Viu-os de longe, meio-trôpegos, a descer da carrinha. “Vamos a isto”, pensou. Elegante nos sapatos de salto alto cor de cinza, saia escura e blusa azul-petróleo, Marta Luz avançou para a porta envidraçada.
Lá vinham eles, naquela lentidão de velhos. Observou o seu vagar de rebanho, alguns apoiados em bengalas, um ou outro mais curvado. Pouco importava, ia ser rápido. Davam uma volta pela exposição, tomavam uns sumos e comiam uns bolos, a televisão fazia o lançamento do projecto e toda a gente ficava a ganhar. O lar mostrava iniciativa, a câmara apoiava e o museu conquistava novos públicos. E, já agora, apareciam nas notícias.
O director do lar, um antigo clínico aposentado, de porte aristocrático, mostrara-se encantado. “Inclusivamente, temos cá uma senhora que pinta umas naturezas mortas muito coloridas, e que é muito popular entre os pensionistas. Eles vão gostar, não têm assim tantas ocasiões para dar asas à veia estética”, dissera o velho Sepúlveda. Marta julgou ouvir ali uma ponta de ironia. Ia encrespar-se, mas em vez disso, suavizou a voz. “Claro, doutor Sepúlvada, isto é feito a pensar neles”. Sorriram ambos. Entendiam-se.
Os velhotes já vinham entrando, pareciam contentes, e ela dava-lhes as boas-vindas, distribuindo-lhes uma folha com a lista dos quadros na exposição, a que tinham dado o título +Cores+Vida. Um jogo de palavras que considerara inteligente e que resumia na perfeição o essencial: juntar os contemporâneos em torno do tema singular “muita cor, muita vida”. Os velhotes iam dar uma ajuda na divulgação.
Mas eles eram mais lentos do que previra. Alguns viam mal e aproximavam muito o rosto das telas. E se um deles tombasse para cima do quadro, ou estragasse os óleos e os acrílicos com a respiração demasiado próxima? “Ou baba, que horror”, pensou.
“Por favor, não se cheguem tanto aos quadros”, disse ela, elevando um pouco a voz, mas sem deixar de sorrir. “Vêem-se melhor de uma certa distância, ora reparem”. Recuou uns passos e fez uma expressão atenta, olhando as telas.
Os velhotes seguiram-lhe o exemplo, o que gerou uma movimentação inesperada e desorganizou a visita durante alguns minutos. Só um homem alto, de melena branca pelos ombros, não se mexeu. Mantinha o rosto pregado numa das telas, e ficou assim até que um dos outros lhe deu um berro ao ouvido.
Marta movia-se de quadro em quadro o mais depressa que podia, arrastando atrás de si o grupo, saltou mesmo dois deles, para tentar abreviar a visita, mas sem grande sucesso.
O pessoal da televisão tinha chegado entretanto e já estava a fazer imagens. Marta deitou-lhes um olhar rápido, endireitou mais as costas e pôs-se a falar sobre vida e cores, e sobre a bela colecção de telas que tinham conseguido reunir ali “Um acontecimento plástico único, é um prazer ter-vos aqui”, disse ela, lançando sorrisos à esquerda e à direita.
Tinham chegado, finalmente, ao átrio. A um canto, esperava-os um cavalete com os sumos e os bolos e, ao convite de Marta, o grupo encaminhou-se para lá. Ela então distendeu-se um pouco. Estavam a ir bem, em breve aquilo estaria terminado.
Nesse momento, uma das pensionistas abeirou-se de Marta, carregando a custo um grande embrulho, de forma achatada, que alguém tinha acabado de lhe entregar. “Doutora Marta,”, chamou ela, “uma lembrança nossa para o museu. Obrigada pela tarde inesquecível”. Os outros tinham-se aproximado satisfeitos.
Marta corou um pouco, fez um gesto de agradecimento e desembrulhou o objecto. Com um sorriso, revelou então um quadro, desencadeando um aplauso entre os velhotes, e agradeceu “em seu nome próprio e do museu”. Pelo canto do olho percebeu que o câmara tinha apanhado tudo. Maravilha.
“Vai expô-lo junto dos outros na galeria?” A jornalista aproximara-se de microfone na mão.
Apanhada de surpresa, Marta vacilou um momento, mas recompôs-se imediatamente. “Essa decisão cabe ao senhor comissário de exposições, certamente vamos discutir o assunto entre nós”.
Satisfeita, a rapariga rodopiou e apontou o microfone à velhota que entregara o quadro. “Qual é mensagem deste quadro para o museu?”
“Sabe, fiz isto com as cores que lá tinha. Queria pintar umas rosas iguais às que temos no jardim, mas não tinha cor-de-rosa, por isso usei um amarelo que me tinha sobrado de outras pinturas. Mensagem não pus nenhuma. Isto foi só para agradecer à senhora doutora”, respondeu a velhota, com um brilho nos olhos.
A jornalista procurou outro pensionista. O da melena, decidiu. Esse até tinha um ar de artista. “De que gostou mais na exposição? ”
O velhote sorriu-lhe. “Olhe, menina, gostei muito do sumo de laranja. Lá no lar não nos dão disto ao lanche”. A rapariga olhou para o câmara e ele percebeu. Estava feito, era tempo de ir..
A equipa saiu apressada, os velhotes lá se foram também, no seu passo vagaroso. Marta olhou em volta, no átrio mergulhado em silêncio, achou que tinha corrido bem. Enfim, não tinha corrido mal.
“Doutora Marta, o que faço ao quadro?”. Era a voz do Mateus, o funcionário da recepção. Ela respondeu-lhe, distraída. “Ó Mateus, se o quiser, leve-o”, e encaminhou-se ligeira, para o gabinete. Ainda precisava de enviar uns emails.
Mateus observou a imagem na tela. Tinha umas rosas de uma cor estranhamente viva, um amarelo intenso, quase eléctrico, que prendia o olhar e despertava uma ânsia qualquer. Lembrou-lhe vagamente as flores de um quadro famoso, mas este tinha qualquer coisa que não sabia definir. Como se as flores tivessem desabrochado naquele momento, na primeira luz da manhã. Cuidadosamente, voltou a embrulhar o quadro. Ia levá-lo, sim. Devia ficar bem na sala.
Lá vinham eles, naquela lentidão de velhos. Observou o seu vagar de rebanho, alguns apoiados em bengalas, um ou outro mais curvado. Pouco importava, ia ser rápido. Davam uma volta pela exposição, tomavam uns sumos e comiam uns bolos, a televisão fazia o lançamento do projecto e toda a gente ficava a ganhar. O lar mostrava iniciativa, a câmara apoiava e o museu conquistava novos públicos. E, já agora, apareciam nas notícias.
O director do lar, um antigo clínico aposentado, de porte aristocrático, mostrara-se encantado. “Inclusivamente, temos cá uma senhora que pinta umas naturezas mortas muito coloridas, e que é muito popular entre os pensionistas. Eles vão gostar, não têm assim tantas ocasiões para dar asas à veia estética”, dissera o velho Sepúlveda. Marta julgou ouvir ali uma ponta de ironia. Ia encrespar-se, mas em vez disso, suavizou a voz. “Claro, doutor Sepúlvada, isto é feito a pensar neles”. Sorriram ambos. Entendiam-se.
Os velhotes já vinham entrando, pareciam contentes, e ela dava-lhes as boas-vindas, distribuindo-lhes uma folha com a lista dos quadros na exposição, a que tinham dado o título +Cores+Vida. Um jogo de palavras que considerara inteligente e que resumia na perfeição o essencial: juntar os contemporâneos em torno do tema singular “muita cor, muita vida”. Os velhotes iam dar uma ajuda na divulgação.
Mas eles eram mais lentos do que previra. Alguns viam mal e aproximavam muito o rosto das telas. E se um deles tombasse para cima do quadro, ou estragasse os óleos e os acrílicos com a respiração demasiado próxima? “Ou baba, que horror”, pensou.
“Por favor, não se cheguem tanto aos quadros”, disse ela, elevando um pouco a voz, mas sem deixar de sorrir. “Vêem-se melhor de uma certa distância, ora reparem”. Recuou uns passos e fez uma expressão atenta, olhando as telas.
Os velhotes seguiram-lhe o exemplo, o que gerou uma movimentação inesperada e desorganizou a visita durante alguns minutos. Só um homem alto, de melena branca pelos ombros, não se mexeu. Mantinha o rosto pregado numa das telas, e ficou assim até que um dos outros lhe deu um berro ao ouvido.
Marta movia-se de quadro em quadro o mais depressa que podia, arrastando atrás de si o grupo, saltou mesmo dois deles, para tentar abreviar a visita, mas sem grande sucesso.
O pessoal da televisão tinha chegado entretanto e já estava a fazer imagens. Marta deitou-lhes um olhar rápido, endireitou mais as costas e pôs-se a falar sobre vida e cores, e sobre a bela colecção de telas que tinham conseguido reunir ali “Um acontecimento plástico único, é um prazer ter-vos aqui”, disse ela, lançando sorrisos à esquerda e à direita.
Tinham chegado, finalmente, ao átrio. A um canto, esperava-os um cavalete com os sumos e os bolos e, ao convite de Marta, o grupo encaminhou-se para lá. Ela então distendeu-se um pouco. Estavam a ir bem, em breve aquilo estaria terminado.
Nesse momento, uma das pensionistas abeirou-se de Marta, carregando a custo um grande embrulho, de forma achatada, que alguém tinha acabado de lhe entregar. “Doutora Marta,”, chamou ela, “uma lembrança nossa para o museu. Obrigada pela tarde inesquecível”. Os outros tinham-se aproximado satisfeitos.
Marta corou um pouco, fez um gesto de agradecimento e desembrulhou o objecto. Com um sorriso, revelou então um quadro, desencadeando um aplauso entre os velhotes, e agradeceu “em seu nome próprio e do museu”. Pelo canto do olho percebeu que o câmara tinha apanhado tudo. Maravilha.
“Vai expô-lo junto dos outros na galeria?” A jornalista aproximara-se de microfone na mão.
Apanhada de surpresa, Marta vacilou um momento, mas recompôs-se imediatamente. “Essa decisão cabe ao senhor comissário de exposições, certamente vamos discutir o assunto entre nós”.
Satisfeita, a rapariga rodopiou e apontou o microfone à velhota que entregara o quadro. “Qual é mensagem deste quadro para o museu?”
“Sabe, fiz isto com as cores que lá tinha. Queria pintar umas rosas iguais às que temos no jardim, mas não tinha cor-de-rosa, por isso usei um amarelo que me tinha sobrado de outras pinturas. Mensagem não pus nenhuma. Isto foi só para agradecer à senhora doutora”, respondeu a velhota, com um brilho nos olhos.
A jornalista procurou outro pensionista. O da melena, decidiu. Esse até tinha um ar de artista. “De que gostou mais na exposição? ”
O velhote sorriu-lhe. “Olhe, menina, gostei muito do sumo de laranja. Lá no lar não nos dão disto ao lanche”. A rapariga olhou para o câmara e ele percebeu. Estava feito, era tempo de ir..
A equipa saiu apressada, os velhotes lá se foram também, no seu passo vagaroso. Marta olhou em volta, no átrio mergulhado em silêncio, achou que tinha corrido bem. Enfim, não tinha corrido mal.
“Doutora Marta, o que faço ao quadro?”. Era a voz do Mateus, o funcionário da recepção. Ela respondeu-lhe, distraída. “Ó Mateus, se o quiser, leve-o”, e encaminhou-se ligeira, para o gabinete. Ainda precisava de enviar uns emails.
Mateus observou a imagem na tela. Tinha umas rosas de uma cor estranhamente viva, um amarelo intenso, quase eléctrico, que prendia o olhar e despertava uma ânsia qualquer. Lembrou-lhe vagamente as flores de um quadro famoso, mas este tinha qualquer coisa que não sabia definir. Como se as flores tivessem desabrochado naquele momento, na primeira luz da manhã. Cuidadosamente, voltou a embrulhar o quadro. Ia levá-lo, sim. Devia ficar bem na sala.
Gostei muito muito!
ResponderEliminarBeijinhos,
Ged
Obrigada pelo teu comentário tão querido. Um beijinho
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