segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Flores de papel-II


Mariana dominava o espaço, como se a envolvesse uma atmosfera particular. Sempre deixava essa impressão quando percorria os campos, nos seus passeios solitários. Parecia levar uma luz invisível, uma espécie de brilho. Antes – antes do Albano – quando ela surgia na curva do caminho, as crianças que andavam por ali correndo atrás das galinhas, paravam, seguiam-na com o olhar. Ela então acenava-lhes, e um miúdo ou outro corriam ao seu encontro e punham-se a caminhar ao seu lado, sem dizer nada. Mariana soltava umas gargalhadas cristalinas e doces e às vezes fazia-lhes festas ao de leve na cabeça. E tudo se desvanecia a seguir. Ela ia andando, os miúdos voltavam às correrias.
Mas tudo isso, pensava o Joaquim Águas, tinha sido antes do Albano, e antes de as mulheres, acicatadas pela Tia Matilde – o raio da velha – se terem voltado contra a rapariga. Ela nunca tinha sido bem um deles, tão diferente, tão delicada, como uma menina da cidade. Que raio se metera na cabeça do Albano?
Ninguém soube como aquilo aconteceu mas, a certa altura, o rapaz era só olhos para ela. Quando Mariana saía a dar os seus passeios, quando ia à missa ao domingo de manhã, ou à venda, a buscar açúcar e arroz, o Albano fazia sempre por encontrá-la. Estava sempre lá, num canto qualquer, à espera. Saía-lhe ao caminho, desbarretava-se, ela sorria, e ele ficava ali apatetado, sem saber o que dizer, até que ela se despedia e se ia embora.
A miudagem começou a meter-se com ele. Os rapazes, quando o viam, punham-se aos beijinhos no ar e riam-se, até que o Albano se enfurecia e corria com eles ao pontapé e aos gritos. Mas a graça pegou, o moço andava mal-encarado.
Na venda, os homens sorriam quando ele entrava. Uma tarde, entre dois golos de aguardente, o Januário entrou a mangar com ele, disse-lhe que  tivesse juízo. “Aquilo não é para o teu dente, ó cachopo”. Era um modo de dizer. Um dichote sem importância, mais para o rapaz descer terra. “Aquilo” não era para o dente de nenhum deles, sabiam-no todos. Por isso se riam do Albano.
O rapaz levou aquilo a peito. Empalideceu, e depois transfigurou-se. Ainda apontou um dedo ao Januário, numa intenção qualquer, mas não conseguiu dizer nada. Saíu porta fora. Foi a última vez que o viram.
Na manhã em que descobriram o corpo no fundão da ribeira, com o rosto já desfigurado e cinzento, a boca inutilmente aberta, a velha Matilde, de olhar desvairado, gritou à porta da capela até perder a voz. Que ela lhe embruxara o rapaz, que lho desgraçara. “Que vai ser de mim”, gemia ela, no meio das outras mulheres, que a ouviam num silêncio receoso.
O enterro foi rápido, numa cova aberta e fechada à pressa num canto afastado do cemitério. De má cara, o padre benzeu o caixão, só se ouviam os gemidos da velha Matilde, transformados numa lamúria cansada. 
Mariana, muito pálida, de lenço escuro na cabeça, também estava lá, um pouco afastada. Parecia perplexa, como se não percebesse o que estava ali a fazer. Ninguém lhe dirigiu palavra. As mulheres olhavam-na de lado, com expressão feroz. Uma delas cuspiu para o chão e desviou os olhos. Os homens baixavam a cabeça.
Durante uma semana, o Januário não apareceu na venda. Voltou uma tarde, já a Primavera se anunciava nos campos e nas árvores. Entrou na venda, pediu aguardente, bebeu-a num único sorvo, e limpou a boca à manga escura da camisa. Depois deu um estalo com a língua e enfrentou os olhares inquietos em volta. “Que se há-de fazer?”, disse encolhendo os ombros. Alguns abanaram a cabeça, concordando. “É”, respondeu um deles. Pediram mais uma rodada, que se havia de fazer?

*Esta história continua

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