sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Obrigado pela vossa atenção


A coisa estoirou à bruta. Um berro inesperado, guinchos de sapatos de borracha no chão, dois corpos rodopiando em desordem. “Dá o telemóvel ao puto, cabrão”.
Na carruagem quase cheia houve um movimento de recuo, como uma onda a abandonar a praia, em fuga. No espaço subitamente alargado progredia uma luta de braços e pernas, de gritos abafados, torções, gemidos. Ombro contra ombro, como dois jogadores de râguebi à espera da bola, os dois homens empurravam-se e ao mesmo tempo agarravam-se pela roupa.
Fora do círculo, as pessoas acordavam da perplexidade, com um ar assustado. “Parece impossível, já não se está bem em lado nenhum”. Era um passageiro de óculos de aro fininho, que se refugiara junto aos bancos mais afastados, agarrando uma pasta com ambas as mãos.
Uma mulher negra, vasta, vestida de princesa africana, levantou-se do assento e foi caminhando, como uma soberana entediada, na direcção oposta à do desacato, esperando a próxima paragem.
Ao meu lado, discreta, uma velhota ajustou as abas do caso elegante. “Chamem o segurança”, disse ela baixinho. Não é provável que alguém tenha ouvido, mas foi nesse momento exacto que o rapaz de farda cinzenta abriu a porta que dava para a outra carruagem e entrou por ali fora, muito branco, de olhos arregalados, meio a gaguejar.
“Que é isto, vamos lá a parar com a confusão, ou tenho que puxar o alarme?”
Com os rostos congestionados, os dois homens que tinham estado a lutar  largaram-se repentinamente e encararam o segurança com ar furioso.
“Sai daqui, ó lingrinhas de merda”, gritou o maior dos dois, que tinha uma barba arruivada. E, com um gesto súbito, empurrou o segurança, que foi projectado contra a porta e ficou com a boina descomposta, muito puxada para trás, o que lhe dava um ar um pouco ridículo. O rapaz, que empalidecera ainda mais, afastou-se a esfregar o ombro. “Não me pagam para isto”, ia murmurando desalentado.
Os outros dois encararam-se de novo, mas o fulgor da luta esmorecera. Um deles deu uma gargalhada, inclinando-se para trás, com as mãos na cintura. Depois tirou um telemóvel do bolso e virou-se para um miúdo ainda imberbe, vestido de preto, com uma argola na orelha, que desde o início estivera ali parado de pé, a assistir a tudo, com um ar aborrecido. “Toma lá a merda do telemóvel, ó puto”, disse o ruivo, estendendo-lhe o aparelho. “E tu, ó lingrinhas, empresta aí a boina um coche”.
O segurança não se mexeu do canto onde se tinha refugiado, mas abriu muito os olhos de puro terror. Então o barbudo chegou-se a ele de um salto, arrancou-lhe a boina da cabeça e com uma voz de actor bem colocada, pôs-se a passá-la na frente dos passageiros, agradecendo a atenção.
“Estimado público, foi um prazer trazer até vós a nossa última criação teatral”, ia dizendo  enquanto passava devagar entre os bancos, estendendo o quico à esquerda e à direita.
As pessoas já sorriam e nas mãos surgiam moedas generosas que desapareciam logo a seguir dentro da boina. Depois, com gestos elásticos, o ruivo, o rival e o puto perfilaram-se no meio da carruagem e muito disciplinados puseram-se a fazer vénias em várias direcções, enquanto um aplauso, a princípio tímido, se propagava a toda a carruagem.
“Chega-te aqui, mano”, gritou a certa altura o ruivo para o segurança, mas ele não reagiu, parecia paralisado no seu canto.
O comboio, entretanto, abrandou, chegava à estação. Sempre fazendo vénias, a trupe aproveitou a deixa e saiu, mas o das barbas vermelhas, com um expressão indefinível no rosto, ainda fez um gesto galante de aplauso na direcção do segurança.
A velhota a meu lado sorria, com ar feliz. Quando o rapaz da farda passou por ela minutos mais tarde, já o comboio rolava de novo, enfiou-lhe discretamente uma moeda na mão. Muito aprumado, ele não se deteve, mas meteu disfarçadamente o dinheiro no bolso.

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