segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Coisas simples 1
Dizem que nunca escrevo coisas simples, as coisas simples são as mais bonitas, é bem verdade, vou escrever uma coisa simples:
Bicha do comboio à hora de ponta. A pessoa da frente, um rapaz com o cabelo penteado em rampa, avança um pequeno passo, achando-se melhor à beirinha do cais. A segunda pessoa, um tipo careca de ar feliz, levanta os olhos da revista de carros, alonga-os para um lado até ao fundo da estação, depois para o outro até embater no braço tatuado de uma rapariga da fila seguinte, e avança também o seu passo. A terceira, e a quarta, até à última pessoa dessa fila de onze, todas contribuem com o seu passinho automático para a onda silenciosa que em segundos se gerou e terminou. Neste contágio linear aparentemente simples deu-se uma revolução aberta: moléculas de ar que se revoltearam a cada deslocação, o oxigénio mobilizado para mover cada músculo a cada passo, o pó que se soltou invisivelmente das mangas e ombros de cada passageiro, partículas de pele morta tombadas das mãos de alguém que as esfregou com vigor, o sangue a bombear mais forte no senhor que, para seguir o da frente, precisou de se dobrar e apanhar a pasta de escritório do chão, os micróbios projectados para a atmosfera quando outro senhor aproveitou o seu passo para tossir, os movimentos de diafragma ligeiramente mais rápidos de um pequenito que, pela mão cansada da mãe, em vez de um passo deu um saltinho, metros e metros de ligações nervosas que compõem a vontade de dar um passo e depois a decisão de realmente o dar ou não - e sabe Deus que mais. Para não complicar, faço ouvidos moucos a dois ou três pensamentos interessantes que se elevaram de duas ou três cabeças, e sobretudo ignoro o pequenito, tratando-o aqui apenas como um grande salpico brotado da onda ali instalada.
Muita coisa, em quantidade, qualidade e profundidade, ocorreu ali, naquele conjunto. E, no entanto, tudo ficou na mesma.
Já está.
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