sábado, 30 de julho de 2011

A cidade do Corto

Gatos em vez de pombos. A sereníssima cidade dos doges, no traço de Hugo Pratt, raramente se identifica com a basílica de S. Marcos ou com a igreja de Santa Maria della Salute. Há telhados escorregadios e pavimentos de mosaico maçónicos, judeus que dominam a cabala e franciscanos que guardam mapas do tesouro, sombras que se esgueiram e reflexos a brilhar na laguna, o poeta decadentista Gabriele d’Annunzio e a incarnação da filósofa Hipácia de Alexandria, silhuetas de palácios e pontes misteriosas, escadarias enigmáticas e pátios mágicos, borboletas gnósticas e combates de aviões na I Grande Guerra, a bela Louise Brooks e o intrigante Barão Corvo.
Em dois álbuns, cujo nome parece ficar mais belo no idioma de Dante Alighieri e de Italo Calvino, L’Angelo della Finestra d’Oriente e Favola di Venezia, o marinheiro maltês deambula pela Veneza que entusiasma Pratt, entre brumas e carabineiros, gnósticos e fascistas, dândys e beldades, andorinhas e gaivotas, sonhos e tiros, leões gregos e peles de serpente
Os fanáticos do marujo que veleja em todos os mares, sempre tão cínico face ao mundo como o filósofo Diógenes e tão poeticamente aventureiro como Rimbaud, chegam a comprar discos com a música que se associa às suas aventuras, manuais para perceber melhor as figuras históricas com quem se cruza, álbuns com as deslumbrantes mulheres que por ele se apaixonam, guias com mapas que mostram onde pisou na sereníssima. E, agora, pode-se garantir, com a certeza com que se afirma que Buenos Aires tem duas luas, que a próxima romarias será ao seu novo templo veneziano, La Casa di Corto. Mas onde estará, afinal, a esmeralda pura e bela a que chamam a Clavícula de Salomão? E haverá maior elogio do que alguém dizer que parecemos mesmo o Corto Maltese?

sexta-feira, 29 de julho de 2011

"Portugal a Quente e Frio" no Plano Nacional de Leitura


E pronto, aqui vos deixo uma boa notícia. O livro que escrevi com a minha amiga Teresa Firmino volta a estar, pelo segundo ano consecutivo, na lista das obras recomendadas no Plano Nacional de Leitura (PNL). "Portugal a Quente e Frio" (Livros d'Hoje, 2009) é o primeiro livro sobre as alterações climáticas para Portugal. À mistura com algumas histórias, passamos em revista a ciência do problema, o que está em causa para o planeta e os desafios que o país vai enfrentar nas próximas décadas em áreas como a saúde, ou os incêndios florestais (com o aumento da frequência das ondas de calor, por exemplo), e em sectores de actividade como a agricultura, as pescas ou o turismo.
"Portugal a Quente e Frio" está recomendado no PNL para os anos de escolaridade do Secundário (10º, 11º e 12º), como leitura autónoma.
Boas leituras, então.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Histórias de jornalistas I (Tráficos de fronteira)


No fim da refeição, o diplomata pegou no copo de brandy. Ficou uns momentos com ele suspenso no ar, o líquido a fazer um turbilhão no interior do vidro curvo. Depois, disse:

“A cimeira luso-espanhola foi mais tensa do que transparece nas notícias do seu jornal”.

Fiquei surpreendido com a franqueza. Sabia que tudo o que ia ouvir jamais poderia ser publicado.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Manuel Carolina Emídio, meu avô

Quando, nas noites chuvosas bebiamos folhas de limão,
falavamos ao mesmo fogo que não se extinguia, porque mãos distraidas o alimentavam.
Quando, nas noites invernosas a manteiga derretia sobre o pão, estavamos ambos ignaros do medo, tu contavas histórias intermináveis e os tesouros perdidos espreitavam-nos de dentro das paredes.
Sabiamos que a chuva cessaria, que as folhas secariam aos primeiros sois.
E isso era bom.
Sabiamos que as formas do mundo se sucediam, partindo e retornando.
Tudo parecia quieto e constante.
Os mistérios resumiam-se ao destino que as tuas palavras dariam às histórias para sempre inacabadas.
De todos esses dias restam apenas as folhas de limão, secando e renascendo.
E a certeza de que cada palavra que escrevo, escrevo-a (ainda) para ti.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Welcome 2 the Circus




O circo é um lugar cheio de ressonâncias arcaicas. Chamam-lhe o maior espectáculo do mundo, o que não será por acaso. Dentro da tenda toda vida humana se faz espectáculo. Representa-se. Encena-se. Dá-se a ver. Nos seus aspectos mais luminosos e mais sombrios. Um espectáculo circense é quase uma recapitulação da história Humana. Os sonhos de voar e de transcender os limites físicos impostos pela natureza, revisitados em cada subida ao trapézio ou à corda vertical. A superação do medo da predação por animais ferozes em cada batida do chicote. A ultrapassagem do medo da queda e da morte em cada acrobacia. O circo é o Homem face aos seus abismos interiores e exteriores. Fazendo deles espectáculo para que todos e cada um se representem e se revejam na face tragicómica da existência.
Antes de ser qualquer outra coisa o circo é (ainda) uma forma de o Homem se contar. Tal os antigos mitos, que forjaram a nossa humanidade, continuam hoje a ser contados e recontados independentemente da sofisticação dos mecanismos tecnológicos postos ao nosso dispor, também o circo, não obstante a estilização de movimentos, a criação de novas formas dramatúrgicas, a fusão com outras linguagens e disciplinas artísticas, continuará sempre a ser uma trupe que, pela estrada fora, conta e reconta a história humana. Como tão bem o percebeu Ingmar Bergman no Sétimo Selo, onde a José, Maria e o menino são representados por um casal de saltimbancos, ou Federico Fellini, que soube como nenhum outro colocar a alma no circo no grande ecrã.
Hoje vivemos no tempo dos nomes. Tudo necessita de uma denominação para se poder afirmar, existir (quando sabemos que a essência das coisas é, afinal, indizível). Há então o velho e o novo circo, o antigo e o contemporâneo… porém, o que esta luta em torno dos nomes nos mostra é que o circo continua a inquietar. Queremos dar-lhe um nome, um género para o arrumar na gaveta das nossas ideias. Mas tudo o que está vivo escapa ao nome, desafia as normas e as formas de classificação.
Por isso, quando os alunos/criadores de Welcome 2 the Circus se propõem criar uma performance a partir da relação entre o circo tradicional e o circo actual isso constitui já um ponto de partida estimulante.
O espectáculo ergue-se então sobre evocações de obras fundamentais dos séculos XX e XXI (como Marcel Duchamp, Tom Banwell, Federico Fellini, o cinema expressionista, o ballet clássico ou a música pop) para colocar em palco as relações conflituantes que existem dentro do universo circense actual, nomeadamente os conflitos entre o chamado circo tradicional e circo contemporâneo. Sete artistas promissores constroem um cenário que evoca as antigas arenas (arena romana dos gladiadores, arena de circo, arena do teatro isabelino). Sim, milénios de história podem contar-se assim: com tábuas e pregos, uma velha arca, uma sanita e muito plástico. Não são precisos efeitos especiais. E bastaria olhar para estes materiais para ler aqui a transição do manual para o tecnológico, da natureza para a máquina. Da primordial madeira ao moderníssimo plástico. Este material que assume qualquer forma, se adapta a qualquer transformação e que materializa essa antiga aspiração humana, que o circo também representa, de assumir todas as formas possíveis.
É pois neste cenário (da autoria de Cristina Ramos, Joana Nicolau e Paulo Carmo), simples mas cheio de ressonâncias complexas, que quatro artistas assumem a tarefa de revisitar mitos, personagens e números que têm atravessado a história do circo, sem nunca deixarem de o relacionar com a história humana. E porque não temem revisitar o circo tradicional usando a sua linguagem de artistas e espectadores do século XXI, conseguem, com momentos de uma riqueza imagética assinalável, dar ao público a possibilidade de superar uma visão dicotómica do circo( velho/ novo, antigo / actual), e compreender os elos, as ligações que existem no seu interior, as fantasmagorias e os desejos de transformação que o habitam, como habitam a alma humana.
De Welcome 2 the Circus gostaria de destacar alguns momentos:
Homem–elefante/homem–máquina dançando em pontas
A utilização de animais no circo reconta esse momento fulcral da história da humanidade que foi a domesticação de animais selvagens . A violência a que são sujeitos os animais amestrados não é mais do que um regresso à violência fundadora que é intrínseca à condição humana. Mas não nos enganemos. Não é o animal que protagoniza a arena circense. É o Homem. O Homem cujo desenvolvimento do neo-cortex cerebral, aquisição de linguagem e domínio do simbólico, tornaram superior aos outros animais, condição que ele não só nunca esquece como gosta de exibir. Mesmo quando coloca a cabeça na boca de um leão são as suas capacidades de homo sapiens sapiens que quer mostrar, (re)encenar. Portanto, o circo mais não faz que devolver-nos a estas origens violentas e narcisistas. Quando Colin Vieira coloca no rosto uma máscara de gás idêntica à que foi criada por Tom Banwell e se ergue, em equilíbrio precário, sobre umas sapatilhas de pontas, coloca-nos perante uma poderosa imagem do circo enquanto encenação do humano. Enquanto ele deambula pela arena agitando tristemente a cabeça, vemos um elefante amestrado, mas vemos também da violência do homem sobre o homem, a guerra, os campos de concentração…vemos ainda o homem-elefante, essa personagem trágica cuja vida nos conta muito mais sobre a nossa dificuldade em lidar com a diferença do que milhares de páginas de tratados psicológicos e sociológicos. A simplicidade da cena, a economia de gestos e expressões dá-lhe uma densidade plástica e metafórica fortíssima. Ali está toda a brutalidade e toda a fragilidade da vida.
Morte do palhaço
A figura do palhaço tornou-se sinónimo de circo. Apesar de ser uma das mais repetidas, recriadas é também uma das mais ambíguas e inquietantes. Raul Brandão mostra-nos isso magistralmente na obra ‘A morte do palhaço’. Em Welcome 2 the Circus, o palhaço está descaracterizado. Não tem nariz vermelho, nem roupas absurdas. É uma menina a brincar com amigos. É um de nós. Uma brincadeira que começa no riso e acaba na violência. Todos os espectadores riem às primeiras estaladas (que parecem um jogo de equívocos) mas aos poucos, à medida que a violência cresce, o silêncio torna-se denso, como se cada um se revisse naquele que brutaliza e naquele que é brutalizado. Onde estão as fronteiras? Onde acaba a brincadeira e começa a humilhação, a brutalização do Outro? Quantas vezes já fomos o palhaço que ri e o palhaço que é humilhado? Porque em cada um de nós não habitam só bons sentimentos mas também uma crueldade imensa? E como ver esta cena sem pensar na doce e trágica Gelsomina?
Ironia e melancolia
Toda a encenação de Welcome…joga sabiamente com momentos de ironia e momentos de melancolia. Tanto Colin Vieira como o Bruno Machado, cujas roupas nos remetem de imediato para Antony Quinn, o malabarista Zampano no La Strada de Fellini, encarnam, do principio ao fim, personagens que espelham esses dois sentimentos. Em especial na cena em que o mestre ensina ao aprendiz a arte de ser apresentar um circo ou no momento em ambos descrevem a actuação da trapezista sem olharem para ela uma única vez. Quantas vezes o riso é parente do desencontro? Há no circo, como nos espectáculos em geral, uma tentativa humana de escapar à angústia. Mas todas as máscaras escondem um corpo nu. Todas as potencialidades físicas escondem um corpo mortal. Por isso, volto a destacar a sobriedade do cenário e dos números desta peça que, ao recusarem o excesso, a espectacularidade e a exibição gratuita de virtuosismo, ou beleza estética balofa, foram de uma generosidade imensa para com o público. Deram-nos a possibilidade de pensar.

* Este texto foi escrito a partir do espectáculo Welcome 2 the Circus, apresentado, como Prova de Aptidão Profissional, pelos alunos do 3º ano do da Escola do Chapitô : Bruno Machado, Carmen Viegas, Colin Vieira, Joana Dias, Cristina Ramos, Paulo Carmo e Joana Nicolau.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Dorme sossegada


Trouxe-te uma pêra, das que tu gostas, mãe, olha. Apanhei-a agora no quintal, vê como cheira bem. Não, que ideia, não me encarrapitei na árvore. Estava logo ali na ponta de um ramo, só precisei de esticar o braço. Está bem, fica para mais logo, depois descasco-a, quando tiveres vontade. Vou deixá-la ao pé de ti, na mesa de cabeceira, para lhe sentires o aroma fresco.
Pareces-me melhor hoje, gosto desse teu sorriso.
Está sol. Quando te sentires com mais forças, ponho a tua cadeira lá fora, junto à porta. Ficamos as duas no fresco da tarde, a olhar as árvores no quintal, tão cheirosas da fruta madura, e os pássaros a debicar as ameixas e as cerejas doces.
Tens os pés frios? Olha, vou abrir um pouco as portadas da janela para entrar o sol, e arranjo-te um saco de água quente, para ficares mais confortável.
Não? Está bem, não saio daqui. Não te preocupes. Deito-me um bocadinho ao teu lado. Vê se descansas, não fales agora. Não, não preciso de nada. Nem o Artur, nem a Xana. Eles vêm cá depois, não devem tardar. Ficamos só assim, as duas. Dorme um pouco. E tenta descansar. Não te preocupes, não saio daqui. Descansa.
Já não tens frio? Que bom. Dorme sossegada, mãe.
Descansa.
Descansa em paz.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Um livro positivo

A busca da felicidade, as grandes escolhas da vida ou simplesmente a reflexão sobre quem se é e o que se procura, e os caminhos  para lá chegar juntamente com os outros – as relações familiares, de amizade, de amor, ou de trabalho são indissociáveis de uma vida plena –, são as ideias fortes que atravessam do livro Positivamente (Esfera dos Livros), das psicólogas Helena Águeda Marujo e Catarina Rivero. Baseado na longa experiência clínica e académica das autoras, este é um livro que nos leva a  repensar perspectivas e rumos de vida.
Não, não é mais um livro de auto-ajuda. Aqui não há truques nem passes de magia. Escrito de forma inteligente, apelando à inteligência do leitor, interpelando-o e questionando-o, e convidando-o à reflexão e ao auto-questionamento, Positivamente é mesmo um livro diferente, por uma mão-cheia de boas razões.
Em contra-ciclo face ao ambiente colectivo marcado pelo clima cinzento e depressivo da crise, e questionando a sobrevalorização dos bens materiais e a necessidade imperiosa de sucesso e de fama a que a actual sociedade nos condena, o que a prazo só gera vazios e reforça a insatisfação interior, Positivamente está  repleto de palavras como gratidão, alegria,  reflexão, comunhão, acção ou bem-estar. E de uma constelação de outras expressões que lhe são chegadas, como mudança, sentido para a vida, emoções positivas ou optimismo.
Alicerçado nos estudos científicos da psicologia positiva, uma “escola”, ou “corrente” que estuda os processos cognitivos que fundam os sentimentos de plenitude e de bem-estar, este livro mostra como uma atitude positiva, quando ela resulta de uma reflexão sincera e, portanto, de um processo cognitivo consciente, faz a diferença. É isso que os estudos e os casos de vida citados pelas autoras demonstram.
E porque não passar à acção? É esse o convite das duas psicólogas ao leitor. Helena Águeda Marujo e Catarina Rivero sugerem uma série de passos concretos que permitem mudar pequenas coisas no dia-a-dia - como tomar diariamente consciência do que de bom nos acontece, ou fazer diariamente algo por alguém, ou... - cujas repercussões podem ser imensas. E, sobretudo, positivas.

Adaptado de um texto que publiquei no Diário de Notícias

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Céline: a literatura e os maus rapazes




Passam hoje 50 anos sobre a morte de Louis-Ferdinand Céline, o escritor francês que deu ao mundo obras como "Viagem ao Fim da Noite", "Morte a Crédito", "Norte" ou "De Castelo em Castelo".

Soldado, viajante, médico, romancista, maldito, genial. São muitas as faces deste escritor que revolucionou a literatura, com a sua escrita torrencial, onde as frases aspiram a espelhar as emoções das experiências concretas. A sua imortal galeira de personagens é feita sobretudo de vencidos da vida, desertores da guerra, homens e mulheres explorados, paralizados pela angústia ou pela melancolia. Mas fazem parte também uma série de panfletos anti-semitas, que publicou nos anos de 1937, 38, 41 e 43, que o obrigaram a fugir de França em 1945 e que são até hoje uma mácula na sua herança.

Céline (1894-1961) que, um ano antes de morrer, dizia que queria "ser apenas um velho anónimo sentado à beira do Havre a olhar os barcos a partirem e a regressarem", continua, passados 50 anos sobre a sua morte, a ser tudo menos anónimo. Em França, a celebração do cinquentenário da sua morte foi retirada da lista das comemorações oficiais do governo de Sarkozy, devido à pressão feita por grupos de judeus, mas abriu uma importante questão na sociedade, em especial nos meios culturais: está a arte obrigada à moral e aos bons sentimentos?