terça-feira, 9 de novembro de 2010

O fugitivo


O livro fugira três dias antes. Estava num saco branco, encostado ao aquecedor do quarto, portanto, sem pertencer a uma colunata específica de livros abandonados à sua sorte. Veio a casa um senhor arranjar a janela e teve de tirar o aquecedor do sítio e arrumou o livro algures. Foi então que percebi que ele tinha fugido. Capa creme, sem ilustração, só o título e o autor, portanto, muito discreto. Procurei-o nas pilhas acumuladas, trinta e nove, pelas minha contas. Isso exige tirar os livros de cima, formando novas pilhas temporárias e procurar em baixo, remover tudo e reconstruir depois, baralhando a ordem. Pareceu-me escusado procurar nas estantes, porque estão sempre silenciosas e graves, com os livros escondidos nas suas cavernas quietas, em filas preguiçosas que só os bichos exploram.

Tive esperança de encontrar o livro fugitivo numa colunata de livros que a minha gata aprecia. A pilha número doze. Pareceu-me que o animal estava a dormir a maior altura naquele dia, o que quereria dizer que um livro clandestino se infiltrara.
E, de facto, encontrei o malandro entre um nabokov e um velho romance de graham greene. Até lhe bati com o dedo, para castigo de uma fuga fortuita e sobretudo impensada. O sacaninha respondeu com o que me pareceu ser um sorriso escarninho de letras vermelhas em fundo creme, lábios grossos e pele de mulher morena.

Ainda estou para saber como isso aconteceu, mas o livro fugiu de novo. Foi ontem e não tenho explicação. Lembro-me de o ter colocado na pilha da minha mesinha de cabeceira.
A empregada andou por ali em limpezas e até lhe telefonei, para perguntar se sabia o que tinha acontecido ao livro que estava na minha mesinha de cabeceira, e ela explicou que limpara o pó e arrumara os livros e pusera-os no mesmo sítio, mas talvez tenha baralhado a pilha número sete com a oito, enfim, uma deve estar agora mais alta e a outra mais baixa.

Terei de vasculhar de novo a biblioteca. e este é o quinto livro que me escapa este mês, e um deles por duas vezes. Na primeira hora de buscas, encontrei um do camilo que me fugira da vista no ano passado. O malandro ainda se estava a rir da minha incompetência de bibliófilo e coloquei-o com irritação na minha mesinha de cabeceira, e até telefonei à empregada a proibi-la de limpar ali o pó. Entretanto, a minha gata passou a dormir na pilha caótica número vinte e sete, que está perto da janela. Acho que ficou mais alta, mas não encontro uma explicação. Para saber se o livro se escondeu ali, terei de tirar a gata e o animal está a dormir como um anjinho, com um ronronar que quase me parece um riso de troça.

5 comentários:

  1. Talvez o melhor seja desistir da procura... Dizem que eles nos vêm parar à mão, quando assim tem de ser. Invejo o gato. Gostaria de ter lá por casa, trinta e nove pilhas de livros para escolher :)

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  2. Os anjos vivem nas bibliotecas - o Wim Wenders ensinou-nos. E os anjos, tal como os gatos, embora pareçam circunspectos, são uns brincalhões. Por isso, quando em minha casa desaparece um livro, eu esquadrinho, farejo, zango-me, mas acabo por me sentar muito sossegada e apaixono-me por outros livros, e espero. Então os anjos sorriem, sopram os meus cabelos, e o livro aparece. Pode levar alguns anos - depende da duração da brincadeira angelical - mas aparece.

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  3. Olá..

    Gostei muito do seu blog, estou seguindo.. ^^
    Muito bons os textos!

    Faça uma visitinha no meu.
    http://cabecafeminina.blogspot.com

    Um abraço.

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  4. Agradeço muito estes comentários. É sempre um prazer ter bons leitores

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