terça-feira, 3 de maio de 2011

Hóspede

Eu estava a conversar com um jornalista (penso que era português) quando se aproximou de nós aquela personagem (chamo-lhe assim porque já não sei até que ponto faz parte da minha memória imaginada). Era um tipo moreno e afável, vestido à ocidental, de espessa barba preta. Curiosamente, muito parecido com o meu colega (eles tinham outra semelhança, ambos falavam bem inglês).
“Chamo-me Doutor Aziz”, disse o intruso, insistindo naquele doutor, como se fizesse parte do nome.
Conversámos de forma intermitente ao longo da noite. Circulávamos pela festa e, por vezes, reencontrávamo-nos e trocávamos umas palavras.

Existir aquela festa era já por si uma estranheza. Organizada por um dos homens mais ricos de Islamabad, obrigara a certa logística reunir na casa luxuosa tantos correspondentes e repórteres, todos atraídos nessa semana ao Paquistão pela iminência de um conflito no país vizinho.
“Sabe, meu caro Rick, quando for para o interior deste país e alguém lhe disser ‘É meu hóspede’ não terá mais nada a recear”. O doutor Aziz tinha um copo de sumo na mão e, ao dizer-me aquilo, ficou algum de tempo à espera, a olhar para mim.
“Se alguém lhe disser isso em Nova Iorque”, respondi, “veja se ainda tem a sua carteira”. Quis fazer humor. O doutor Aziz riu-se com educação, mas pressenti que ficara desiludido comigo.

Circulámos mais um pouco. Meia hora depois encontrei-o a conversar com colegas de outros jornais. Um deles dissera que os fundamentalistas iam tomar conta do Paquistão (julgo que foi provocação, para motivar uma resposta, mas era um sítio bizarro para fazer tal afirmação). E o doutor Aziz, com tranquilidade, lá explicou que não era assim, que isso não ia acontecer:
“Julgam que somos monstros?”, perguntou ele, no meio da discussão, mas sem perder a sorridente paciência.
E, quando nos despedimos, segurou-me longo tempo a mão e disse:
“Seja bem-vindo no meu país. Você, Rick, é meu hóspede”.

Esqueci a simpática despedida. Esqueci a festa, que não era mais do que uma agradável distracção no meu trabalho.
Três dias depois, o jornal mandou-me fazer uma reportagem sobre uma manifestação anti-ocidental. Nas ruas estreitas desfilavam milhares de populares e aquilo durou horas, com berraria e protestos. A princípio, a confusão não me pareceu mais intensa do que ver compatriotas meus a saírem de um jogo de basebol. Mas, às tantas, quando se repetiam palavras de ordem mais acesas, porque estava um calor terrível, houve como que um tumulto, a multidão perdera as estribeiras, ganhara autonomia, força própria, como um rio fora das margens. Corria-se em múltiplas direcções e as massas humanas chocavam entre si. Comecei a ver caras contorcidas de raiva e a ouvir gritos incendiados. Por momentos, senti que estava em perigo. 

Até que um homem me puxou por uma porta, salvando-me da turba. Foi tudo confuso e rápido. Saí da luz para a penumbra. Ele vestia a longa shawaz branca, como todos os outros, colete elegante. Tinha barba negra, espessa e, quando o observei melhor, reconheci o doutor Aziz.
“Que está aqui a fazer, Aziz?” perguntei, sem esconder a minha surpresa.
“Não me chamo Aziz”, disse o desconhecido.
Observei-o de mais perto e cada vez mais me parecia o homem que eu conhecera na festa:
“Mas é você, certamente...”
“Claro que sou eu”, riu-se o desconhecido. “Mas chamo-me Daoud”.
E, no entanto, era igual ao outro. Quando a manifestação acalmou, despedimo-nos: “Você é meu hóspede”, disse ele. E não o vi mais.

Nem sequer posso afirmar que isto seja uma história. A tarefa de um repórter é a de dar sentido ao mundo que observa. Mas se o mundo ganha sentido e a história direcção, então a minha tarefa deveria ser a de encontrar aqui uma determinada ordem. Embora os tenha visto, nem sei se Aziz e Daoud existiram mesmo ou se tiveram existência separada, pois compreendo agora que a vida não passa de um vasto conjunto de factos cuja essência e verdade nos escapam a cada momento.  
 
(Este conto inspirado em coisas vividas foi escrito e publicado num blogue antigo, Prazeres Minúsculos)

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