde, enquanto segurava o filho nos braços e sorria, feliz. E ela, outra vez professora de Orlando, mas já sem a mágoa nos olhos, respondia-lhe, “então agora é a universidade, Orlando, tu tens tantas capacidades”. Ele ria-se. “Isso é mais difícil, com o miúdo e tudo. Vamos ver, vamos ver”.
Não sei se Orlando chegou a fazer a universidade, ele não voltou a casa da antiga professora. Mas também não precisava. O essencial estava cumprido: tinha continuado a estudar, procurara-a para lho dizer, ela podia ficar tranquila. E sei que ficou, conheci-a bem. Mas lembrei-me desta história no outro dia, quando me contaram que há jovens numa zona industrial do centro do país a anular as matrículas no ensino secundário. Os pais ficaram desempregados, com a falência de várias empresas na região, e eles precisam de procurar trabalho para ajudar as famílias. Uma professora não escondia a angústia por as novas situações de pobreza obrigarem estes adolescentes a abandonar a escola e falava com mágoa do enorme desperdício, perante o qual se sentia impotente. Talvez um dia, daqui a uns anos, essa professora receba a visita inesperada de um jovem adulto, para lhe contar que conseguiu completar o 12º ano, à custa de um esforço, que hoje, 37 anos depois do 25 de Abril, não devia ser uma necessidade. Ou talvez isso não chegue sequer a acontecer.
A professora nunca esqueceu o aluno extraordinário, que apesar da apetência e da curiosidade, da rara capacidade de aprendizagem e do seu próprio desejo, tinha ficado pelo caminho. Orlando era uma espécie de derrota dos seus sonhos de jovem professora, recordava-o sempre com alguma mágoa. E sempre dizendo que tinha sido o seu melhor aluno, mesmo depois de muitos anos a ensinar numa escola perto de Lisboa e de muitas outras crianças terem passado pela sua sala de aula.
Então, um dia, aconteceu uma coisa inesperada. Um homem com os seus trinta e pouco anos, acompanhado de uma mulher jovem e de uma criança que não teria mais do que dois ou três anos, bateu-lhe à porta. “Venho visitá-la, senhora professora”, disse ele com um grande sorriso. Passada a primeira surpresa, ela não precisou de muito tempo para reconhecer o garoto de quem falava tantas vezes. “Fiz o sétimo ano, a trabalhar e a estudar”, contou-lhe nessa tarde, enquanto segurava o filho nos braços e sorria, feliz. E ela, outra vez professora de Orlando, mas já sem a mágoa nos olhos, respondia-lhe, “então agora é a universidade, Orlando, tu tens tantas capacidades”. Ele ria-se. “Isso é mais difícil, com o miúdo e tudo. Vamos ver, vamos ver”.
Não sei se Orlando chegou a fazer a universidade, ele não voltou a casa da antiga professora. Mas também não precisava. O essencial estava cumprido: tinha continuado a estudar, procurara-a para lho dizer, ela podia ficar tranquila. E sei que ficou, conheci-a bem. Mas lembrei-me desta história no outro dia, quando me contaram que há jovens numa zona industrial do centro do país a anular as matrículas no ensino secundário. Os pais ficaram desempregados, com a falência de várias empresas na região, e eles precisam de procurar trabalho para ajudar as famílias. Uma professora não escondia a angústia por as novas situações de pobreza obrigarem estes adolescentes a abandonar a escola e falava com mágoa do enorme desperdício, perante o qual se sentia impotente. Talvez um dia, daqui a uns anos, essa professora receba a visita inesperada de um jovem adulto, para lhe contar que conseguiu completar o 12º ano, à custa de um esforço, que hoje, 37 anos depois do 25 de Abril, não devia ser uma necessidade. Ou talvez isso não chegue sequer a acontecer.
* Este texto foi publicado no blogue Delito de Opinião, no dia 10 de Maio, na sequência de um convite do Pedro Correia que me honrou muito e que, daqui, volto a agradecer-lhe. Já depois disso, surgiram no Diário de Notícias e no Público notícias dando conta de vários casos deste tipo no País. Pela actualidade, aqui o deixo também aos leitores do Emoções Básicas
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