quarta-feira, 27 de julho de 2011

Histórias de jornalistas I (Tráficos de fronteira)


No fim da refeição, o diplomata pegou no copo de brandy. Ficou uns momentos com ele suspenso no ar, o líquido a fazer um turbilhão no interior do vidro curvo. Depois, disse:

“A cimeira luso-espanhola foi mais tensa do que transparece nas notícias do seu jornal”.

Fiquei surpreendido com a franqueza. Sabia que tudo o que ia ouvir jamais poderia ser publicado.

“Salazar detesta Franco e diz que falta classe ao generalíssimo. Um colega meu confidenciou-me que Franco também odeia Salazar...”

Era novo para mim. As minhas reportagens sobre o encontro no Minho mostravam uma relação de amizade.

“Isto é para sua cultura geral, mas no Porto quase houve faísca, sobretudo quando no desfile militar Franco ficou um passo à frente de Salazar. Mas, claro, o que estava em jogo era mais importante do que a vaidade do senhor presidente do conselho”.

“E o que estava em jogo era o entendimento ibérico e a segurança mútua”, disse eu.

“Por Deus, nada disso. Era preciso evitar o isolamento da Espanha. Lembra-se da nota oficial? 'Examinar detidamente o presente momento internacional'? Diz tudo. O que estava em jogo era a NATO e o facto da Espanha ficar fora dessa aliança”.

Fiquei em silêncio, à espera que ele continuasse:

“Salazar é o único aliado de Franco e pode interceder junto dos americanos. É uma questão de pragmatismo. Estamos no mesmo barco, a combater os comunistas. E digo-lhe, se estes dois homens não desconfiassem tanto um do outro, seria fácil estabelecer a política de aproximação com os aliados. Acho que quando os dois atravessaram o Minho e os carros atravessaram aquela paisagem magnífica de Valença e Monção, Salazar só pensava nos horrores que sofreu no passeio de iate da véspera e no que sofreu há oito anos, em 1942, quando se encontrou pela primeira vez com Franco”.

“Não sabia que eles se tinham encontrado em 42...”, interrompi, estupefacto.

“Um encontro secreto, de política a sério. Fiz parte da comitiva que acompanhou Salazar. Parámos a meio do caminho, num desconfortável piquenique. Em Sevilha ainda havia marcas da guerra civil. Ficámos bem instalados, não estou a dizer o contrário, deram-nos os melhores quartos, mas Salazar odiou cada instante. E tivemos de ir a Sevilha de automóvel, no maior secretismo, pois não queríamos que os ingleses soubessem, ou pior, que os alemães soubessem”.

O embaixador parou de falar. Bebericou do brandy, acendeu um charuto.

“Política a sério”, disse o diplomata. “Era preciso evitar que Franco nos invadisse”.

“Nos invadisse?”

“Sim, o que é que julga? Estivemos por um fio”.

Depreendi o resto, de farrapos. Desconhecia a reunião, mas imaginei o que se passara. E ficámos por ali a meditar, o embaixador e eu, cada um com os seus pensamentos. Ele poisara o charuto, que queimava sozinho, deitado no cinzeiro. Fiquei quieto, a recordar a recente visita ao Minho.

A comitiva com os dois estadistas chegou proveniente da Galiza. Vinha de Vigo, onde Salazar e Franco tinham terminado o passeio de barco. Passaram em Valença às 10 e seguiram até Viana, depois Póvoa de Varzim, até ao Porto, onde presumo ter ocorrido o tal incidente diplomático do desfile militar e do desalinhamento do líder espanhol, com o passo mais à frente. Depois, Salazar e Franco seguiram para Santo Tirso, Guimarães, Braga, e até fizeram uma parte da viagem juntos no mesmo carro, mas não imagino o que tenham dito, na ausência de ajudantes e tradutores. Provavelmente, viajaram os dois em silêncio.

Estava à espera deles, enviado pelo meu jornal, no solar dos morgados da Brejoeira, para concluir a reportagem. Foi inesquecível: a feérica iluminação à moda minhota, com milhares de lumes, o conjunto encantador, a fachada iluminada, lá fora a multidão compacta, cheia de entusiasmo patriótico. Foi um delírio à chegada, com ranchos folclóricos, a música, o ambiente, o vinho verde no banquete.
Pensando melhor, depois de ouvir aquilo que o embaixador dissera, compreendia agora alguns dos acontecimentos da semana anterior. Na altura, julguei perceber em Franco uma espécie de sorriso sarcástico, mas não lhe dei demasiada importância. Não sei porquê, a frase do generalíssimo, quando juntou os jornalistas, soou-me demasiado irónica: 'É costume não se acreditar nas palavras de namorados e, assim, como sou enamorado deste País e deste povo, nada devo dizer'.
Quando falei ao embaixador desta lembrança, ele deu uma gargalhada:

“Não ouvi a declaração, mas li no jornal e na altura percebi que o generalíssimo tinha falado com jornalistas. Sabe o que ele fez depois de falar com vocês? Juntou-se aos colaboradores e desataram todos a rir, como se ele lhes contasse uma anedota. Não sei do que riam, mas talvez dessa frase”.
O diplomata pegou no charuto, que se apagara poisado no cinzeiro. Acendeu-o com gestos lentos e fiquei ali a pensar, sem saber bem porquê, no dia seguinte ao encontro de Oliveira Salazar e Francisco Franco. Nessa noite, fui dormir a Monção, ali perto, e de manhã decidi dar um passeio à beira-rio, cuja água parecia quase transparente. contavam-se muitas histórias de contrabandistas que fintavam a guarda-fiscal e atravessavam o Minho, com perigo de prisão ou morte. Durante a guerra, com a fome que havia, era a única saída para muitos habitantes, levar na escuridão para o outro lado os sacos com ovos, café, algodão, sabonetes. à saída da povoação, na margem da água, junto a um bosque, estavam alguns barcos indolentes, presos a cordas, e meti conversa com um velhote, pescador do rio, que por ali descansava. Não tinha a princípio qualquer intenção de conhecer segredos, depois fui levado pela curiosidade, a tentar saber um pouco mais sobre a faina do contrabando. O homem olhou para mim desconfiado e eu pressionava sobre os contrabandistas, se os havia por aqueles lados e se era mesmo perigosa a faina, como diziam. Ele respondia em monossílabos, falando sobre os pescadores. Às tantas, como se fosse uma ordem para eu não prosseguir nas perguntas, disse assim: "São lendas, senhor".
A lembrança esfumou-se. À minha frente estava o meu amigo embaixador, que me observava, com expressão enigmática. Ele devia estar a pensar que no palácio da Brejoeira eram perceptíveis farrapos confusos de um acontecimento para além da compreensão de um simples jornalista. Salazar e Franco não seriam amigos e não iriam à pesac juntos. O encontro fora uma espécie de comércio obscuro. Mas, em minha defesa, digo que é difícil escrever sobre fronteiras e sobre o que se esconde na sombra. A história é um misterioso rio que avança dentro da noite e, dos seus tráficos íntimos, só sabemos as lendas.
 
 
Este conto faz parte de uma série que estou a publicar no suplemento Verão do DN, dedicado aos rios portugueses. Todas as histórias se baseiam em notícias reais, neste caso numa cimeira entre Salazar e Franco, no Minho, em 1950.

Um equívoco lamentável levou-me a copiar uma versão incompleta do conto. A versão final foi parcialmente escrita em página, pelo que a cópia que usei inicialmente não tinha o texto definitivo. Julgo ter feito a devida alteração.

1 comentário:

  1. "A história é um misterioso rio que avança dentro da noite e, dos seus tráficos íntimos, só sabemos as lendas." Um grande remate para um magnífico conto. Parabéns!

    ResponderEliminar