segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Carta do Pai Natal a um disperso escrevedor (Ao abrigo do direito de resposta e ainda a tempo do Dia de Reis)

Meu Caro Jovem
Perdoe-me a demora na resposta. Sucede que, polémicas à parte, continuo muito solicitado e andei ocupadíssimo, primeiro nas lides habituais, depois compensando a minha mulher pelas longas horas fora de casa.
Foi com profunda tristeza, alguma complacência e a máxima arterial a 170 que li e reli as suas desalentadas palavras. Vasculho na minha história, sondo de ponta a ponta a minha consciência, e não encontro passos merecedores de tamanha diatribe. Creio que apenas a sã irreverência, própria da juventude cinquentenária do meu amigo, justifica tal tratamento a um idoso como eu. Bem me avisou em tempos certa astróloga: por volta dos meus 115 anos, uma grande arrelia chegaria por correio e, de tão contundente, far-me-ia crescer (Ainda perguntei "Crescer mais?? Para quê? Mas ela lançou-me um olhar reprovador).
Sou pessoa sensível e magoaram-me algumas das suas farpas, quer as de natureza mais filosófica, quer as alusivas à minha aparência. Sem cerimónias, eis o que se me oferece dizer sobre as primeiras:
Mas agora tenho de levar a toda a hora com a lengalenga anti-consumo a pretexto dos primórdios da minha existência? Por dá cá aquela palha, salta alguém a responsabilizar-me pela agressividade mercantil da marca que me inventou? É injusto e é absurdo.
Injusto, porque eu não tenho culpa das minhas origens. Não podemos arcar pela vida fora com o ónus das opções e acções dos nossos progenitores. Absurdo, pela questão dos prazos de validade: as alianças fazem-se e desfazem-se. No meu caso, mergulhei directamente do acto de criação para uma tarefa especificamente comercial, é verdade. Foi nos anos 30 do século passado. Mas onde é que isso já vai! Há que tempos ninguém me vê agarrado a um dístico de refrigerantes. É como um indivíduo divorciar-se e passada uma década ainda lhe falarem constantemente da ex-mulher. Desagradável. Ainda por cima são essas vozes de revolta mal dirigida que alimentam, nesta quadra e gratuitamente, o portentoso caudal de publicidade à referida marca, pois, como sabe, nos códigos do marketing o que importa é ser-se falado, bem ou mal.
Quanto a promover o consumismo: Eu? Eu, que só saio da toca duas ou três semanas em Dezembro? Então os outros onze meses do ano? Sou eu que canalizo milhares para formigarem pelos centros comerciais das vilas e cidades nos fins-de-semana de sol, nas tardes de primavera? (Dou este exemplo, por me constar que o seu país vai à frente nesse distinto passatempo).
E antes que lhe ocorra imputar-me as enormes desigualdades materiais das famílias, digo-lhe já que reclame noutra secção, com quem fez o mundo assim. Limito-me a entregar o que me mandam - sou apenas o estafeta. Abracei o projecto de distribuir prendas aos miúdos porque me identifiquei com ele. Comecei como mero assalariado, nunca subi na hierarquia, não pedi para ser a estrela do consumismo sazonal do ocidente, e há muito que opero na base do voluntariado responsável. Faço o melhor que posso.
Acredito ter conquistado, assim, o direito a uma existência autónoma, digna e íntegra. Não sou avalista de todas as palermices que inventam a meu respeito, e sou alheio às réplicas da minha pessoa empoleiradas aí pelas varandas. Alguém, nesta época de twitters e facebooks, poderá assumir os usos indevidos da sua imagem globalizada? Se vamos a matutar nisso, será melhor eu pôr-me a despejar tranquilizantes pelas chaminés abaixo.
É verdade que já poderia ter arrumado as botas. Mas, por um simples erro de génese, vestia agora um fato de treino e enterrava a cabeça nas neves da Lapónia? Não. Como é ingénuo o meu amigo, ao pensar que me movem as comissões das grandes multinacionais. O meu intento é outro. É adiar o face-a-face com a solidão na velhice, é resistir ao medo terrível da inutilidade. Há muito que me sinto escorregando num plano untado a sebo de rena, inclinado a 30 graus sobre a fenda escura da morte. Esta sensação é comum na minha idade e até em pessoas mais novas. Passar a noite de Natal voando pelos céus, nas asas da imaginação, nossa ou de outros, é a minha forma de me agarrar a qualquer ressalto ou cavidade que encontre nessa supefície ímpia. É a minha forma de iludir um tempo que corre muitíssimo mais veloz do que me foi prometido no início da minha existência.
Quanto ao menino Jesus, nada contra. Nutro um carinho de avô por esse eterno bebé, e além disso há mercado para os dois. Tenho alguma vaidade por reunir o consenso entre as famílias que não se revêem nos episódios e personagens bíblicas, mas ninguém me ouvirá uma palavra menos cortês sobre a concorrência. Excessos de competição são desaconselhados na minha idade e esvaziam-nos de energia anímica. Já a quebra de popularidade do Pequeno no coração das pessoas, palpita-me que se deve, isso sim, à incorrigível soberba da massa católica, dos marechais aos soldados rasos.
Por fim: A minha fatiota. Que é que tem?? Eu gosto. O vermelho significa alegria e tonicidade, qualidades nada de desprezar num velho. Além disso, como sou forte, nem tudo me assenta bem. Efectivamente, já nasci com este índice de massa corporal, e ninguém se penaliza mais por isso. Não poderia adoptar uma tanga tipo Jesus, que praticamente nasceu nos trópicos, e também não estou para imitar o São Nicolau: o púrpura e o marfim não me favorecem e as vestes compridas travam-me os movimentos.
Dito tudo isto, meu jovem amigo, estou consigo no desalento perante um Natal esvaziado de sentido. Porém, na tresloucaria refinada que é Dezembro, eu não vejo tanto a ânsia de consumir e possuir - vejo mais a urgência das pessoas em quebrar a rotina a todo o custo, em encher os dias com objectivos palpáveis e próximos, passos e palavras especiais, ainda que frívolos e fugazes. O espírito até existe, mas agora é outro. Jesus cresceu. A humanidade está para lá de madura.
Deste, que afectuosamente o compreeende,
Pai Natal

2 comentários:

  1. Bis! Bis!! Merece réplica do Escrevedor Disperso!...

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  2. Segui com bastante entusiasmo este direito de resposta, também meritoriamente pulicado, num certo "Com olhos de ler".
    Confesso que balancei e agora estou para aqui dividida entre um Disperso Escrevedor frontal e cheio de garra e um Pai Natal com razões de sobra para estar magoado e ofendido. A rigor, a rigor, não vou tomar partido mas sim conviver alegremente com os dois :)

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