sexta-feira, 22 de julho de 2011
Welcome 2 the Circus
O circo é um lugar cheio de ressonâncias arcaicas. Chamam-lhe o maior espectáculo do mundo, o que não será por acaso. Dentro da tenda toda vida humana se faz espectáculo. Representa-se. Encena-se. Dá-se a ver. Nos seus aspectos mais luminosos e mais sombrios. Um espectáculo circense é quase uma recapitulação da história Humana. Os sonhos de voar e de transcender os limites físicos impostos pela natureza, revisitados em cada subida ao trapézio ou à corda vertical. A superação do medo da predação por animais ferozes em cada batida do chicote. A ultrapassagem do medo da queda e da morte em cada acrobacia. O circo é o Homem face aos seus abismos interiores e exteriores. Fazendo deles espectáculo para que todos e cada um se representem e se revejam na face tragicómica da existência.
Antes de ser qualquer outra coisa o circo é (ainda) uma forma de o Homem se contar. Tal os antigos mitos, que forjaram a nossa humanidade, continuam hoje a ser contados e recontados independentemente da sofisticação dos mecanismos tecnológicos postos ao nosso dispor, também o circo, não obstante a estilização de movimentos, a criação de novas formas dramatúrgicas, a fusão com outras linguagens e disciplinas artísticas, continuará sempre a ser uma trupe que, pela estrada fora, conta e reconta a história humana. Como tão bem o percebeu Ingmar Bergman no Sétimo Selo, onde a José, Maria e o menino são representados por um casal de saltimbancos, ou Federico Fellini, que soube como nenhum outro colocar a alma no circo no grande ecrã.
Hoje vivemos no tempo dos nomes. Tudo necessita de uma denominação para se poder afirmar, existir (quando sabemos que a essência das coisas é, afinal, indizível). Há então o velho e o novo circo, o antigo e o contemporâneo… porém, o que esta luta em torno dos nomes nos mostra é que o circo continua a inquietar. Queremos dar-lhe um nome, um género para o arrumar na gaveta das nossas ideias. Mas tudo o que está vivo escapa ao nome, desafia as normas e as formas de classificação.
Por isso, quando os alunos/criadores de Welcome 2 the Circus se propõem criar uma performance a partir da relação entre o circo tradicional e o circo actual isso constitui já um ponto de partida estimulante.
O espectáculo ergue-se então sobre evocações de obras fundamentais dos séculos XX e XXI (como Marcel Duchamp, Tom Banwell, Federico Fellini, o cinema expressionista, o ballet clássico ou a música pop) para colocar em palco as relações conflituantes que existem dentro do universo circense actual, nomeadamente os conflitos entre o chamado circo tradicional e circo contemporâneo. Sete artistas promissores constroem um cenário que evoca as antigas arenas (arena romana dos gladiadores, arena de circo, arena do teatro isabelino). Sim, milénios de história podem contar-se assim: com tábuas e pregos, uma velha arca, uma sanita e muito plástico. Não são precisos efeitos especiais. E bastaria olhar para estes materiais para ler aqui a transição do manual para o tecnológico, da natureza para a máquina. Da primordial madeira ao moderníssimo plástico. Este material que assume qualquer forma, se adapta a qualquer transformação e que materializa essa antiga aspiração humana, que o circo também representa, de assumir todas as formas possíveis.
É pois neste cenário (da autoria de Cristina Ramos, Joana Nicolau e Paulo Carmo), simples mas cheio de ressonâncias complexas, que quatro artistas assumem a tarefa de revisitar mitos, personagens e números que têm atravessado a história do circo, sem nunca deixarem de o relacionar com a história humana. E porque não temem revisitar o circo tradicional usando a sua linguagem de artistas e espectadores do século XXI, conseguem, com momentos de uma riqueza imagética assinalável, dar ao público a possibilidade de superar uma visão dicotómica do circo( velho/ novo, antigo / actual), e compreender os elos, as ligações que existem no seu interior, as fantasmagorias e os desejos de transformação que o habitam, como habitam a alma humana.
De Welcome 2 the Circus gostaria de destacar alguns momentos:
Homem–elefante/homem–máquina dançando em pontas
A utilização de animais no circo reconta esse momento fulcral da história da humanidade que foi a domesticação de animais selvagens . A violência a que são sujeitos os animais amestrados não é mais do que um regresso à violência fundadora que é intrínseca à condição humana. Mas não nos enganemos. Não é o animal que protagoniza a arena circense. É o Homem. O Homem cujo desenvolvimento do neo-cortex cerebral, aquisição de linguagem e domínio do simbólico, tornaram superior aos outros animais, condição que ele não só nunca esquece como gosta de exibir. Mesmo quando coloca a cabeça na boca de um leão são as suas capacidades de homo sapiens sapiens que quer mostrar, (re)encenar. Portanto, o circo mais não faz que devolver-nos a estas origens violentas e narcisistas. Quando Colin Vieira coloca no rosto uma máscara de gás idêntica à que foi criada por Tom Banwell e se ergue, em equilíbrio precário, sobre umas sapatilhas de pontas, coloca-nos perante uma poderosa imagem do circo enquanto encenação do humano. Enquanto ele deambula pela arena agitando tristemente a cabeça, vemos um elefante amestrado, mas vemos também da violência do homem sobre o homem, a guerra, os campos de concentração…vemos ainda o homem-elefante, essa personagem trágica cuja vida nos conta muito mais sobre a nossa dificuldade em lidar com a diferença do que milhares de páginas de tratados psicológicos e sociológicos. A simplicidade da cena, a economia de gestos e expressões dá-lhe uma densidade plástica e metafórica fortíssima. Ali está toda a brutalidade e toda a fragilidade da vida.
Morte do palhaço
A figura do palhaço tornou-se sinónimo de circo. Apesar de ser uma das mais repetidas, recriadas é também uma das mais ambíguas e inquietantes. Raul Brandão mostra-nos isso magistralmente na obra ‘A morte do palhaço’. Em Welcome 2 the Circus, o palhaço está descaracterizado. Não tem nariz vermelho, nem roupas absurdas. É uma menina a brincar com amigos. É um de nós. Uma brincadeira que começa no riso e acaba na violência. Todos os espectadores riem às primeiras estaladas (que parecem um jogo de equívocos) mas aos poucos, à medida que a violência cresce, o silêncio torna-se denso, como se cada um se revisse naquele que brutaliza e naquele que é brutalizado. Onde estão as fronteiras? Onde acaba a brincadeira e começa a humilhação, a brutalização do Outro? Quantas vezes já fomos o palhaço que ri e o palhaço que é humilhado? Porque em cada um de nós não habitam só bons sentimentos mas também uma crueldade imensa? E como ver esta cena sem pensar na doce e trágica Gelsomina?
Ironia e melancolia
Toda a encenação de Welcome…joga sabiamente com momentos de ironia e momentos de melancolia. Tanto Colin Vieira como o Bruno Machado, cujas roupas nos remetem de imediato para Antony Quinn, o malabarista Zampano no La Strada de Fellini, encarnam, do principio ao fim, personagens que espelham esses dois sentimentos. Em especial na cena em que o mestre ensina ao aprendiz a arte de ser apresentar um circo ou no momento em ambos descrevem a actuação da trapezista sem olharem para ela uma única vez. Quantas vezes o riso é parente do desencontro? Há no circo, como nos espectáculos em geral, uma tentativa humana de escapar à angústia. Mas todas as máscaras escondem um corpo nu. Todas as potencialidades físicas escondem um corpo mortal. Por isso, volto a destacar a sobriedade do cenário e dos números desta peça que, ao recusarem o excesso, a espectacularidade e a exibição gratuita de virtuosismo, ou beleza estética balofa, foram de uma generosidade imensa para com o público. Deram-nos a possibilidade de pensar.
* Este texto foi escrito a partir do espectáculo Welcome 2 the Circus, apresentado, como Prova de Aptidão Profissional, pelos alunos do 3º ano do da Escola do Chapitô : Bruno Machado, Carmen Viegas, Colin Vieira, Joana Dias, Cristina Ramos, Paulo Carmo e Joana Nicolau.
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