Eis senão quando, um barulho forte rasgou a noite numa ponta.
Deixei de ouvir a televisão, como quando passa um avião. Uma sirene aproximava-se, mais e mais, ao fundo da rua.
– Para quem será?! – Indaguei em voz alta, como se estivesse a falar sozinho.
O estardalhaço tornou-se atroante e entrou pelas janelas da sala através do vidro duplo, sem esmorecer. Num apito arrastado, parou. As luzes ficaram a girar azuis nas paredes, através das janelas e das ranhuras das persianas. O efeito era bonito, algo hipnotizante até, como se a sala se tivesse transformado num salão de baile da aldeia, mas pequenino.
– Deve ser para a velhota lá de baixo, coitada. Volta e meia tem um achaque próprio da idade – especulei, outra vez em voz alta. – Ou para os gordos ali de frente. Se levantasse um dos estores e espreitasse lá para baixo tirava todas as dúvidas, mas não quis mostrar-me.
Uma porta rangeu e vozes inundaram o fundo da escada. De imediato, carreguei no mute do telecomando. A voz esganiçada da porteira e outra mais grossa, mas quase em murmúrio, misturaram-se, sem deixar perceber o que diziam, mesmo para quem já estava colado à porta a ouvir com atenção. Até tirei os óculos para escutar melhor, mais encostado ainda, a sentir na orelha o vento que entrava pela frincha.
Ao bater de uma porta seguiram-se passos, de vários pares de pernas, cada vez mais próximos.
E um silêncio sepulcral. Até o tlic, tlic, tlic da luz a girar lá fora se ouvia.
Detiveram–se no meu patamar. Cheguei-me para trás e engoli em seco, mas com algumas perspectivas optimistas.
– Olha, é aqui para o Engenheiro do 5º esquerdo – deduzi, mas desta vez caladinho que nem um rato e a roer uma unha que estava lascada.
Seguiu-se novo silêncio, que acompanhei de sobrancelhas coladas às pestanas, e um susto.
Saltei com o sobressalto, quando ouvi a minha própria campainha tocar, seguida por um segundo apenas de silêncio e três batidas fortes na madeira, daquelas de mão aberta, e mais dois toques insistentes na campainha que até desafinou. Apaguei a televisão, para que não vissem luz ou movimento por baixo da porta – que eu não sou parvo – e sentei-me sossegado, no chão, para que o sofá não rangesse. Fiquei a ouvir o trote das minhas pulsações e a ver as luzes azuis que passeavam sem se desviar dos quadros e das esquinas da divisão.
Alguém segredou qualquer coisa que não consegui perceber e parei logo de pensar. E mais silêncio.
Isto promete. Somos tolerantes com a desgraça alheia, mas a nossa porta deve ser o nosso guardião, eterno.
ResponderEliminar