terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Traição


O engenheiro Sombart começara por falar do futuro, mas Brandes sabia que não havia saída: os insectos capturados na teia de aranha ficam ainda mais presos quando tentam escapar. Por isso, limitou-se a ouvir a longa exposição sobre como seria o país daí a dez anos e daí a cem. A sala estava abafada e sentiu uma vertigem. A voz de Sombart tornara-se monótona e Brandes sabia que suava em excesso e que o outro sentia de certeza o seu medo à superfície da pele.
“E este futuro dependerá do nosso esforço colectivo, de remarmos todos no mesmo sentido”, disse o engenheiro. E ficou à espera:
“Sei que você, Brandes, acredita no nosso futuro”, insistiu.
“Só faço o meu dever, o melhor que posso”, murmurou o subordinado, num voz sumida. Pela primeira vez desde que entrara no gabinete teve esperança de que poderia escapar. Não era ele o insecto na teia.
“Por isso lhe peço que diga com franqueza o que pensa do seu amigo Georg Trasser”.
“É um excelente amigo”, respondeu Brandes, após breve hesitação.
Sombart recostou-se na cadeira, tinha o ventre mais inchado, parecia meditar, desapontado.
“Mas será um bom amigo nosso?”
“Julgo que sim”.
O engenheiro limitou-se a suspirar, mas agora num súbito tom de ameaça:
“Vocês são chegados, não é? Muito leais um ao outro”.
Brandes pensou depressa. Por certo havia uma desconfiança em relação a Trasser e estavam a ligá-lo ao amigo. Se não cortasse a ligação, apenas cairia com ele. Sentiu-se encurralado, a desfalecer:
“Não somos assim tão chegados”, sugeriu. “E já ouvi Georg Trasser mencionar algumas das suas dúvidas”.
“Dúvidas?”
“Enfim, talvez seja uma palavra excessiva. Numa conversa, ele admitiu que talvez o nosso futuro não seja tão positivo como eu ou o senhor pensamos que vai ser”.
“Uma forma de traição, portanto...”
Brandes tentou rir, mas saiu-lhe um patético sopro de pânico.
“Não, nada disso. Georg Trasser apenas tem...” procurou a palavra certa, hesitou, depois decidiu-se: “...dúvidas”.
Depois, descobriu uma palavra mais inócua e repetiu-a:
“Tem reticências, quero dizer!”


Não havia recuo. No meio do silêncio, tentou distrair-se com um pensamento mais inofensivo, enquanto avaliava o que dissera. O engenheiro Sombart estudava a frase. Olhou-o com intensidade. Depois reclinou-se na cadeira, brincou com um lápis que tinha na mão.
“O Georg sempre foi muito arrogante, não acha?”, perguntou o engenheiro.
Brandes ficou em silêncio. Pensou na conversa que tivera com Georg Trasser. Fora ele, Brandes, a falar em dúvidas sobre o futuro e o seu amigo, um idealista, explicara que ainda havia esperança. Mas se fosse interrogado, Trasser seria o primeiro a comprometê-lo. Não hesitaria, para salvar a carreira, a sua boa vida. Era vital convencer o engenheiro Sombart de que era ele, Brandes, o mais fiel:
“Ele acha-se superior a nós”, sentenciou.
E o outro concordou, com um movimento muito ligeiro da cabeça.
A mentira mais eficaz é aquela que se desvia apenas milímetros da verdade, pensou Brandes. Permitiu-se sorrir interiormente, mas sem mover um músculo da cara. Só lhe restava ser cruel e uma intensa onda de calor trespassou cada fibra do seu corpo.
Georg Trasser conseguira o êxito que ele nunca conseguira, um salário mais alto, uma esposa mais bonita, a admiração geral. E sempre o considerara a ele, Brandes, um inferior, alguém a quem se ajuda por caridade. Isso era o mais imperdoável, admitiu, e a raiva dominou-o por um instante em que perdeu o controlo:
“No fundo, ele é um traidor, como o senhor diz”.
Sombart concordou. Já fizera a sua escolha. Decidira esmagar Georg Trasser, quebrar-lhe a espinha. Brandes moveu um músculo em torno do lábio. Sorrira, mas o engenheiro não viu, ocupado com o lápis. Depois, Sombart fez um pequeno gesto, a dispensar o subordinado.

Brandes saiu do gabinete, aliviado com a frescura no exterior. Caíra a noite e o mundo enchera-se de sombras e luzes fracas. Enquanto caminhava no espesso nevoeiro, sentiu a satisfação que lhe dava reencontrar uma espécie de liberdade. E pensou, quase feliz, que talvez pudesse empurrar Trasser no destino de queda, ou melhor, muito melhor, talvez até lhe desse a mão, para o humilhar ainda mais com a sua inútil caridade.

(Este microconto antigo saiu da gaveta, foi transformado e prolongado. Decidi manter os nomes originais das personagens, excepto um deles)

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