segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O meu caminho


Portugal vive inundado de cultura anglo-saxónica, repetindo talvez a obsessão da nossa elite, há um século, por tudo o que soava em francês. Devido à uniformização do gosto, temos deixado para segundo plano russos, escandinavos e centro-europeus em geral, mas também os brasileiros, o que talvez explique a relutância nacional em ler bons contos.
Nas línguas exóticas da Europa Central, o húngaro é particularmente impenetrável. E é pena, porque um dos seus escritores, Dezsö Kosztolanyi, é sem dúvida um dos maiores autores europeus do século XX.
Há um livro seu disponível, Cotovia, magistralmente traduzido do húngaro por Ernesto Rodrigues. O volume, da D. Quixote, encontra-se ainda nas feiras e livrarias e julgo que este romance atinge o patamar de perfeição de autores consagrados da mesma região, como Joseph Roth ou Robert Musil. Se o encontrarem em saldos, não hesitem. É a história de um casal de pequenos aristocratas cuja filha foi viajar. Eles não sabem o que fazer naqueles dia e os leitores acompanham-nos na sua redescoberta dos prazeres, mas também da constatação da velhice, decadência, solidão e vida provinciana. A cidade é inspirada na terra natal do escritor, Sabadka, hoje Subotica, na Sérvia. E a leitura deste livro repleto de humor e poesia permite compreender muito melhor o que aconteceu de terrível na Europa Central no último século. 

Contemporâneo de Musil e de Fernando Pessoa (três anos mais velho do que o poeta português, sobreviveu-lhe um ano) Kosztolanyi era sobretudo poeta, mas tem obra em prosa, com quatro romances importantes e dezenas de notáveis contos. Era primo de um escritor brilhante, Csath Géza, cuja vida dava um filme; foi também um dos fundadores da revista modernista Nyugat (Ocidente) e amigo de outro escritor de enorme originalidade, Gyula Krudy, um impressionista que inventou um estilo a que hoje se chama "realismo mágico". Krudy é figura ímpar e personagem quase inacreditável da história da literatura da Europa Central.

Vem este post a propósito de um conto de Kosztolanyi que encontrei numa colectânea de contos húngaros de 1941, da editora Gleba, onde constam alguns dos autores então conhecidos. Certamente traduzido do francês, pois o nome do escritor surge como Desirée Kosztolanyi.
O conto, O Meu Caminho, é uma jóia de humor. Muito curto, está dividido em nove pequenos fragmentos onde se conta a história de um homem, o narrador, que tenta conquistar o seu lugar num eléctrico repleto. Num dia muito frio vemos o eléctrico a sair do nevoeiro; "está cheio", dizem lá de dentro, mas o homem decide entrar, com o pé no estribo e o perigo de cair e de morrer; ele sente o desprezo dos que estão no interior e que desejam a sua queda; mas o narrador consegue conquistar um espaço na plataforma, no meio da multidão; agarra-se a uma correia, já despreza os que estão pendurados; conquista uma posição ainda melhor perdendo dois botões do sobretudo; perde também a mulher da sua vida, ao não desistir da luta; finalmente, está no interior, avança para um lugar sentado. Vejam este trecho, com o esplendor da precisão do poeta: "Os que estavam sentados, à minha volta, eram burgueses abomináveis. Apertavam aos corpos as suas espessas peliças, fortalecidos pelos direitos que adquiriram e de que não queriam ceder a menor parcela. Contentava-me com o que se me tinha dado. Fingia não reparar no seu orgulho mesquinho. Conduzia-me como um saco. Sabia bem que os homens, por instinto, odeiam os outros homens e que perdoam mais facilmente a um saco que a um dos seus semelhantes".
Não conto o resto da história, mas dá para adivinhar: ele conquista um lugar sentado à janela, símbolo do triunfo na luta diária pela impiedosa ascensão social.

Imagem: a senhora Kosztolanyi e o filho Adam, em 1923, num quadro do pintor húngaro Vilmos Aba-Novák   

sábado, 28 de agosto de 2010

Uma cena de ciúmes

Caros leitores: têm à vossa disposição, neste local, um conto sobre ciúmes. Decorre num bairro operário de Budapeste, em 1910, e baseia-se em histórias verídicas que se repetem ao longo dos tempos e em diferentes lugares. Pode também ser imaginação, não sei. É um dos contos de Lajos Kormányos, que já escreveu aqui posts e que tenho o prazer de traduzir do húngaro, apesar de não saber quase nada de húngaro.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A tecnofobia


Em Origem das Espécies, Francisco José Viegas lembra o recente aniversário do escritor americano Ray Bradbury. O autor fez 90 anos e foi citado como sendo tecnofóbico (algo ridicularizado no texto aqui linkado).
Para mim, Bradbury é a memória do fantástico filme de François Truffaut, Fahrenheit 451, de 1966, analisado aqui. Gosto de muitos dos seus contos, alguns de ficção científica, outros de fantasia, mais dos primeiros. Este A Sound of Thunder é particularmente impressionante. Também resultou num filme recente. Bradbury é um poeta e um sonhador, o mesmo que se pode dizer de Truffaut. Ele demonstra que o género literário não tem de ser um gueto de especialização. A ficção científica (FC) é essencialmente uma meditação sobre o presente, em demonstração por absurdo.
Um amigo dizia-me que a FC é de direita e o policial de esquerda. Apesar das generalizações tenderem a exageros grotescos, a observação é curiosa. Talvez porque as utopias têm a ver com a liberdade e as distopias com a sua ausência, a FC tende a ser bastante política. Na parte do policial já não concordo com a tese, pois vejo mais como um género pouco interessado em temas políticos.
Enfim, podia acrescentar outros elementos: a crítica ao excesso de tecnologia, por exemplo, parece ser um sábio alerta de Bradbury. Estamos tão embrenhados no mundo digital, tão distraídos com os nossos brinquedos, que progressivamente vamos perdendo a atenção pelo que nos rodeia.
A ciência já discute os efeitos deste tsunami electrónico no cérebro humano. As distracções constantes, a ansiedade relacionada com a expectativa de informação inútil impedem o pensamento profundo essencial para a poesia.
Por enquanto é uma teoria, mas está a ser testada: as máquinas podem estar a matar a poesia. 

sábado, 21 de agosto de 2010

O peru de Salinger


A retrete utilizada para os seus chichis e cocós pelo reclusivo J. D. Salinger está à venda no portal de leilões eBay por um milhão de dólares. A um olhar menos atento do leitor ou meu, a dita peça de porcelana parecerá igual àquela que temos na nossa própria casa, mas o vendedor promete um certificado de autenticidade incluindo número de série. 
Desde que fugiu da ribalta e se encafuou na localidade de Cornich onde viveu cerca de 50 anos, o autor desse livro tão do agrado dos fanáticos da conspiração que é "The Catcher in the Rye" foi envolvendo os habitantes da localidade na sua teia protectora. Quando o jornalista ou a fã indesejados chegavam com perguntas e pedidos de indicações, eram desde logo confrontados com o silêncio ou, na melhor das hipóteses, recomendações bem intencionadas para que dessem meia volta e desistissem da sua missão.
Tom Leonard, no entanto, não desistiu e terá mesmo registado as últimas palavras de Salinger proferidas a um jornalista, quando deu por ele do outro lado da janela de sua casa: "Oh não!".
A interjeição foi tudo o que Tom teve direito a ouvir do autor, mas logo compensou esse facto no artigo que escreveria com a história que lhe contou um frequentador da Igreja Unitária Universalista, recheada de úteis conselhos sobre o que fazer se porventura encontrasse Salinger num dos jantares de peru mensais da sua congregação, durante os quais o escritor dava várias vezes um ar da sua graça:
«Ninguém é suposto dar a entender que sabe que ele está ali». «Trate-o como se fosse apenas outra pessoa normal». «E não fale com ele a não ser que ele lhe dirija a palavra primeiro. Não gosta de conversa de chacha».  
Gosto de imaginar o esforço que J.D. faria para esquecer o seu misantropismo e percorrer os cerca de 15Km entre Cornich e a Igreja, apesar das sérias hipóteses de ser incomodado por um jornalista perseverante como Leonard. Devia pelar-se mesmo a sério por uma perna de perú. 

   

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Consultório do Doutor Benji 2

Doutor Benji, nao entendo o motivo que leva os humanos a gostarem de canídeos. Nao acha estranha essa relacao (Valente, Amadora)?
Sempre achei estranha. O macaquinho humano é um animal complexo, com emocoes básicas de grande variedade. E uma delas é o chamado masoquismo. Os humanos gostam de sofrer. Veja como seguem os seus caes, apanhando em sacos de plástico todos aqueles dejectos mal cheirosos. E devem cumprir o horário do animal, que nem sequer é inteligente e, como toda a gente sabe, nunca tem vontade própria e faz tudo o que lhe mandam, excepto cagar a uma hora diferente.
O meu dono tem a mania de me fazer aquilo que a que ele chama "partidas". Ontem, encheu a minha comida de picante Eros Piszta. Doutor Benji, que fazer? (Mirtzi, Budapeste)
Os macaquinhos humanos acham-se muito divertidos. E usam uma emocao, o humor, que nós, gatos, felizmente nao temos. Quando o seu dono persistir numa "partida" e desatar a rir, tente exercer uma retaliacao á altura, por exemplo, roendo os cabos do computador, fingindo que foram ratos a destruir os fios. O seu dono pensará que há uma infestacao na casa, atribuindo-lhe a tarefa de matar os invasores. Faca questao de nao matar nenhum, o que nao será dificil, pois nao haverá ratos a sério na casa. E quando roer os cabos do computador, nao se esqueca de que a máquina deve estar desligada da electricidade.
Doutor Benji: a minha dona nao pára de me dar festinhas na nuca. Por vezes, é agradável, mas quase sempre se torna excessivo, até porque sou uma gata. (Fifi, Porto)
Minha querida, a situacao pode, de facto, ser embaracosa, mas nao há muito a fazer. Para termos a vida que temos, sem sermos obrigados a enfrentar o mundo selvagem, precisamos de disponibilidade para algum sacrificio, como é o caso de darmos a ilusao aos macaquinhos humanos de que gostamos muito deles. Por isso, quando receber festinhas da sua dona, tente ronronar com conviccao.

Retirado de Vida Gatal 11, escrito num teclado para gatos

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A mão de Appolinaire



O magret de pato com mel e especiarias acompanhado por batatas salteadas é a 25.50€ no Les Deux Magots, Saint-Germain-des-Prés, Paris. Não é sítio que hoje se aconselhe ao comensal de tão turístico que se tornou, mas era aí que parava - entre outros lugares como o Lapin Agile ou a Closerie des Lilas - Guillaume Apollinaire, baptizado Wilhelm Albert Włodzimierz Apolinary Kostrowicki.
Numa biografia onde se torna difícil, por vezes quase impossível, destrinçar o ficcionado do factual, George Vergnes descreve um episódio passado em 1912 e envolvendo Appolinaire, a sua amada e então musa Marie Laurencin, Louise  Faure-Favier e Max Jacob. A certa altura, Max inicia uma ronda de leitura da sina nas mãos dos convivas, reunidos num jantar em casa de Appolinaire na Rue de La Fontaine. Até que chega a vez de Guillaume:  

«Os deuses chamam cedo a si aqueles que protegem - disse Max Jacob - Não foste tu que escreveste: os poetas têm o direito de esperar, depois da morte, a felicidade perdurável que o pleno conhecimento de Deus lhes assegura, isto é, a suprema beleza? Conhecerás cedo essa felicidade perdurável, Guillaume. Não entrarás nem na "Revue des Deux Mondes" nem na Academia Francesa. Vejo uma vida curta e a glória da tua morte. Vejo...
- Idiota!
E Max, evitando à justa a bofetada que Guillaume lhe destinava, esquivou-se. Enquanto Dalize e Billy se interpunham, agarrou-se à mão de Marie Laurencin. Fez o ar mais inspirado e anunciou:
- Você, Marie, conhecerá também a glória, mas em vida...Deixará em breve Paris, passará muito tempo no estrangeiro...partirá...oh! com o seu marido, porque vai casar-se brevemente... 
Max Jacob teve um tempo de hesitação e disse como se se lançasse à água:
- Vejo. Casar-se-á com...um jovem pintor!»

O relato descreve que, nesse momento, «a mão de Guillaume partiu e estalou na cara do profeta». Appolinaire morreria apenas seis anos mais tarde e Marie partiria, pouco depois desta sessão de quiromância, para o exílio em Madrid acompanhada pelo marido o Barão Otto von Waetjen, o qual ignoro se terá sido pintor. A 17 de Fevereiro de 1915, Marie assina como "amiga" esta oferta para Guillaume. Judeu, Max Jacob não sobreviveu ao campo de Darcy e morreu em 1944. Não sabemos se terá antevisto, nas linhas da mão, o seu próprio destino. 
    
Na imagem: "Guillaume Apollinaire et ses amis", óleo sobre tela de Marie Laurencin, 1909








sábado, 14 de agosto de 2010

No tempo do Grand Hotel



Na Praça Duque da Terceira, no lado oposto à estação de comboios do Cais do Sodré, existia outrora o Grand Hotel Central. Aí jantou Júlio Verne, em 1878, com o seu editor para Portugal David Corazzi e o amigo e banqueiro Jorge O'Neill. Mas a imortalidade do Grand Central ficaria definitivamente salvaguardada pelo relato de um jantar dedicado a outro banqueiro, aquele que Eça nos descreve em "Os Maias" elevando o repasto à categoria de retrato social de todo um Portugal inerte: 
"Ega teve uma conferência com o Maître d'hôtel do Central, em que lhe recomendou muita flor, dois ananases para enfeitar a mesa, e exigiu que um dos pratos do menu, qualquer deles, fosse à la Cohen; e ele mesmo sugeriu uma ideia: tomates farcie à la Cohen".
A ideia não seria aceite. Mas depois do vermute - "uma gotinha para o apetite" nas palavras de Dâmaso Salcede - "Um criado, entrando, acendeu o gás; a mesa surgiu da penumbra, com um brilho de cristais e louças, um luxo de camélias em ramos".
Depois das ostras, a sole normande. E entre esta e o poulet aux champignons, o banqueiro Cohen solta a frase que ainda hoje se mantém intacta na imutabilidade do desequilíbrio entre o deve e haver dos cofres públicos: "A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, falir o país...". Discute-se. O Ega grita: "Portugal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola". E, então, chega finalmente o prato de ervilhas num molho branco. São as petits pois à la Cohen. A bancarrota é esquecida, abre-se o champanhe e o Dâmaso declara o baptizado legume, como tudo o resto, "chique a valer".


A estratégia segundo Átila, o Huno

Átila achava que o povo Huno precisava de novos desafios e pensou em...
"...Foi entao que me surgiu a ideia de escravizar os ostrogodos, a ponto de lhes tirar o ostro do nome".
Os conselheiros de Átila ficaram pálidos e silenciosos. O imperador apontou para Álmos e deu-lhe a palavra:
"Na minha qualidade de conselheiro imperial", afirmou Álmos, "digo a sua preclara majestade que é preciso analisar esta problemática em todos os seus complexos angulos. A realidade tem múltiplas facetas e recomendo que seja formada uma comissao para estudar as implicacoes da escravizacao dos actuais ostrogodos e futuros godos, sobretudo do ponto de vista da paz internacional e da amizade entre os povos".
"Muito bem", disse o imperador dos hunos, antes de dar a palavra ao seu conselheiro Kund, que falou desta maneira:
"A reaccao dos mercados deve ser ponderada, ó magnificente figura. Quais as implicacoes para a divida soberana, como vao evoluir os spreads e o que acontecerá á nossa moeda face ao sestércio romano?"
Átila o Huno estava visivelmente impressionado com a qualidade dos seus conselheiros, a ponto de ter colocado outro problema:
"Roma nao quer pagar mais tributo e pensei em invadir a Itália. Sempre quis ter escravas romanas. Dizem que as mulheres latinas sao fogosas..."
"Ó magnifico ditador da classe operária", comecou Álmos, "temos de estudar as implicacoes dessa medida tao drástrica. Roma tem solidez ideológica, nao será o mesmo que esmagar os ostrogodos. Deviamos formar um novo ministério para ponderar a accao, mandar prender alguns contra-revolucionários e nacionalizar os meios de producao".
Foi a vez de Kund tomar a palavra:
"Pelo contrário. Temos de privatizar, desregulamentar e liberalizar. Escravizar mulheres latinas, ó espaventoso académico, vai aumentar o número de consumidores e de contribuintes, promovendo o crescimento da economia, mas também aumentará a divida externa, tornando mais dificil o investimento. E nao se esqueca de que ao sairmos para o estrangeiro estamos a fazer importacoes. Só nos restará proceder a um lamentável aumento de impostos, quando a economia precisa de menos impostos. E os mercados financeiros podem reagir mal á destruicao da bolsa de Roma. Podiamos antes diversificar o nosso investimento e, em vez de recebermos o tributo romano, há sempre a hipótese de apostarmos em especulacao nos mercados de futuros, por exemplo, comprando petróleo, que dentro de mil e quinhentos anos estará muito valorizado".

Átila ficou satisfeito com a qualidade dos conselhos que recebera. Decidiu nesse mesmo dia avancar contra Roma, mas nao sabia o estado das estradas até á fronteira. Álmos era o responsável pelo primeiro troco e Kund pelo segundo. O imperador dos hunos convocou os seus ministros e perguntou-lhes sobre as estradas.
Disse Álmos: "Ó, pilar da humanidade, a construcao atrasou-se devido á prudencia com que abordámos a tarefa. Criámos um empresa pública onde foi gasta a maior parte da verba, para pagar subornos e cargos inúteis na administracao. E os trabalhadores, como nao recebiam salários, roubaram os materiais".
"Nao faz mal", disse Átila, "Vamos a corta-mato na primeira parte do caminho, até chegarmos ao segundo troco".
"Infelizmente", atalhou Kund, "ó estratosférica personagem, isso nao será possivel, pois o segundo troco sofreu atrasos e revisoes orcamentais que encareceram tres vezes o empreendimento. As empresas privadas romanas que estavam a construir a estrada pedem brutas imdemnizacoes por quebra de contrato e o tesouro ficou comprometido por dez anos. A única saida será reduzir para metade o rendimento médio dos hunos, ou seja, impopulares medidas de austeridade".
O imperador pensou um pouco e concluiu:
"Está decidido. Vamos a cavalo. A paisagem é bonita".
Os ministros ficaram em extase:
"Que carisma, que capacidade de lideranca. É o melhor lider dos Hunos desde o século III antes de Cristo", dizia um.
"Se houvesse eleicoes livres, vencia facilmente", dizia o outro.

Retirado de Dez Licoes de Estratégia de Átila o Huno
Traducao de Luis Naves, que usou um teclado godo     

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O consultório do dr. Benji

Nao sei o que fazer, doutor Benji. A minha dona anda numa histeria, sempre ao telefone, á procura de namorado... (Lulu, Lisboa)

O importante, minha querida, é nao perder o controlo da situacao. Nunca se esqueca de que os macacos humanos, sendo espertos, nao possuem a nossa inteligencia. Em caso de emergencia use o meao-meao-rreerree, ao qual eles nunca resistem. E quando a sua dona encontrar um companheiro compativel da sua espécie, procure ignorá-lo completamente, até a macaquinha dizer ao amigo que a relacao nao é possivel "pois os gatos nunca se enganam no carácter humano", o que aliás é verdade. Mas convém nao exagerar: se a sua dona encontrar um companheiro incompativel com ela, finja que gosta muito do macacao.

Doutor Benji, o meu dono comprou um porquinho da India e deixou de me dar atencao. Que fazer? (Tonecas, Cascais)

Parece que a solucao é óbvia: despache o porquinho da India, mas de forma a que pareca que ele foi vitima de uma doenca contagiosa. Os macaquinhos pensam que nós nao sabemos abrir portas e supoem, erradamente, que os porquinhos da india estao seguros nas suas jaulas. Quando esmagar os ossos ao porquinho da india tente nao fazer muito sangue ou deixar rastos que possam ser detectados por uma equipa CSI. Nao se preocupe com as impressoes digitais. E nao se esqueca de que a pelagem destes animais pode sufocar um gatinho. O problema terá de ser abordado com prudencia e eficácia, de preferencia de noite. Ah, e nao se esqueca de fechar a porta da jaula.

Os meus donos dao-me sempre a mesma racao para gatos. É horrivel e industrial. Que fazer, doutor Benji? (Faisca, Lisboa)

É uma situacao insuportável. Liberte-se, utilize a máxima crueldade. Destrua algo que seja sagrado para os seus donos, por exemplo, o novo aparelho de TV em plasma. Considerando a programacao, está a fazer-lhes um grande favor. Outra hipótese é urinar no dispendioso sofá novo. Verá que vai sentir algum alivio. O protesto, naturalmente, garantirá uma alimentacao mais saudável, á base de salmao e frango. Nunca se esqueca de que é voce quem controla a relacao com os humanos. Eles estao ao nosso servico, nunca o contrário.

Doutor Benji
Retirado da revista Mundo Gatal, número 5, escrito num teclado para gatos

Panteísmo e morcelas


O episódio é contado por José Calvet de Magalhães em "Antero - A Vida Angustiada de um Poeta". Em 1863, Antero de Quental (então ainda estudante em Coimbra) foi viver para uma casa na Rua da Trindade, onde moravam também os irmãos Alberto e José Sampaio, Frederico Filémon da Silva Avelino e Eduardo de Andrade.
Numa tarde de estudos em conjunto, Antero cansa-se da leitura partilhada da sebenta e deita-se com as botas ainda recobertas de lama sobre a cama de José Sampaio, resmungando por diversas vezes: «Acabem lá com essa maçada!».  Como os amigos não lhe fizessem a vontade, ruma até à cozinha para assistir aos preparativos da ceia, que incluia sardinhas fritas e morcelas de Arouca. A partir daqui, reproduzo as palavras de Calvet de Magalhães:
«Acabado finalmente o estudo, juntou-se ao grupo Eduardo de Andrade, que estudava para o seu quinto ano noutro quarto, e chegou mais outro convidado, um primo de Antero. A ceia principiou por um excelente caldo bem quente, seguindo-se as sardinhas fritas, aguardando todos com impaciência as deliciosas morcelas de Arouca. Foi Filémon quem as provou primeiro para, fazendo uma careta, as cuspir logo, horrorizado, o que fizeram também os outros companheiros. Só Antero, impávido, comia, dizendo que lhe sabiam bem. Chamou-se a criada e foi-lhe perguntado o que diabo tinha feito às morcelas que sabiam tão mal. A pobre mulher respondeu:
- Eu, meus senhores, não sabia como isso se cozinhava. Nunca tinha visto dessas chouriças amarelas e quem as cozinhou foi o senhor Antero.
- Mas o que é que deitaram nas morcelas? - perguntou alguém.
- O senhor Antero - retorquiu a criada - depois de eu ter frigido as sardinhas, frigiu no mesmo tacho as tais chouriças, que os senhores chamam com esse nome!
Todos se lançaram em invectivas contra Antero, injuriando-o, mas este, muito calmo,  limitou-se a dizer:
- Sois uns tolos e com um bem esquisito paladar! Que importa que se misturem morcelas com sardinhas! Tudo é matéria. Ou bem que somos panteístas, ou bem que não somos!

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A lista telefónica

O professor Herzog decidiu, por brincadeira, memorizar a lista telefónica de Budapeste. A lista de 1935 era, apesar de tudo, um livro grosso.
Os amigos ficavam espantados quando acertava nos números. Liam um nome e Herzog dizia o número de telefone da pessoa. Aquilo impressionava muito, pois revelava a prodigiosa memória do professor, cujas investigacoes, aliás, nunca produziram grandes resultados.
Enfim, veio a guerra, depois o regime comunista. A universidade perdera muitos dos seus talentos, mas lá continuava o prodigioso professor que sabia de cor a lista telefónica de Budapeste de 1935.
Uma vez, chegou um comissário do partido e ouviu falar naquele caso e nao resistiu a fazer ele próprio um teste.
Pediu uma lista telefónica de Budapeste do ano certo e escolheu um nome. Disse-o em voz alta e Herzog acertou logo no número.
"Como é isto possivel?" perguntou o comissário.
"Nao sei", respondeu o professor.
"Só é possivel porque vivemos num pais socialista", sentenciou o comissário e, por um instante, ocorreram-lhe várias ideias para usar aquele talento de Herzog. Mas logo se lembrou que o velho professor memorizara a lista telefónica de 1935, que pertencia a outra era.
O conhecimento inútil do professor Herzog perdeu-se para sempre quando o académico faleceu, de uma banal pneumonia, aos 87 anos, já durante a década de 70, quando o regime suavizava os seus rigores.
Mas na universidade ainda hoje se fala na fantástica memória do professor que sabia de cor a lista telefónica de Budapeste de 1935.
As pessoas que contam a história enganam-se muitas vezes no nome e chamam-lhe Herceg, e Ferenc em vez de István. Alguns contam mal o episódio do comissário e transformam Herzog num anti-comunista, que ele nunca foi. Outros, enganam-se no ano da lista telefónica. 1936 aparece na maioria dos relatos.
Herzog nunca descobriu o que procurava. Julgo que era fisico e que tentava chegar a uma teoria cosmológica, fazendo cálculos que se perderam num estúpido incendio, em 1999, onde se perderam também muitos papéis da universidade e uma lista telefónica de 1935.

Lajos Kormanyos
(traducao do hungaro de Luis Naves)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A biblioteca improvável

Este número, ao qual cheguei pelo excelente blog de José Mário Silva, é verdadeiramente impressionante. Havendo 129 milhoes de livros no mundo, isso significa que há um livro por cada 50 pessoas vivas.
Se só contarmos o mundo industrializado, teremos talvez um livro para cada dez pessoas. Se a distopia Fahrenheit 451 se confirmasse algum dia, teriamos apenas nove cópias de cada livro, porque o décimo leitor seria um bombeiro destruidor de livros. Ou seja, cada livro seria uma espécie praticamente extinta.
Se uma pessoa culta conseguir ler dois livros por semana durante 80 anos, lerá mais de 8 mil livros na sua vida (estou a fazer a conta de cabeca) ficando a conhecer apenas um em cada 15 mil livros existentes (número redondo). Dito de outra maneira, a este elevado ritmo de leitura, seriam precisas mais de 15 mil pessoas para ler todos os livros existentes, num trabalho que demoraria 80 anos a concluir e se nenhum dos 15 mil repetisse uma única leitura de outro leitor.
Se em média, cada livro tiver 20 centímetros de espessura e se empilharmos estes livros, teremos uma torre com mais de 24 mil quilómetros. Se cada livro foi publicado com edicao de cem exemplares, dá para construir seis torres entre a Terra e a Lua.
O número calculado a um exemplar por livro equivale a 129 bibliotecas com mais de um milhao de livros cada uma. Mas se houvesse cem exemplares por livro, o número de bibliotecas seria de 12900.
   

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Chuva de Verao

Sobre a planície paira a sombra das nuvens de tempestade. As maquinarias agrícolas esperam, indolentes, que o solo possa suportar o seu peso.
A colheita está perdida, diz o campones.
Nada a fazer, acrecenta o outro homem.
Estao ambos sentados numa mesa melancólica do café de província. Olham o estranho (que sou eu) que entrou para pedir uma bebida e que iniciou uma conversa banal, sem se interessar verdadeiramente pelas suas vidas. Só queria evitar adormecer ao volante e parei ali, como podia ter parado noutro sítio qualquer.
Eles sabem que as perguntas sao para matar tempo, mas falam sobre a chuva de verao e eu penso nos pantanos que havia outrora em toda esta zona. As terras agrícolas foram conquistadas a insalubres territórios pantanosos onde se escondiam os fugitivos, como eu.
A drenagem é mais lenta na planície, digo, sempre a fazer conversa.
A gravidade joga contra o agricultor, acrescento.
Um dos homens faz um gesto de conteúdo incerto.
A bebida doce acordou-me. Pago, despeco-me dos dois homens com quem falei. Eles saúdam-me sem alegria e penso neles como figuras de um quadro antigo: dois camponeses a beberem cerveja tépida numa taberna de aldeia. A sala escura, os tons de pastel difuso, a janela a formar uma cruz, que ilumina parte da mesa e morre na parede ao fundo...
E que venha depressa o sol, ainda digo, já na porta.
Cá fora, está um calor abafado. As nuvens engrossaram e a brisa acelera. Caminho lentamente até ao carro e, dentro, espero um bocado, antes de accionar o motor. A minha fuga nao tem pressa. A bebida doce apenas suavizou um pouco daquele peso que já sentia no cérebro, do calor abafado, da electricidade no ar e da estranha humidade. Os meus pensamentos adormecidos parecem uma seara ensopada. E vai chover ainda mais. Em breve, haverá mais pantanos onde eu me possa esconder de mim próprio.

Lajos Kormanyos
(Escrito num teclado estrangeiro e traduzido do húngaro por Luís Naves)

domingo, 8 de agosto de 2010

No bazar de Bijapur

Que me importa que se percam as minhas memórias? Elas têm a consistência dos sonhos, da brisa morna, do pulsar das ondas preguiçosas que embalam dunas na praia.
Lembro-me do bazar de Bijapur, com as suas exóticas maravilhas: jóias de jagate, frutos extravagantes de Raichur Doab, especiarias de Vijayanagar e as roupas raras de Khwashpur. A rumorosa rua era uma paleta de cores, que mil linguagens confundiam.
Numa rua estreita, como era aquela parte do bazar, nunca vemos quem caminha na nossa direcção, até ao último instante, quando nos confrontamos com o estranho, sem alternativa senão olhá-lo nos olhos. Aconteceu assim: vi aquela mulher de repente, sem preparação, a emergir num oceano de gente. Vinha na direcção contrária à minha, vestida de verde (ou seria esverdeado, com tons de ocre pálido?) Era jovem, invulgarmente bela. Pareceu-me assim, de graça bondosa e pura, e tão suave como a mais transparente das águas tropicais. Desejei agarrá-la, reclamá-la para minha escrava, dizer-lhe que ela passara no momento errado, que transformara a sua vida; diria isso numa língua desconhecida que ela não poderia entender, pois compreenderia a emoção genuína.
Mas nada lhe disse. Apenas a olhei e ela sorriu. E, depois, passou por mim e desapareceu. Tentei fixar a sua imagem. Recriminei-me por não a ter perseguido, por não me desgraçar nos meandros daquela cidade estrangeira. E a lembrança dissipava-se um pouco de cada vez e eu lutava para a fixar, até que ficou apenas aquele sentimento avassalador que se perdera para sempre uma essência preciosa. Seria banal dizer que os olhos dela eram negros e o seu corpo uma formosura como nunca existira. Mas não me lembro se os olhos eram negros, se a cara era comprida e de que cor exacta era o sari e o véu que trazia a amparar-lhe o cabelo. Pormenores esquivos, que se misturam com os ventos contrários e todas as caras que observei nas minhas vidas, e os lugares que se misturam e os fios de tempo que se entrelaçam.
Desta memória breve ficaram fragmentos. Mas algures no tempo prossegue aquele momento eterno, numa vida paralela que se repete como a ondulação na praia. Apaixonei-me por uma mulher que vi num único instante, no bazar de Bijapur, e com quem cruzei o olhar como se cruzam espadas. Ou teria sido em Mascate que se deu esta pequena ilusão da fútil tragédia do existir? Ou num bazar do Cairo?

Fantasma

Maldito na própria casa


Há cerca de vinte anos, por detrás de uma prateleira de livros nihilistas numa livraria do Vieux Port em Marselha, encontrei uma cassete áudio bem mais antiga do que eu com a gravação de "Pour en finir avec le jugement de dieu/Para acabar de vez com o julgamento de deus" (assim mesmo, em letra minúscula). Até então nada me interessara a obra e tão pouco a vida de Antoine-Marie-Joseph Artaud, nascido ali mesmo em Marselha a 4 de Setembro de 1896. Mas, quando liguei o walkman, ouvi isto e muito mais ainda.
A história em torno da censura desta peça radiofónica é bem conhecida e, quem não a saiba, descobre todos os detalhes à distância de um par de cliques na rede. Mas na biografia do autor de "Heliogabalo" há uma noite de Junho, em 1937, cujos acontecimentos me impressionaram bem mais. Uma noite que apenas li relatada - e mesmo assim en passant - no livro de Sthephen Barber.
Nesse período, Artaud "le Momô" estava finalmente em Paris, fora do confinamento no asilo de Rodez, de onde saira marcado até ao ponto de todos os dentes lhe terem caido sob o efeito traumático dos sucessivos electrochoques. Aos poucos vai recuperando alguma vida social e revê, entre outros, o seu rival de estimação André Breton.
É então que Roger Blin organiza  um sarau em sua homenagem. Todos os amigos e conhecidos de Antonin, incluindo uma das suas "filhas" do coração, Colette Thomas, estão presentes e interpretam obras suas; "Fragmentações", "As Novas Revelações do Ser"...Mas Artaud, o próprio celebrado autor Antonin Artaud, é impedido de assistir com o argumento de que poderia sofrer a experiência como demasiado chocante.
É certo que entre o sarau e um leilão, também efectuado dias depois, Breton, Adamov e outros angariaram cerca de um milhão de francos em benefício de Artaud. Mas esse momento, essa noite em que o homenageado foi impedido de comparecer num dos pontos mais altos da sua maldita e insólita carreira, no espectáculo que era seu, esse sim, é para mim um choque.



sábado, 7 de agosto de 2010

Amizade e costeletas com ovos


Num dos seus apontamentos, Erik Satie recorda os jantares em casa de Claude Debussy. Debussy preparava ele mesmo e em segredo deliciosos ovos e costeletas de carneiro que acompanhavam com um bordéus branco e a conversa de amigos de longa data.
Leio neste momento "A Armadilha de Medusa" mas o pensamento foge até ao número 56 da Rue Cardinet, no 17e Arrondissement. A rua atravessa o Boulevard Pereire, onde dormi umas noites em anos que já lá vão. Quero acreditar que passei junto à janela da mesma sala onde - em 1902 - Satie e Debussy comeram tantas vezes juntos. Claude partilhando animadamente o trabalho com "Pelléas e Mélisande", que estrearia no ano seguinte. Erik falando das suas "Três Peças em Forma de Pera".  Ou de como o velho deveria ceder o lugar ao novo, entre insultos à Academia.
Em 1905, Satie escreveria: «Sou um artista pobre que vive cheio de dificuldades». Mas por maiores que fossem não acredito que os ovos e costeletas do amigo lhe tenham alguma vez faltado. Ou esse bordéus que descreveu como «delicioso, com efeitos impressionantes e que nos dispunham, como era desejável, às alegrias da amizade».
(Na imagem, "Satie chez Debussy". Fotografia tirada por Igor Stravinsky)

Tudo é assunto

− Ah! És tu, fantasma?

− Serei eu, exactamente? E se sou, o que significa isso? Talvez eu seja uma espécie de sonho teu…

− Pareces bem autêntico. Pelo menos mais concreto do que esta mancha de luz. Vês? O ecrã do computador continua vazio. Não consigo escrever uma linha. Não tenho assunto.

− Mas tudo é assunto. Os jardins suspensos da Babilónia, as ilhas mágicas, as viagens em balão, as miragens de Forte Zinderneuf, a selva e as suas consequências, as cidades de cristal e cada retalho de vidas imaginárias.

− Podia escrever sobre ti, fantasma, mas és imaterial. Nem sei como consegues morar num sítio tão acanhado…

− Sabes onde moro?

− Sim, atrás das estantes com livros, numa fenda minúscula do estuque, são no máximo três milímetros de largura…

− E isso é pouco? Como disseste, e bem, sou imaterial, portanto para mim esse é um espaço infinito. Maior, certamente, do que o teu apartamento de 60 metros quadrados, que quase cabe num ponto final parágrafo.

− Um pouco apertado, não é? Isso aperta-me a alma e também a minha solidão, que deve ser parecida com a tua.

− Ninguém vive sozinho, desde que tenha os seus sonhos e memórias.

− Terás alguma razão! Vou fumar um cigarro para a janela, pensar nisso que disseste. Deixo o computador ligado, talvez te apeteça escrever.

− Sei que agora estavas a ser cínico, Luís Naves, porque nunca te disse que nós, os fantasmas, podemos por vezes criar emanações quase corpóreas, acho que chamam a isso ‘protoplasmas’. E as citadas entidades podem accionar botões, teclas e certos objectos do mundo que habitas. Vai, pois, até à janela pensar, e deixa-me o computador ligado.


Fantasma


sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Adivinhem quem não foi ao jantar



Os donos do Vesuvio recordam apenas parte da história: Depois da leitura de "Dharma Bums/Os Vagabundos da Verdade", Henry Miller fez saber por amigos comuns a Jack Kerouac que gostaria de convidá-lo para jantar.
O encontro foi preparado por Miller ao milímetro. Era uma ocasião rara para esse momento social em jeito de tertúlia, durante a qual, como é dever do Mestre,  passaria o seu estandarte ao jovem em ascensão. Kerouac vivia então dias de extremo mediatismo, lidando muito mal aliás com o facto. Bebia como se não temesse que o fígado lhe rebentasse, o que acabaria literalmente por acontecer a 21 de Outubro de 1969.
Mas agora estávamos em 1960, nessa tarde em que Jack decide haver tempo para uma conversa ou duas no Vesuvio antes da viagem até à casa de Miller em Big Sur. A conversa ou duas transmuta-se em duas bebidas, as duas em tantas que nem os homens do Vesuvio registaram a conta. De meia em meia-hora trocam-se chamadas telefónicas entre Jack e um amigo dos que o aguardavam para jantar: "Estou quase a sair", "É mesmo o último copo", "Ainda é cedo, apanho um táxi e estou aí em minutos". Kerouac dizia aquilo que dizem todos os alcoólicos. O mesmo que outro Jack antes dele, de apelido London, levado ao suicídio por aquele demónio com corpo de centeio a que chamava John Barleycorn.    
Regressemos a Big Sur. O jantar termina sem o autor de "On the Road/Pela Estrada Fora". Miller teve a sua festa estragada mas Jack, uma vez fechada a porta do Vesuvio, insiste em honrar o seu compromisso. Talvez tenha perdido o sentido das horas. Talvez estivesse nas tintas para que horas seriam mas uma coisa é certa: Só por pura serendipidade o táxi encontra numa noite escura como breu a casa de Miller e larga Kerouac frente ao relvado. Relvado esse onde cai ou decide deitar-se, as opiniões divergem. Onde todos concordam é que, na manhã seguinte, ainda lá estava deitado.

O senhorio

Apesar de estar esquecido, Robert Graves (1895-1985) era um escritor muito interessante. No início dos anos 80 esteve na moda por causa da série de televisão Eu, Cláudio, aliás uma das mais fantásticas que já vi, fazendo inteira justiça ao livro. O seu Belisário também é muito bom.
Graves era poeta, mas vivia da prosa e especializou-se em romances históricos. Escrevia também contos em revistas. Um desses contos, publicado nos anos 60, O Senhorio, Visão da Roma Imperial, é uma brilhante paródia aos seus romances sobre o imperador Cláudio. Trata-se da história de um dia na vida de um senhorio romano, um homem rico que nos conta as suas actividades. O texto tem um fim surpreendente (mas que grande surpresa!), personagens riquíssimas, a cultura clássica sólida do autor, mas também o interesse contemporâneo, pois os problemas humanos não mudam. O conto é simples na construção e tem uma fina ironia em crescendo, mas subtil e de grande efeito. O imperador Cláudio aparece na história, numa cena meio bizarra que funciona como um piscar de olho do autor aos seus leitores mais fiéis.
Neste conto, e julgo que isso se aplica à obra de Graves, o detalhe histórico é um cenário que disfarça observações e experiências autênticas. O autor nunca esteve em Roma, mas a sua prodigiosa imaginação permite-lhe viver a vida do senhorio Egnatius, que é diferente dele, Robert Graves, mas que é também igual, pelo menos fisicamente, igual a um Graves mais novo, talvez dos seus 30 anos; mas semelhante no humor, na hostilidade, no nojo, na displicência, na invenção, na mundanidade, no cinismo e nos pequenos ódios. Nas emoções, enfim, que eram do mundo romano, mas que também podem ser nossas.   

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Momento de quase satori

Enquanto leio sobre Houei Neng, o 6º Patriarca, e o Maha Prajña Paramita - A perfeição da Grande Sabedoria - ouço as vozes com a pujança de camionistas dos transexuais brasileiros com mamas do tamanho de asteróides vindas do outro lado da carruagem. À minha frente, estendendo as pernas com o comprimento da mais longa das linhas do metro de Moscovo, a russa loura gira ri-se para a russa loura feia e pergunto-me se entenderão alguma palavra que seja do que eles dizem . Talvez "gostoso".
Penso em como a minha vida é tão mais divertida por insistir em não ter carta de condução e viajar de comboio todos os dias.Faço minhas as palavras de Tong-Chan Lian-Chieh:
"Ó, verdade inefável!
Se tentarmos captá-la com os ouvidos,
Nunca a  compreenderemos.
Ouvindo-a com o olho,
Conhecêmo-la verdadeiramente".

...pois então...

Tolerância zero

Tolerância zero para o meu mau-feitio.

Tolerância zero para este calor dos infernos, a noite de insónia, o sufoco, a falta de ar e o batuque que não me deixou dormir, mais o pijama banhado de suor. Sim, porque eu sou um daqueles que também dormem de pijama e que, quando acordam, o dobram cuidadosamente, para poderem simular a sua vida insuportavelmente perfeita.

Tolerância zero para os pomposos e as mulheres bonitas que sorriem a todos os homens feios, menos a mim; detesto os feios e os gordos como eu, mas acima de tudo tenho desprezo pelos que são graciosos, os magros e bronzeados, os nadadores-salvadores a quem as mulheres formosas gostariam de poder dirigir um sorriso, embora não o façam por timidez.

Já falei dos pomposos, que detesto, mas também não suporto aquelas pessoas espaventosas sempre com palavras caras na ponta da língua e desenvoltura perante as câmaras de tv, e as imponências flatulentas e as bazófias ventosas, cheios de falta de ideias e de um género de vazio do pensamento que mais parece um estômago à beira de explodir; gente sem fantasia, à excepção da fatiota que não joga, própria para fracas figuras que se presumem mentes caricatas e bem reflectidas no engenho da estupidez.

Tolerância zero, pois, para a banha lassa, o restaurante refrigerado e rumoroso, incluindo a comida a cheirar a fritos. Detesto sorrisos a colagénio, os chefes e os chefes dos chefes, a fadiga gasta e os nervos frouxos. O pedante que palita os dentes com sapiência.

Estou de tolerância zero para o medo e também para o cagaço tépido e o simples receio medíocre. Não há mais lugar para a complacência, nem sequer para a paciência, o que me deixa sem tolerância para maus-feitios insuportáveis, como é o meu.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Questão de gosto

Discordo da opinião sobre o livro do autor chileno, mas claro que é possível não gostar de Bolaño, como escreve Duarte Calvão, neste post. No entanto, a conclusão que João Távora acrescenta não é a melhor. Se os nossos antepassados, há cem anos, tivessem pensado da mesma forma, hoje não haveria literatura com cem anos. Se ninguém tentar ler os autores contemporâneos, não haverá autores contemporâneos; e os leitores daqui a cem anos não terão nada para ler, excepto escritores com 200 ou 300 ou clássicos com mil anos, o que não seria mal, não fosse o deserto criado no nosso tempo. Nenhuma reflexão sobre nós, os que vivemos agora?
E assim por diante. Entre a literatura que se escreve hoje, há livros bons e livros maus. É semelhante ao que aconteceu em outras épocas: os livros bons são raros e os menos bons mais frequentes. Mas os gostos não se discutem passados apenas cem anos, eles discutem-se hoje e vão discutir-se amanhã. E o prazer está em procurar os livros raros que nos podem tocar e surpreender, com cem anos ou um, até encontrarmos aquele livro único que foi escrito só para nós.

Um andróide com dúvidas

Uma ideia terrível que se tornou mais tarde a imagem de marca de Philip K. Dick surge pela primeira vez num conto do autor americano, chamado "O Impostor", publicado em 1953 na revista de ficção científica Astounding. Trata-se da história de alguém a quem acusam de ser uma máquina que transporta uma bomba e que tem a memória de um cientista, entretanto morto e substituído. E esta máquina tem todas as emoções da sua vítima e está programada para explodir ao dizer certa frase. No final, constatamos que a frase detonadora é a constatação da não humanidade, algo que só ele pode afirmar. O pior é que o andróide ama e tem medo e quer sobreviver. Ele é o cientista e julga que todos os que o perseguem se enganam, ao acharem que é uma máquina a tentar destruir a Terra.
A ideia foi mais tarde desenvolvida para múltiplas personagens cuja memória manipulada cria uma profunda paranóia. O mundo vira-se contra o indivíduo e este começa a duvidar do seu passado. A realidade é formada de múltiplos pontos de vista, todos eles ambíguos, como num caleidoscópio cujos efeitos de luz transformam o que era suposto ser a verdade numa assustadora incerteza.
O curioso é que esta ideia fantástica, que a literatura desenvolvera já na década de 50, mas num gueto de género, só 30 anos mais tarde entrou verdadeiramente na cultura popular, através de filmes inspirados na obra de K. Dick.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Experiência

Esta seria a minha primeira experiência. Não quero abusar da paciência de ninguém. Este blogue serviria para uma espécie de diário pessoal, mas um diário público é um absurdo. Nunca confessamos os nossos pensamentos mais íntimos, antes os disfarçamos numa sucessão de vidas paralelas, como se tivessem deixado momentaneamente de ser os nossos. Seria cruel escrever a verdade. Ou não será esta a essência da literatura, habitar outras existências, como fazem os actores, mas sem sermos nós? Criar universos que não sendo os que nos rodeiam, diferindo subtilmente destes, não resultam apenas da nossa fantasia? É isto que tentarei fazer aqui: imaginar, observar, relatar experiências, embora quase nunca parecendo isso, disfarçando o autobiográfico com a camuflagem do ponto de vista. E juntar todas as emoções num catálogo, num almanaque apropriado.