quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Histórias de jornalistas II (Douro, paixão fluvial)


O Douro deslizava numa placidez mansa de Agosto. A cidade era uma paleta gigantesca. O senhor galante viu aquela mulher alta a passear à beira-rio: tinha um chapéu de palha azul-escuro e vestido de seda, em contraste com o brilho do sol na quietude da água. Guapa, pensou, muito guapa.
Aproximou-se porque ela estava sozinha, aproveitava para uma troca de amabilidades. Era um pouco mais baixo do que ela, sendo isso uma pequena contrariedade, que decidiu ignorar; polaina branca, casaquinha curta, a gravata prosapiosa (seria assim num jornal a descrição do conhecido escritor, mais a sua bengala à Charlot). Alfinetadas de meios literários.

O escritor, que era baixinho, acompanhou a elegante mulher durante algumas centenas de metros, esforçando-se por a galantear como ela merecia. Isto fazia parte dos costumes, não podia uma mulher andar sozinha pelas ruas de Portugal sem ouvir piropos e surgirem logo as melguices dos conquistadores encartados que buscavam a sua mulher fatal.
Mulheres querem-se a bom recato no lar e com medo dos homens que passam na rua, mas esta passeava no seu território, pensou o janota. E que mulheraço. Chamava-se Albertina e era solteira, descobriu o escritor, a certo ponto. Fez logo ares de conquistador, como era de norma, usando da lábia que tinha aos magotes; toc, toc, a bengalinha a bater na calçada, num ritmo nervoso, sincronizada com o toc, toc dos saltos altos dela; e foram os dois por ali acima, palrando sobretudo o autor, ela cada vez com mais pressa, ele a deitar os bofes para fora, até chegarem à avenida. Posso mostrar-lhe as melhores belezas da cidade, dizia ele, pouco subtil…

“Deixe-me em paz”, disse a certo ponto a Albertina do chapéu de palha azul-escuro, já impaciente com o assédio. E seguiu-se uma expressão que não ficou famosa, já nenhum jornal se atreveu a reproduzi-la, mas que a Albertina aprendera no regimento de Caçadores 7, em Lisboa, onde fizera o desfalque.
O escritor saiu dali a comentar, ofendido, que a beldade só podia ser homem, o que alertou a lei, mas não imediatamente. Naqueles nervos de se ver perseguida, a rapariga fizera-lhe voz grossa, e afinar a voz era sempre a parte mais difícil do disfarce. Por isso, o encontro galante foi o princípio do fim das aventuras do mariola Alberto Pacheco Lima, a quem um jornal chamou “famigerado gatuno” e também “larápio”. Ele seria detido algumas horas depois, quando ia num carro de praça que a polícia portuense mandou parar, pedindo à bela passageira os documentos de identificação. Alberto tentara em vão fugir para Braga. Aos 17 anos, dizem que possuía uma cara de anjo.

Em Lisboa, no início desta aventura, Alberto teve uma cúmplice, Hermínia Ferreira, e não Albertina, como erradamente saiu em jornais menos exactos.
Alguns aspectos autênticos desta história, pormenores até hoje nunca publicados, foram contados pelo próprio Alberto Pacheco a um repórter que conseguiu falar com ele durante alguns minutos e até convencer os polícias a posarem a seu lado para uma fotografia. Horas depois, o suspeito seria transferido do Porto para Lisboa, no Aljube, onde aguardou julgamento.
A ideia do desfalque de 18 contos (o jornalista assobiou ao ouvir pela primeira vez a verba, que era igual a dois anos do seu salário no Diário de Notícias) surgiu ao gatuno não como um plano organizado, mas como uma loucura de juventude, um impulso que vinha da sua vontade de experimentar a vida. Diga-se que ele foi muito cavalheiro e ilibou completamente a Hermínia de qualquer responsabilidade no golpe, assumindo a autoria única, e dava para perceber nas entrelinhas que a rapariga tinha as suas culpas no cartório, pois os dois (na forma de duas mundanas) gozaram em Lisboa os prazeres de comprar roupas e sapatos e gastaram à farta em comezainas e noitadas.

Alberto Pacheco era o soldado 31 de caçadores 7 e por esta altura já tinham dado pela sua ausência e procuravam-no pelo desfalque. A fuga para o Porto foi inevitável a partir do momento em que surgiu a polícia em casa da Hermínia, em busca do soldado 31, pois sabia-se que talvez fossem os dois amantes ou no mínimo noivos.
Enquanto contava isto ao repórter, rindo-se da coincidência do 31, Alberto ficou subitamente, e pela primeira vez, com um ar preocupado. Estavam sentados num dos bancos da esquadra e podiam falar os dois à vontade: o jornalista tomando notas preguiçosas, num fatinho pobre, a gravata meio torcida; o preso sem a cabeleira, mas ainda vestido de mulher, o que lhe dava um ar patético.
“Garanto-lhe que entre mim e a Hermínia nunca houve romance algum”, contou o detido. “Ela era minha vizinha e passeávamos juntos, era tudo. Mas ela dizia muitas vezes que eu era ‘um menino querido’ e a ideia de me transformar em rapariga chique foi dela, mas isto fica aqui entre nós, pois eu amo a Hermínia e a não a quero incriminar. Naqueles dias, quando me transformou em mulher, passou a existir entre nós uma atracção que ela até aí nunca manifestara. Eram pequenas carícias, beijos castos, sussurros, segredos…” De repente, Pacheco mudou de tema: “O pior foram os sapatos, calço 41, que é número que não existe para mulheres. Foi um inferno”.

“Por que fez aquele desfalque?”, perguntou o repórter.

“Foi uma ideia, não sei. Havia a oportunidade. Queria ir para o Brasil, mas quando disse à Hermínia que tinha dinheiro para irmos os dois para o Brasil, ela riu-se de mim. Disse que era um disparate e depois teve aquela ideia de me esconder vestido de mulher. Fomos felizes, naqueles dias, mas quando tive de fugir para o Porto senti uma infelicidade, que é provavelmente o que sentem muitas mulheres quando não se encontram na confusão dos seus próprios sentimentos. Estou a falar de mulheres que tornam mais infelizes os seus amores infelizes, que tornam ainda mais solitária a sua solidão. Vestir roupa de mulher transformou-me sem que eu o soubesse. E fugia para mais longe, sem saber para onde fugia”.

“E agora?”

“Agora? Em vez de ir para o Brasil, vou deportado para África. Não é irónico?”

Os polícias regressaram, levaram o Pacheco, que acenou ao jornalista. Este fechou o bloco de notas, a pensar melancolicamente naquele preso que não fugira ao destino: visto por todos, encontrara o esconderijo perfeito, mas fora traído pelo excesso de beleza, que é algo que não escapa a ninguém.
 
Esta história é verídica e foi contada pelos jornais em Agosto de 1930. Lembra bastante o filme clássico americano Some Like it Hot (Quanto mais quente melhor), com Marilyn Monroe, Tony Curtis e Jack Lemmon (os dois últimos na imagem) mas a película é dos anos 50. No DN, este fait divers saiu de forma séria, no JN mais no gozo. O conto está integrado numa série que estou a publicar no suplemento de Verão do DN; este é sobre o Douro, amanhã sai um inspirado no Tejo.

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