quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dicionário das Ideias Estreitas



H

Hábito (subst)- Aquilo que têm os outros, essas pessoas monótonas e enfadonhas, tão diferentes de nós, que somos sempre divertidos, espirituosos e criativos até mais não. Coisa aborrecida; negativa; mortal.
Hábito, outra palavra para a batina dos padres. Sobre ela especular sempre se não estarão nus lá por baixo e contar uma anedota que envolva padres e sexo.

Hospitalidade (subst) - Consta, entre os portugueses, que são considerados um povo muito hospitaleiro. Como só circula por cá não há ninguém que o desminta. A propósito, falar sempre da quantidade de comida servida nos restaurantes

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 19


Só a montanha viveu o bastante para escutar objectivamente o uivo de um lobo.


Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 18

Parece provável que o mau tempo seja o único assassino tão desprovido de humor e de sentido das proporções a ponto de matar um chapim.
(Foto: Naturlink)

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha , 1949

A dieta de Rita


Zangada, ela tinha olhares tiranos,
dizia o que lhe vinha à cabeça.
Passou-se isto há uma porrada de anos
ninguém espera que lhe aconteça.
A sinceridade pode causar danos,
mas Rita fazia sempre tiro à peça.

Tenho alma tranquila e quieta,
nas mulheres isso dá boa nota.
Mas a minha amada estava em dieta
Andava nervosa, toda espigadota.
Comíamos numa tasca discreta
E ela acabou tudo, pensei que era anedota.

Rita disse que eu era um fracassado
e olhei as escadinhas do Bairro Alto.
Foi assim, à bruta, tudo acabado.
Faltas-me, amor, protestei; não, não falto.
O meu sonho jazia arruinado
E, aqui, o tempo tem de dar um salto.



O amor devia ser simples, no fundo,
dois amantes alheados do mundo
Mas para mim foi um sopro, uma aragem
Falta-me fôlego, um pouco de coragem.

A taberna onde comíamos já não existe
quem a procura mais depressa desiste
É agora parte de um prédio devoluto
um entre muitos nesta cidade em luto


Sou um tolo, um parvo, um otário
Escusado procurarem no dicionário
Quero dizer que gastei a minha vida
Para o tempo me ganhar a corrida


Viver não é mais do que mistério
Andei como anda um surdo ou um cego
Ausente, esquecido, meio aéreo.
Muita raiva e dor não renego
Por um amor, o único que senti a sério
Afinal, tão preciso a magoar o ego


Vinte anos depois, nem a reconheci
Como se fosse um fantasma, ali estava
Anos a mais, menos segura de si
Contou que vivera fora e agora regressava
Perguntou-me o que eu fizera e menti
Também não acreditei no que me contava

Há um epílogo nesta história.
Com a idade, a minha alegria acabou,
as lembranças apagam-se da memória.
Ando por aqui, apenas nada mudou.
Mas agora cabe-me a cruel vitória
Já esquecia: a dieta dela não funcionou.

domingo, 25 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 17

Será a instrução, por acaso, um processo em que se troca a atenção à realidade por coisas de menor valor? Um ganso que fizesse essa troca depressa se tornaria um monte de penas.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

Pensar como uma Montanha 16

A nossa capacidade para percepcionar qualidade na natureza começa, tal como na arte, com o que tem beleza. Expande-se através de estádios sucessivos do belo até valores que a linguagem ainda não captou.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 16

Os pinheiros, como as pessoas, são difíceis de satisfazer no que toca às companhias, e não conseguem abstrair-se das suas simpatias e antipatias. Por isso há uma afinidade entre os pinheiros-brancos e as amoras, entre os pinheiros-vermelhos e a eufórbia em flor, entre os pinheiros-banksiana e o feto-doce.

ALdo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 15

Quando algum dos nossos remotos antepassados inventou a pá, também ele se tornou um dador: capaz de plantar uma árvore. E quando o machado foi inventado, tornou-se um tomador: podia abatê-la à machadada e reduzi-la a cavacos. Quem quer que seja proprietário da terra assumiu assim, quer o saiba ou não, as funções divinas de criar e destruir plantas.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Equinócio



A casa era igualzinha à minha, mas o chão tinha soalho flutuante escuro e nas paredes havia muito mais quadros e fotografias. Numa delas aparecia uma criança de cabelos loiros e olhos muito abertos, que identifiquei de imediato como a Luizinha, e a que tirei o pó com um dedo e dois valentes sopros.
O sofá estava coçado nos encostos e tinha uma cova no assento da ponta, onde ela se reclina a ler revistas ou a olhar o vazio.
A sala cheirava a chocolate, como se tivesse ficado acesa uma daquelas velas aromáticas. O que eu não dava por uma mousse! Espero que a Luizinha saiba cozinhar, que fast food não é nada saudável. É uma verdadeira praga, esta coisa do take away, se bem que dá jeito para comer sentado no sofá, frente à televisão. Liguei o aparelho dela – um velho LCD – e pus em mute. Na SIC Notícias falavam de nós, num directo junto ao portão de um dos institutos. Em rodapé corria «Mais de duzentos internados libertados esta manhã». «Suspeitos de comportamento amoral estão a ser deixados em casa». « No Jornal da Noite, entrevista exclusiva com a cineasta Raquel Freire – um dos internados de Beja».
Da cozinha chegava um apito constante, uma espécie de alarme. Devia ser o frigorífico a queixar–se da comida fora de prazo. Fui à janela para ver a minha casa. Os meus estores estavam todos levantados, e viam–se as paredes nuas. Por uma das portadas podia vislumbrar–se o tripé dos meus binóculos. A casa não parecia remexida, mas alguém foi arejá–la. Provavelmente a minha mãe, que é a única que tem uma chave.
O Outono chegava convicto e lavado. A rua estava cheia de folhas caídas, pintada de dourado duma ponta à outra. A lua já espreitava no meio de nuvens vagas, num céu plúmbeo que se confundia com a fachada dos prédios, mas acolhedor.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 14


Os actos de criação estão habitualmente reservados aos deuses e aos poetas, mas as pessoas mais humildes podem contornar esta restrição se souberem como. Para plantar um pinheiro, por exemplo, não é necessário ser deus nem poeta; apenas é necessária uma pá.

Aldo Leopold, Pensar como uma Montanha, 1949

domingo, 18 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 13


A única conclusão a que alguma vez cheguei é que amo todas as árvores, mas estou apaixonado pelos pinheiros.

sábado, 17 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 12


Sei de um quadro tão evanescente que raramente é visto sequer, excepto por algum veado vagabundo. É um rio quem maneja o pincel, e é o mesmo rio que, antes que eu possa trazer os meus amigos para verem o seu trabalho, o apaga para sempre da vista humana. Depois disso, o quadro existe apenas no olhar da minha mente.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 11


Os funcionários cadastrais são uns sujeitos dorminhocos, que nunca verificam os registos prediais antes das nove das manhã. (…) Com cadastro ou sem cadastro, é um facto que ao nascer do dia eu sou o único proprietário de todos os hectares que for capaz de percorrer.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 10


Quando tento lembrar-me das minhas mais antigas impressões, fico a pensar se o processo a que habitualmente se chama crescer não será de facto um processo de encolher; se a experiência, tão gabada pelas adultos como aquilo que falta às crianças, não será uma diluição progressiva das coisas essenciais do trivial da vida.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Dicionário das Ideias Estreitas



G

Gamar (Verbo)- Roubar, subtrair, retirar sem consentimento do proprietário
Diz-se de todas as pessoas ricas e políticos em geral que gamaram .
A palavra deve ser dita baixando o tom de voz, fazendo uma expressão de quem vai dizer um segredo e girando os dedos em espiral. Este movimento hábil da mão é, como se sabe, imprescindível a qualquer ladrão.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 9


A capacidade de apreender o valor cultural da natureza selvagem reduz-se, em última análise, a uma questão de humildade intelectual. O homem moderno de mente superficial, que perdeu o seu enraizamento na terra, julga que descobriu já o que é importante; ele é do género de se pôr a palrar de impérios, políticos ou económicos, que hão-de durar mil anos.

Diário de ideias soltas (5)



Transeuntes

O que fica da vida vai ficando
é encolher os ombros e ir andando.
O polícia suspira, não há nada para ver
circulem, circulem, vamos a mexer
e a multidão passa, deita a vista
olha com a curiosidade do turista.

O passeio compacto, é preciso paciência
e não esquecer os deveres da obediência.
Barulho frenético, a enorme agitação
todos calados, em vaga onda de emoção
e o agente continua a ladainha
vamos a andar, que a rua está cheiinha.

Circulem, vamos, que a cidade não pára
nem para ver um atropelado sem cara.
Acidente de tráfego à hora de ponta
mas continuar na vida é o que conta.



Também publicado aqui

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 8


A nossa sociedade do sempre-maior-e-sempre-melhor comporta-se hoje como um hipocondríaco de tal forma obcecado com a sua própria saúde económica que acabou por perder a capacidade de permanecer saudável.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 7


Uma virtude peculiar da ética da vida selvagem é que habitualmente o caçador não dispõe de uma plateia que aplauda ou desaprove a sua conduta. Sejam quais forem os seus actos, eles são ditados pela sua própria consciência e não por uma multidão de espectadores. Não é demais insistir na importância desse facto.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Diário de ideias soltas (2)


Ao ler uma História da China, de John Keay, deparei com a personagem do imperador Hongwu, ou Zhu Yuanzhang, que governou durante 30 anos, no século XIV. Zhu era um camponês e tomou o poder após uma revolta e a guerra civil que levou à queda da dinastia Yuan, consequência do caos que se seguiu à peste negra. O fundador da dinastia Ming é hoje visto pelos historiadores como um unificador que impôs a ordem no país. Todos os dias condenava pessoas à morte, mas o pormenor que mais me interessou foi o conceito de “execução até ao quinto grau”. Um dos métodos de matar os condenados era esquartejamento lento, mas este quinto grau não dizia respeito ao requinte na forma, mas sim à extensão da colheita. O ministro em causa chamava-se Hu Weiyong e os documentos sobreviventes dizem que teria sido demasiado poderoso, corrupto ou incompetente, não se sabe ao certo. Em 1380, este ministro foi condenado ao quinto grau, o que implicou a morte de 30 mil a 40 mil dos seus familiares, até ao quinto grau de parentesco. Segundo se conta, um confuciano escandalizado com estas prepotências apresentou-se perante o imperador e criticou-o. Vinha acompanhado do próprio caixão e, após terminar a sua crítica, deitou-se dentro dele. Impressionado com a coragem deste homem, o imperador, por uma vez, exerceu a clemência.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 6


Quem possuir um velho carvalho de grandes bolotas possui algo mais do que uma árvore. Possui uma biblioteca histórica e um lugar cativo no teatro da evolução.

Diário de ideias soltas (1)

Passeio breve. Muitos trabalhadores vieram de férias e o trânsito está outra vez caótico. Em três locais diferentes, pessoas discutiam. Uma rapariga gorda gritava para um velho, talvez com razão; sandália chã, como se usa agora, a blusa sem chegar à calça, mostrando um pneu de banha a nível da cintura. Um velho e uma velha sentados num dos novos bancos de jardim gritavam um com o outro: “Deixe-me falar”, explodiu ele, a certo ponto; não percebi o tema da discussão; quando reparei neles, aquilo continuava: iam ao fundo da rua, ele atrás dela; chegaram a um prédio e entraram.

Sol manso, ar de cristal, ocorreu-me isto:



Observo o esplendor do dia

Que passa em morna monotonia

Dois velhos discutem

Ela exige que a escutem

E diz ele, deixa-me falar

Não há meio daquilo acabar

Se houvesse só gente amável

O mundo seria mais suportável

Mas talvez fosse muito banal

Sempre a sorrir, sempre igual
 
também publicado aqui

domingo, 4 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 5

A canção de um rio significa em geral a música que as águas tocam tendo como instrumentos as rochas, as raízes e os rápidos. (…) Para ouvir nem que sejam umas poucas notas dessa canção, é preciso em primeiro lugar viver-se aqui por tempo prolongado, e aprender a conhecer o discurso das colinas e dos rios. (…) Cada rio canta a sua própria canção, mas na maior parte dos casos a canção foi desde há muito desfigurada pelas desarmonias provenientes dos maus tratos. (…) Existiram outrora homens capazes de habitar um rio sem romperem a harmonia da vida que nele vivia.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 4


Todas as pessoas desiludidas deveriam passar a

segunda semana de Maio numa mata de pinheiros
.

[Sobre a Primavera no Estado do Wiscousin, EUA]

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Pensar como uma Montanha 3


Todas as profissões recorrem a uma pequena manada de epítetos, e necessitam de pastagens onde eles possam correr livremente. Por isso, os economistas precisam de encontrar algures campo livre para o seu linguajar preferido, por exemplo 'submarginalidade', 'regressão' e 'rigidez institucional'.