terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Um frio de morte


Extraordinariamente escarlate, com a pele do tom da paprika madura, Támas Fafej deu um murro na mesa, fazendo tremer o candeeiro de petróleo que iluminava a taberna. Só então, os três camponeses, todos bastante bebidos, prestaram verdadeira atenção à pausa que o seu companheiro fizera, o tomar de fôlego antes de um discurso importante:
“Foi assim mesmo que aconteceu!”, exclamou Fajej, criando um silêncio teatral, que as badaladas das onze, vindas da torre da igreja, tornaram ainda mais dramático.
“Vocês, os jovens”, e a voz de ébrio era acentuada pela expressão de desprezo, “não sabem o que foi a guerra e o que lá sofremos”.
Aquilo era de súbito mais credível. Fafej tinha fama de cabeçudo, de homem amargo e quezilento, que dava pontapés nos cães que passavam e insultava os trabalhadores que iam para a faina. Nunca tirava o chapéu quando passava o conde Termekenyi, o proprietário da aldeia. Fafej era um trabalhador dos mais pobres, a mulher cansara-se das pancadas que levava e abandonara-o. Por isso, ele vivia sozinho, sem ninguém com quem falar, cada vez mais furioso com a vida alegre dos outros.
E, agora, pela primeira vez, aqueles rapazes joviais, que não sabiam nada do mundo, começavam a acreditar na história que ele lhes contara, de como fora feito prisioneiro durante a ofensiva Brusilov e levado com metade do seu batalhão para o interior da Rússia, onde ficara prisioneiro durante dois anos. Era inverno, ao estalar a revolução em Petrogrado. Os prisioneiros austro-húngaros tinham sido reunidos numa aldeia perto do caminho de ferro transiberiano e, um dia, vieram as tropas brancas e levaram muitos novos recrutas. Um deles era Fafej.

“A imensa distância”, disse Fafej, a babar-se, pensativo. Engoliu mais palinka, como se precisasse de fogo para soltar a língua. “O rapaz chamava-se Pavlik e era meu amigo”. Na névoa do álcool, lembrou-se que nunca percebera aquela amizade. Era um rapazinho imberbe e magro, que mal sabia carregar a espingarda. Espero que não sejam fuzilados, dissera Pavlik, uma vez, para o confortar. Os guardas brancos encostavam-se à parede (estavam presos num mosteiro de pedra grossa) e desesperavam da sua sorte, temendo o interrogatório dos vermelhos; Fafej era o único húngaro sobrevivente, mal arranhava o russo, e Pavlik, que mal sabia pegar na espingarda, jurava que seria uma pena se ele fosse fuzilado...
“Pavlik era meu amigo, mas tinham-lhe dado uma ordem”. Fafej parou de novo, como se procurasse as palavras certas. E a memória buscava os rastos do que acontecera 15 anos antes, apesar da palinka fazer oscilar o mundo e, com ele, a fraca chama do candeeiro de petróleo, a largar sombras na parede vazia.
“Fomos até à orla da floresta, onde Pavlik deveria escolher um sítio bom para me fuzilar. Os comunistas não tinham munições e muitos brancos foram mortos à pancada. Eu tinha sorte, porque uma bala é mais rápido”.
Os dois camponeses e o forasteiro tinham mergulhado num silêncio alarmado, sabendo que o álcool nunca mente. Bebiam cada palavra.
“Pavlik apontou-me a arma e eu disse-lhe que éramos amigos. Não vais disparar, disse eu. Virei-lhe as costas e caminhei para a floresta, muito devagarinho. E ele gritou, pára ou disparo, e eu continuei, sentindo nas minhas costas o terrível frio do cano da espingarda, a gelada bala que me iria tirar a vida. O frio de morte. E aquela espera durou uma eternidade”.

Fafej ergueu-se e disse de súbito, triunfante, a voz arrastada:
“Continuei a caminhar e estava entre as árvores. Depois, caminhei sempre, até encontrar um comboio. Demorei seis meses a andar cinco mil quilómetros. E, agora, todas as noites sinto ainda aquele frio nas minhas costas. Por isso bebo.”
Fafej era um homem enorme e cambaleou, como uma árvore partida, na direcção da porta. Fora da taberna, acumulara-se neve e assobiava o vento forte. O camponês distinguiu na escuridão a vaga sombra da torre da igreja e avançou pela rua. Estava cansado e confuso. Cantarolou uma cançoneta russa que aprendera, mas o efeito da palinka começou a dissipar-se e uma facada de frio entrou-lhe pelo casaco. Era uma noite de tempestade e gelo. As casas eram vultos que se erguiam como fantasmas e o caminho turvara-se. Então, nas suas costas, ouviu a voz trémula: “Pára ou disparo”. E o frio da morte tocou de novo nas costas de Fafej, num único ponto, o do medo e de uma fúria que se dissipava, pois que o mundo oscilava à sua volta, embora só ali houvesse a ríspida voz do vento e os múltiplos fantasmas das suas angústias, soltando-se como animais na puszta, a erguerem com as suas patas endiabradas uma poalha de geada que o envolvia, protectora.

Invadido por um imenso medo, por uma desistência repentina, Fafej ficou parado naquele caminho sem saída. Talvez cinco minutos de pé, num terror solitário: e o ponto gelado crescia nas suas costas e Pavlik da noite repetia a ordem e, então, como uma árvore abatida, Fafej caiu na cama de neve e adormeceu.

Este conto de lajos Kormányos já tem uns aninhos. A pintura é de Lászlo Mednyánszky (1852-1919)

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