quarta-feira, 6 de abril de 2011

Telefono-te quando voltar

Era uma correria escada abaixo, aos gritos selvagens, lenço atado na testa e umas quantas penas enfiadas nos cabelos – das galinhas da Dona Amélia, ou dos pombos que por ali andavam, já não se lembrava. Uma estafa a certa altura, sempre a mesma coisa de índios e cowboys, ou o Rintintim, que era a mesma coisa, com soldados e faroestes. O João ia à frente, a comandar, e não havia como dizer não. “Vamos antes brincar ao Daktari, tem leões e chimpanzés”. Mas ele rira-se. “Isso é de meninas”. E não se falara mais nisso. Corriam escada abaixo, o João com aquele brilho intenso no olhar, e aquele riso franco. O mesmo olhar e o mesmo riso que agora lhe dirigia, com os dois beijinhos da praxe, um em cada face.
“Há quanto tempo, então o que fazes?” Os dois a perguntar ao mesmo tempo, e logo a rir do atropelo.
Ela primeiro, então.
“Fui para biologia, lembras-te? Dou aulas, os miúdos são o máximo. E tu?”.
Ele fez que sim com a cabeça, sempre a sorrir.
“Sim senhora, a aturar putos. Fica-te bem. Olha, estou para Angola. Tenho uma empresa de consultoria informática, sistemas complexos, essas coisas. Ando cá e lá, não paro, sabes como é.”
Não sabia. Angola só de ver na televisão. De muito longe chegou-lhe uma  lembrança do Daktari, com leões e chimpanzés. Mas estava com pressa, ia dar uma aula e o trânsito estava péssimo. “Desculpa João, gostava mesmo de ir beber um café contigo”.
“Ouve”, disse ele, “dá-me o teu número. Amanhã vou para Luanda, mas é coisa de um mês, telefono-te quando voltar. Vamos jantar, beber um copo ou assim”.
Ela radiante. Não tinha cartões, imperdoável. “Tens um papel?”.
Ele tinha. Rabiscou o número à pressa. “Não te esqueces?”
“Está combinado”, disse ele, enquanto dobrava a folha e a enfiava no bolso de dentro do casaco, junto da carteira.
Despediram-se com dois beijinhos.
“Gostei de te ver”.
“Também eu”.
Ela apressou-se. Que engraçado encontrar o João por acaso, no meio da rua, depois de tantos anos. Iriam jantar, estava contente.
Depois de lhe acenar, ele virou a esquina e entrou num café.
“Um Camel”, por favor, pediu na tabacaria, à entrada. Tirou a carteira, pagou e saiu sem receber o troco. Já não ouviu o “obrigado” da mulher, ao balcão. E já ia longe quando ela correu à porta, ainda a tentar apanhá-lo: “Olhe que deixou cair um papel”.

2 comentários:

  1. Amei o teu blog a sério! continua...

    se puderes passa pelo meu:

    http://palavrasdechocolate.blogspot.com/

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  2. Como sou dos que gostam de histórias sem princípio nem fim, deixei-me ir até perder, com as pressas, o bilhete da sem-nome; mas o mais giro é que sou eu agora que rebusco nos bolsos um número de telefone que perdi, e, com ele, um jantar e um rumo que claramente não estava guardado para mim. Bingo! [Bingo, mesmo tendo em conta o abandono, pela narradora, do campo de batalha, já que o jantar combinado seria uma história mais complicada... ]

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