quarta-feira, 25 de maio de 2011

Descobrir Carlos de Oliveira



Naquele Verão fomos muitas vezes para junto do mar. Levámos poemas que líamos em voz alta até nos perdermos um no outro.
Em Setembro partimos em direcção às praias rochosas do Sul. Ali, num daqueles instantes em que tudo ao nosso redor parecia feito de e para o silêncio, abri, pela primeira vez na vida, um livro de Carlos de Oliveira.Baixei os olhos e li:

Estalactite

I-O céu calcário
duma colina oca,
donde morosas gotas
de água ou de pedra
hão-de-cair
daqui a alguns milénios
e acordar
as tênues flores
nas corolas de cal
tão próximas de mim
que julgo ouvir,
filtrado pelo túnel
do tempo, da colina,
o orvalho num jardim.
II-Imaginar
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota
nas flores antecipadas.
(…)

Mas logo desisti da leitura com medo de perder o encanto daquela luz marítima.
Ou, talvez, com medo de te perder.
Como se intuísse que ela, como nós, era fátua. Que ela, como nós, duraria apenas até ao fim do Verão.Por isso fechei o livro.

Só hoje, tanto tempo depois, volto às páginas de "Trabalho Poético". Olho para aqueles amantes que um dia fomos e, agora devagar, agora sem medo leio-lhes:

MUSGO

Dir-se-á mais tarde;
por trémulos sinais de luz
no ocaso quase obscuro;
se os templos contemplando
estes currais sem gado
ruíram de pobreza.

Dir-se-á depois
por púlpitos postos em silêncio;
peso também a decompor-se
no mesmo pouco som;
se desaba o desenho
da nave antes de fermentar
a cor da sua pedra,
como fermentam leite e lã
de ovelhas mais salinas.

Dir-se-á por fim
que nenhum tempo se demora
na rosácea intacta;

e talvez
que só o musgo dá;
em seu discurso esquivo
de água e indiferença;
alguma ideia disto.

[ Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003 ]

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