Um vapor juvenil de erotismo, uma fragrância vadia de papoila, um cheiro forte de vinho velho – até o barbeiro Yákovlevich, esse personagem de Gogol que percorre Moscovo à procura de quem perdeu o nariz que ele encontrou, ou o perfumista Grenouille, essa criatura de imenso potencial olfativo saído da inventiva de Suskind, jamais hesitariam em demandar este Graal d’odores.
Nesta altura, em que se devem encher os tímpanos de Brahms ou de Bach, que o ano vai enjoar quase até à náusea o K. [de Köchel, o organizador do catálogo mozartiano] que antecede os números das obras do génio de Salzburgo, tal e qual como um cão com dono normalmente suja o passeio, podemos tentar pescar os leitores com os sentidos mais apurados. As mais férteis imaginações alegam que conseguem saborear ostras e vinhos que nunca saltam da página para a toalha, ou sentir os perfumes almiscarados ou silvestres que apenas existem em letra tipográfica, até mesmo distinguir as marcas de tabaco de cachimbo quando folheiam um romance sem figuras de fumo ou uma edição com ilustrações de qualquer descendente de Gustavo Doré.
Afinal, se o mais vulgar leitor é bem capaz de jurar que pode ver claramente as distintas cidades no romance do Calvino ou a bicharada do vasto bestiário espalhado nos versos do O‘Neill, porque não acreditar nessas narinas tão verdadeiras como a penca do florentino Pinóquio? E se ainda garante, com a autenticidade do negro sobre o claro ou o requinte heráldico do ouro sobre azul, e sem lhe crescer o apêndice nasal até àquela dimensão que Pascal atribuía a Cleópatra, que consegue ver as cores das vogais num poema de Rimbaud ou as flores a mudar de tonalidade lendo as palavras de Neruda, com o francês e o chileno a deleitarem-se nesse exercício de gozar daltónicos...
Neste cenário da fantasia dos leitores, em que se demanda um aroma do futuro como se fossemos alquimistas à antiga, então porque não embarcamos os sapatos, as cumplicidades, as memórias e vamos estender a cama no meio da auto-estrada como num filme do Godard, demandar uns genuínos moinhos de papel para a velha Mancha, embarcar nos cinéfilos aviões que partem daquela Casablanca de papelão ou servir peixes de lata num jantar d’odaliscas?
E, no entanto, por mais que se vá tricotando a prosa, sejamos sinceros: ao odor dos livros, misto de tinta fresca e mofo antigo, é sempre preferível o perfume de uma flor silvestre, de uma bebida espirituosa, da pele de uma mulher bonita.
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