sábado, 14 de maio de 2011
Dance …dance, otherwise we are lost: a terceira dimensão de Pina Baush
Todo o acto humano é sacrificial. Do mais fugaz olhar ao mais ínfimo gesto. Em tudo há perda e há fé. Abnegação e apoteose. Amor e morte. Todo o acto humano nasce votado ao desaparecimento. Por isso cada movimento, cada traço, escrito, ex-crito, expulso, é uma dádiva; e porque cada um encerra uma escolha, encerra também uma perda. Pina sabia-o. Quando escolheu o lamento de Dido por Eneias (na versão de Henry Purcell) para dançar Café Müller, Pina já estava a falar de renúncia. Quando dançou sobre si mesma de olhos fechados entregando-se sacrificialmente ao nosso corpo, entregando-se ao nosso olhar predador, ensinou-nos que só pelo amor se regressa do mundo dos mortos. Foi, provavelmente a sua compreensão dessa dimensão subjacente a cada acção verdadeira e determinante que a tornou tão exigente consigo mesma e com os outros, tão obcecada com o trabalho. Pina só aceitava criar a partir desse comprometimento com o abismo, fosse ele a alegria, a lua, a Primavera, o desespero, o encontro. Por isso, na sua companhia os corpos envelhecem, os rostos têm a beleza juvenil e a beleza dos dias atravessados. Por isso todos são simultaneamente crianças e velhos.
Porque ela dançava para o instante que se subtrai no exacto momento em que acontece, a sua obra capta a essência profunda do humano, das suas profundezas arcaicas às suas exaltações quotidianas. Quando o cineasta Wim Wenders levou os bailarinos da Tanztheater Wuppertal Pina Bausch para as ruas da cidade alemã de Wuppertal, terá captado esse desejo do corpo transgredir a carne e se inscrever no mundo dos outros corpos; nos corpos férreos das fábricas abandonadas, dos carris suspensos com os seus transeuntes-anjo a percorrerem estradas imaginárias de sonhos e fome. Nos jardins, dos baldios entre carros e asfalto, nas áridas e desérticas areias na orla da cidade.
E eles dançam, dançam como ela dançava… para não se perderem no mundo dos mortos, para não se perderem no desespero de Ser. A cada bailarino Pina não exigiu menos que um sacrifício idêntico ao que Dido fez por Eneias e que Eneias fez pelo reino que haveria de fundar. O sacrifício de encontrar dentro de si algo absolutamente singular. Aquilo que cada um só pode encontrar e oferecer se tiver a coragem e a generosidade para destruir as suas fundações interiores, cuja gravidade o mantém preso ao solo. Aquilo depois do qual se encontra a absoluta leveza do movimento que não é dirigido ao espectáculo, ao presente mas sim à finitude, ao vórtice, ao amor. Um movimento, como a rosa, aberto para o nada, aberto para o mundo.
Não deixa de ser significativo que todas as peças da coreógrafa revisitadas neste filme tenham subjacente a temática do sacrifício. Café Müller, Sagração da Primavera, Vollmond e Kontakthof.
Quando Wenders decidiu filmar os bailarinos de Pina em 3D foi como se tivesse procurado introduzir a dimensão incorpórea da artista, falecida em 2009. Aquela que, para lá do corpo corruptível e mortal, a faz permanecer entre nós, aquela que impele outros a criarem. Há muito que Pina Baush não é apenas aquele rosto magro, aquele corpo esquálido, aquele longo cabelo castanho, aqueles penetrantes olhos azuis. Há muito que Pina é uma presença espectral em toda a arte. Da dança ao cinema. Da poesia ao teatro. Da arquitectura à música.
Não se pode pensar ou contar a arte contemporânea sem os corpos dos seus bailarinos projectados no espaço, sem mulheres de saltos altos e vestidos e cabelos esvoaçantes caindo sobre o nada ou sobre a certeza de haver algures um braço que as acolhe e as devolve a um Eu, que a todo o instante parecem dispostos a abandonar.Por nós.
"Dancem, dancem senão estamos perdidos" são as palavras que nos deixa.
Resta-nos então...dançar.
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Olá, Joana, grande estreia
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