domingo, 27 de fevereiro de 2011

Promessa 2 - Histórias recicladas


Ainda um dia aqui hei de contar, com tempo que agora não tenho, sobre certo operário da reciclagem de resíduos urbanos. Sobre como estava ele atarefado na linha de triagem de papel usado, certa manhã, quando um fragmento de manuscrito lhe aterra nas mãos. Algo mal rasgado, atirado para o lixo à pressa, desvendando ali inesperadamente, nos volteios do ciclo da celulose, um pedaço de história. Hei de contar como, sendo o papel colorido, rosado, o operário pôs em alerta máximo o seu sentido da visão e outros de que normalmente não se fala, e procurou sofregamente mais restinhos de folhas semelhantes, por entre o amontoado caótico que durante a manhã foi desfilando à sua frente. Como à saída para o almoço se lhe acumulavam no bolso do guarda-pó, em bolas e bolinhas de papel vincado, maltratado, sujo, despedaços do pensamento de alguém: “… o segredo é um fator de organização de qualquer sociedade e… “, “… a revelação da confidência alheia é sempre um momento de intensa emoção? Pois viciada nessa emoção, Laurinda dava à língua sem dó nem…”, “Sabendo ser a felicidade das coisas mais difíceis de entender, meteu-se à estrada p… “, “… tu hás de morrer ignorando muita coisa que te faria falta sab…”. Etc.
Bem, fica prometido. Posso adiantar que este operário (Celúlio Brito, já agora) sonhara em novo ser engenheiro florestal, projeto que a idade adulta transmutara em moderada frustração. Hei de contar como, no final dessa magnífica jornada em que o tapete sujo da triagem lhe foi oferecendo um puzzle improvável, ele mudou de ângulo a objetiva das aspirações, vendo-se momentaneamente como um distinto bibliotecário: As bibliotecas devem ser dos locais neste mundo onde um gajo tem menos chatices.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A Costureira sem Cabeça

Já está à venda nas livrarias o novo livro de Fernando Madaíl, um dos autores deste blogue. "A Costureira Sem Cabeça", edição da Oficina do Livro, é um romance breve (ou novela) sobre o 5 de Outubro de 1910, tendo por base leituras de jornais e muito trabalho de investigação. O autor consegue contar uma história simples, condensada, obtendo ritmo alucinante e humor permanente. A sociedade portuguesa é observada num só dia, sob múltiplos pontos de vista, mas com o eixo da narrativa centrado numa única personagem, a costureira Amélia, em torno da qual gira a inesgotável galeria de figuras lisboetas. As vozes deste coro vão comentando, na saborosa linguagem da época, os episódios da revolução.
Os capítulos são curtos e a acção está fragmentada, como se tudo decorresse numa espécie de filme antigo. Os pontos fortes da obra de estreia na ficção de Fernando Madaíl são sem dúvida a riqueza de expressões e de vocabulário; a perfeição do estilo, com imagens subtis e de bom gosto; e o registo linguístico da época, do qual o autor capta sobretudo o lado jocoso, incluindo a profusão de frases francesas (agora, usamos mais o inglês que ouvimos na TV).
"A Costureira Sem Cabeça" ajuda-nos a compreender melhor o tempo dos nossos avós e bisavós. O lançamento público será em Lisboa, esta quarta-feira, dia 23 de Fevereiro, no piso 7 de El Corte Inglés, às 18 e 30. Apresentação de Francisco José Viegas. Mais pormenores, aqui.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O fim feito princípio

Era virgem antes de a conhecer.


A música na acre respiração da telefonia,

longificando o mundo.

Uma chuva aromática e ela sobretudo o que restava de mim.


Eis o que ensinam as mulheres se nos amarmesmos,


a beber o corpo nas folhas de chá, a ler 
 
nas vísceras expostas de múltiplos futuros todos eles possíveis.

A desvendar a língua auriflamada.


Hoje restam-me loucuras mornas e repetições de mãos.

Desde então mudei muitas vezes de silêncios


mas recordo ainda o avisonoro cântico,

essa alegria húmida de fósforo e malaquite.


O fim feito princípio.





segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Coisas simples 1


Dizem que nunca escrevo coisas simples, as coisas simples são as mais bonitas, é bem verdade, vou escrever uma coisa simples:

Bicha do comboio à hora de ponta. A pessoa da frente, um rapaz com o cabelo penteado em rampa, avança um pequeno passo, achando-se melhor à beirinha do cais. A segunda pessoa, um tipo careca de ar feliz, levanta os olhos da revista de carros, alonga-os para um lado até ao fundo da estação, depois para o outro até embater no braço tatuado de uma rapariga da fila seguinte, e avança também o seu passo. A terceira, e a quarta, até à última pessoa dessa fila de onze, todas contribuem com o seu passinho automático para a onda silenciosa que em segundos se gerou e terminou. Neste contágio linear aparentemente simples deu-se uma revolução aberta: moléculas de ar que se revoltearam a cada deslocação, o oxigénio mobilizado para mover cada músculo a cada passo, o pó que se soltou invisivelmente das mangas e ombros de cada passageiro, partículas de pele morta tombadas das mãos de alguém que as esfregou com vigor, o sangue a bombear mais forte no senhor que, para seguir o da frente, precisou de se dobrar e apanhar a pasta de escritório do chão, os micróbios projectados para a atmosfera quando outro senhor aproveitou o seu passo para tossir, os movimentos de diafragma ligeiramente mais rápidos de um pequenito que, pela mão cansada da mãe, em vez de um passo deu um saltinho, metros e metros de ligações nervosas que compõem a vontade de dar um passo e depois a decisão de realmente o dar ou não - e sabe Deus que mais. Para não complicar, faço ouvidos moucos a dois ou três pensamentos interessantes que se elevaram de duas ou três cabeças, e sobretudo ignoro o pequenito, tratando-o aqui apenas como um grande salpico brotado da onda ali instalada.
Muita coisa, em quantidade, qualidade e profundidade, ocorreu ali, naquele conjunto. E, no entanto, tudo ficou na mesma.

Já está.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Obrigado pela vossa atenção


A coisa estoirou à bruta. Um berro inesperado, guinchos de sapatos de borracha no chão, dois corpos rodopiando em desordem. “Dá o telemóvel ao puto, cabrão”.
Na carruagem quase cheia houve um movimento de recuo, como uma onda a abandonar a praia, em fuga. No espaço subitamente alargado progredia uma luta de braços e pernas, de gritos abafados, torções, gemidos. Ombro contra ombro, como dois jogadores de râguebi à espera da bola, os dois homens empurravam-se e ao mesmo tempo agarravam-se pela roupa.
Fora do círculo, as pessoas acordavam da perplexidade, com um ar assustado. “Parece impossível, já não se está bem em lado nenhum”. Era um passageiro de óculos de aro fininho, que se refugiara junto aos bancos mais afastados, agarrando uma pasta com ambas as mãos.
Uma mulher negra, vasta, vestida de princesa africana, levantou-se do assento e foi caminhando, como uma soberana entediada, na direcção oposta à do desacato, esperando a próxima paragem.
Ao meu lado, discreta, uma velhota ajustou as abas do caso elegante. “Chamem o segurança”, disse ela baixinho. Não é provável que alguém tenha ouvido, mas foi nesse momento exacto que o rapaz de farda cinzenta abriu a porta que dava para a outra carruagem e entrou por ali fora, muito branco, de olhos arregalados, meio a gaguejar.
“Que é isto, vamos lá a parar com a confusão, ou tenho que puxar o alarme?”
Com os rostos congestionados, os dois homens que tinham estado a lutar  largaram-se repentinamente e encararam o segurança com ar furioso.
“Sai daqui, ó lingrinhas de merda”, gritou o maior dos dois, que tinha uma barba arruivada. E, com um gesto súbito, empurrou o segurança, que foi projectado contra a porta e ficou com a boina descomposta, muito puxada para trás, o que lhe dava um ar um pouco ridículo. O rapaz, que empalidecera ainda mais, afastou-se a esfregar o ombro. “Não me pagam para isto”, ia murmurando desalentado.
Os outros dois encararam-se de novo, mas o fulgor da luta esmorecera. Um deles deu uma gargalhada, inclinando-se para trás, com as mãos na cintura. Depois tirou um telemóvel do bolso e virou-se para um miúdo ainda imberbe, vestido de preto, com uma argola na orelha, que desde o início estivera ali parado de pé, a assistir a tudo, com um ar aborrecido. “Toma lá a merda do telemóvel, ó puto”, disse o ruivo, estendendo-lhe o aparelho. “E tu, ó lingrinhas, empresta aí a boina um coche”.
O segurança não se mexeu do canto onde se tinha refugiado, mas abriu muito os olhos de puro terror. Então o barbudo chegou-se a ele de um salto, arrancou-lhe a boina da cabeça e com uma voz de actor bem colocada, pôs-se a passá-la na frente dos passageiros, agradecendo a atenção.
“Estimado público, foi um prazer trazer até vós a nossa última criação teatral”, ia dizendo  enquanto passava devagar entre os bancos, estendendo o quico à esquerda e à direita.
As pessoas já sorriam e nas mãos surgiam moedas generosas que desapareciam logo a seguir dentro da boina. Depois, com gestos elásticos, o ruivo, o rival e o puto perfilaram-se no meio da carruagem e muito disciplinados puseram-se a fazer vénias em várias direcções, enquanto um aplauso, a princípio tímido, se propagava a toda a carruagem.
“Chega-te aqui, mano”, gritou a certa altura o ruivo para o segurança, mas ele não reagiu, parecia paralisado no seu canto.
O comboio, entretanto, abrandou, chegava à estação. Sempre fazendo vénias, a trupe aproveitou a deixa e saiu, mas o das barbas vermelhas, com um expressão indefinível no rosto, ainda fez um gesto galante de aplauso na direcção do segurança.
A velhota a meu lado sorria, com ar feliz. Quando o rapaz da farda passou por ela minutos mais tarde, já o comboio rolava de novo, enfiou-lhe discretamente uma moeda na mão. Muito aprumado, ele não se deteve, mas meteu disfarçadamente o dinheiro no bolso.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

As palavras perfumadas

Um vapor juvenil de erotismo, uma fragrância vadia de papoila, um cheiro forte de vinho velho – até o barbeiro Yákovlevich, esse personagem de Gogol que percorre Moscovo à procura de quem perdeu o nariz que ele encontrou, ou o perfumista Grenouille, essa criatura de imenso potencial olfativo saído da inventiva de Suskind, jamais hesitariam em demandar este Graal d’odores.
Nesta altura, em que se devem encher os tímpanos de Brahms ou de Bach, que o ano vai enjoar quase até à náusea o K. [de Köchel, o organizador do catálogo mozartiano] que antecede os números das obras do génio de Salzburgo, tal e qual como um cão com dono normalmente suja o passeio, podemos tentar pescar os leitores com os sentidos mais apurados. As mais férteis imaginações alegam que conseguem saborear ostras e vinhos que nunca saltam da página para a toalha, ou sentir os perfumes almiscarados ou silvestres que apenas existem em letra tipográfica, até mesmo distinguir as marcas de tabaco de cachimbo quando folheiam um romance sem figuras de fumo ou uma edição com ilustrações de qualquer descendente de Gustavo Doré.
Afinal, se o mais vulgar leitor é bem capaz de jurar que pode ver claramente as distintas cidades no romance do Calvino ou a bicharada do vasto bestiário espalhado nos versos do O‘Neill, porque não acreditar nessas narinas tão verdadeiras como a penca do florentino Pinóquio? E se ainda garante, com a autenticidade do negro sobre o claro ou o requinte heráldico do ouro sobre azul, e sem lhe crescer o apêndice nasal até àquela dimensão que Pascal atribuía a Cleópatra, que consegue ver as cores das vogais num poema de Rimbaud ou as flores a mudar de tonalidade lendo as palavras de Neruda, com o francês e o chileno a deleitarem-se nesse exercício de gozar daltónicos...
Neste cenário da fantasia dos leitores, em que se demanda um aroma do futuro como se fossemos alquimistas à antiga, então porque não embarcamos os sapatos, as cumplicidades, as memórias e vamos estender a cama no meio da auto-estrada como num filme do Godard, demandar uns genuínos moinhos de papel para a velha Mancha, embarcar nos cinéfilos aviões que partem daquela Casablanca de papelão ou servir peixes de lata num jantar d’odaliscas?
E, no entanto, por mais que se vá tricotando a prosa, sejamos sinceros: ao odor dos livros, misto de tinta fresca e mofo antigo, é sempre preferível o perfume de uma flor silvestre, de uma bebida espirituosa, da pele de uma mulher bonita.

Um frio de morte


Extraordinariamente escarlate, com a pele do tom da paprika madura, Támas Fafej deu um murro na mesa, fazendo tremer o candeeiro de petróleo que iluminava a taberna. Só então, os três camponeses, todos bastante bebidos, prestaram verdadeira atenção à pausa que o seu companheiro fizera, o tomar de fôlego antes de um discurso importante:
“Foi assim mesmo que aconteceu!”, exclamou Fajej, criando um silêncio teatral, que as badaladas das onze, vindas da torre da igreja, tornaram ainda mais dramático.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Música inesperada

Não ouvi logo a música. Afinal, estamos tão sintonizados para o ruído: as portas que batem e guincham, a trovoada surda do trânsito, apitos de máquinas, estrondos de coisas que se entre-chocam, música a gritar nos cafés, nas esplanadas, nos espaços públicos. Talvez por isso, porque estamos estamos sempre à espera de barulho, não ouvi logo a música. A suavidade sim, chegou até mim. Uma calma especial, misturada com o sol que entrava pela janela. Foi então que ouvi o dedilhado suave da guitarra, atrás de mim. Virei-me a medo, não fosse aquilo desaparecer de um momento para outro. O homem era real, e também a guitarra; e a suavidade de ambos sobrepunha-se ao ruído do comboio rolando sobre o metal dos carris e foi crescendo até só existir aquele dedilhado melodioso que dominava tudo. A música só terminou quando findou a viagem, mas no ar ficou ainda uma suavidade feita de silêncio e da memória da melodia nas cordas. Sem uma palavra, sem um gesto a mais, o homem guardou a guitarra e preparou-se para sair. Quis agradecer-lhe, mas não pude quebrar o silêncio. Agradeço-lhe agora. E espero que volte.