Como o amor, ou a transcendência, a felicidade escapa a definições e, tantas vezes, escapa-se-nos ela própria também. Íntima e subjectiva, fugidia na essência, ela é algo mais do que bem-estar e tranquilidade, com todas as suas químicas cerebrais, e não tem apenas uma dimensão pessoal: aquela de que todos podemos falar, com palavras mais ou menos vagas, mais ou menos incertas. A felicidade também tem uma dimensão colectiva e política, e olhar esta realidade complexa de um ângulo diferente pode dar pistas para uma nova reflexão sobre ela, que inclua todas as suas dimensões – individual e subjectiva, colectiva e política. Os estudos da psicologia positiva têm-no feito nos últimos dez anos, com resultados que nos provocam e interpelam. Foi isso que ouvi há dias numa excelente conferência da psicóloga e professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, Helena Águeda Marujo, em Sintra. Porque contêm sementes que podem ajudar a pensar – e a concretizar, quem sabe – sociedades mais harmoniosas e solidárias, com cidadãos mais conscientes e interventivos, mais críticos dos poderes discricionários e também menos egoístas, deixo aqui algumas das ideias que ali se debateram.
A conferência não nasceu do nada. Foi uma iniciativa do Grupo 19 de Sintra, da Amnistia Internacional Portugal (AI) – comemoram-se este ano os 50 anos da criação da AI – e o tema, “Os Direitos Humanos como pressuposto da felicidade”, pretendia justamente algo novo, ao propôr esta análise conjunta.
Para a Amnistia, que baseia a sua filosofia de actuação na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a garantia e cumprimento integral dos direitos ali consagrados são pressuposto obrigatório da felicidade. Num futuro não muito distante, talvez venha a ser necessário incluir a felicidade na Declaração, enquanto direito de cada um nós. Não se riam, não é uma ideia absurda. Há juristas que o defendem há anos.
E o que diz a psicologia sobre tudo isto? Até muito recentemente, quase nada, porque a felicidade não era estudada pela ciência. Mas isso alterou-se na última década, com a psicologia positiva, que conseguiu operacionalizar o conceito, de forma a poder estudá-la de forma séria e objectiva. E com isso a psicologia descobriu uma série de coisas interessantes, curiosas, e até, em alguns casos paradoxais em relação à vivência da felicidade. Por exemplo – e isto está desde logo relacionado com direitos humanos – o sentimento de bem-estar (e a auto-avaliação da experiência da felicidade) é proporcional ao sentimento de autonomia e de auto-controlo sobre a própria vida, o que envolve uma cascata de direitos consagrados na Declaração: liberdade de expressão, de associação e de mobilidade, direito ao trabalho e por aí fora. Numa realidade de sinal contrário, o desemprego revela-se uma das experiências mais devastadoras a nível psicológico, comparável, por exemplo, à da viuvez, como explicou a conferencista. Algo que dá que pensar, numa altura os níveis de desemprego acabam de atingir em Portugal a marca histórica de 11,1%, com mais de 600 mil desempregados.
Ao nível colectivo e político, há muitas reflexões a fazer sobre o tema da felicidade. Nos dados dos inquéritos que avaliam o nível de felicidade dos povos, Portugal surge como o país da OCDE (que inclui 30) com o mais alto índice de desconfiança dos cidadãos pelos seus parceiros. Porquê? Não se sabe exactamente, mas a vida colectiva atribulada, os problemas sociais e políticos que parecem não ter solução à vista (o desemprego outra vez?) e a desigualdade social crescente que atinge a sociedade portuguesa estão ccom certeza relacionados com este dado particular revelado pelos inquéritos dos psicólogos.
Em relação aos países, a auto-avaliação do grau de felicidade é, por outro lado, bastante elevada na América Latina, tendo em conta os altos índices de pobreza ou de violência que assolam essas sociedades. Um paradoxo, para já, sem grandes explicações.
Pelo contrário, nas sociedades da abundância e do desperdício, onde o consumo se tornou uma espécie de religião, os níveis de felicidade não cresceram proporcionalmente ao aumento de conforto e dos bens materiais. Um certo vazio espiritual e uma incapacidade de encontrar sentido para vida, reforçados por muitas solidões individuais, podem ajudar a compreender esta outra realidade. Mas como explicou Helena Marujo, estes estudos estão a começar. Para abordar algumas destas questões na sua dimensão colectiva e política, a ciência que estuda a felicidade – a psicologia positiva – terá ainda de forjar novos instrumentos de análise. E organizações como a AI, enraizadas na sociedade civil e detentoras de uma filosofia de acção e de um corpo de teoria política (em sentido lato) sofisticado, poderão até dar aí uma ajuda. Talvez esta conferência tenha sido um primeiro passo nesse sentido.
Em relação aos países, a auto-avaliação do grau de felicidade é, por outro lado, bastante elevada na América Latina, tendo em conta os altos índices de pobreza ou de violência que assolam essas sociedades. Um paradoxo, para já, sem grandes explicações.
Pelo contrário, nas sociedades da abundância e do desperdício, onde o consumo se tornou uma espécie de religião, os níveis de felicidade não cresceram proporcionalmente ao aumento de conforto e dos bens materiais. Um certo vazio espiritual e uma incapacidade de encontrar sentido para vida, reforçados por muitas solidões individuais, podem ajudar a compreender esta outra realidade. Mas como explicou Helena Marujo, estes estudos estão a começar. Para abordar algumas destas questões na sua dimensão colectiva e política, a ciência que estuda a felicidade – a psicologia positiva – terá ainda de forjar novos instrumentos de análise. E organizações como a AI, enraizadas na sociedade civil e detentoras de uma filosofia de acção e de um corpo de teoria política (em sentido lato) sofisticado, poderão até dar aí uma ajuda. Talvez esta conferência tenha sido um primeiro passo nesse sentido.
Imagem: Sara Sousa
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