quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Aniversário


Encheu o copo de água tónica, deitou-lhe umas gotas de limão e umas folhas de hortelã. Gostava do aroma da hortelã, do travo doce diluído na água áspera, e experimentou a sensação intensa daquele sabor enquanto olhava as luzes trémulas da cidade, com o castelo iluminado, ao longe. Luzes ásperas e doces. Um sorriso iluminou-lhe o rosto por um breve instante, mas ela não se apercebeu disso. A solidão pesava-lhe mais nessa noite, como se fosse uma presença real. Pareceu-lhe que a envolvia, como um cobertor espesso, quase a sufocá-la.
A palavra desenhou-se-lhe no espírito e Sílvia sentiu um aperto súbito na garganta. O coração pulsou mais forte, teve um momento de medo. Controla-te, ordenou-se a si própria. Obedeceu. Desviou os olhos da janela e bebeu um gole refrescante, engolindo devagar, sentindo o líquido escorrer na garganta desimpedida. Respirou fundo. Raios, não vou ter para aqui um ataque de pânico qualquer. Isso é que seria muito ridículo.
Continuou a beber devagar. Fazia um ano que o Mário se tinha ido embora, mas isso não era motivo suficiente. No fim, as coisas até tinham corrido de forma tranquila. Mário era discreto, e ela só muito tarde soube dos nomes todos: Alice, Raquel, Maria, talvez outras mais. Lisa tinha sido a última: a gota de água. No último dia, ele tinha-lhe dado um beijo na face, quase lhe pedira desculpa, mas não chegou a fazê-lo. Não saberia de quê, ele era assim e pronto.
Uma separação exemplar, tinham dito os amigos de ambos, quase satisfeitos. Sílvia suspirou, observando as luzes da cidade, que cintilavam à sua frente, como um firmamento que tivesse tombado no solo. Tão perto e tão distante. Apetecia-lhe sair, mas não se levantou do sofá.
Olhava ainda as luzes quando, no silêncio da sala, o telemóvel pareceu acordar.
Era uma mensagem curta, de poucas palavras, mas o conteúdo pareceu-lhe misterioso, indecifrável. “Desculpa querida, amo-te tanto. Não volta a acontecer, prometo, Júlio”.
Júlio? O único Júlio que conhecia era aquele tio velhote de Braga, que tinha uma mercearia daquelas antigas, com os pacotes de arroz à mostra nas prateleiras e as moscas rondando os pratos de biscoitos sobre o balcão. Ainda seria vivo? Devia ser, se não alguém a teria avisado. A prima Geninha, teria dito qualquer coisa. Mas aquela mensagem não podia ser do tio Júlio.
A este pensamento, Sílvia deu uma pequena gargalhada. Era engano, só podia ser. Releu a mensagem, aquele apelo que parecia tão genuíno e sentido, e pensou que a querida daquele Júlio sem rosto não chegaria a ler aquelas palavras. E a essa hora, Júlio estaria ansioso, andando de um lado para o outro numa calçada qualquer da cidade, à espera de um sinal no seu telemóvel, à espera das palavras que anunciariam a reconciliação, e não podia saber que elas não chegariam nunca, porque a destinatária não recebera a sua mensagem.
Pobre Júlio. Que teria ele feito que exigia perdão e aquela promessa: não volta a acontecer?
Na verdade, não tinha nada a ver com isso. A mensagem chegara-lhe por um simples acidente, mas não conseguia deixar de pensar como um pequeno erro poderia mudar a vida daquelas duas pessoas, afastadas definitivamente uma da outra por causa de uma coisa tão ínfima e casual.
Então, numa decisão súbita, Sílvia pôs-se a teclar no telemóvel. Escreveu “Júlio, esta mensagem não era para mim. Boa sorte”, olhou para as palavras bem encadeadas, murmurou para si própria cá vai, agora amanha-te, e depois carregou na tecla enviar.
Lá fora, a cidade continuava a brilhar na noite. Todo um firmamento tombado do céu, que a esperava. Sim, ia sair.

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