segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O fim

Começo pelo fim.
Começo ciente de não saber dizer, do fim, onde começa ou onde acaba. Começo confusa como em criança, diante do primeiro livro sem bonecos, ao ouvir "Agora nada de ires ver o fim.."
O fim? Qual fim? Salto a capa do livro, cheio de personagens que ignoro, jogadas em enredos que sobrevoo a jacto directamente das palavras do adulto para uma busca desenfreada: Ah não é para ler o fim?
Procuro-o numa curiosidade urgente, com critério e coragem, atrás do sofá pequeno disposto de esguelha junto à janela da sala de visitas. Procuro-o nessa tarde nesse livro sem capa, título ou princípio, como depois noutros livros com e sem bonecos. Procuro-o noutras tardes, noutras idades e cidades, nos meus cantos preferidos das casas onde vivi e, enquanto vivi longe, em cantos alheios onde não me perdia nem me escondia. Procurei-o, por acaso e sem autorização, nos livros de amigos, de namorados e conhecidos. Nas histórias dentro da minha história, o tempo levou-me à procura já não dos fins, mas de exemplos que desmontassem a certeza daquele princípio de leituras, num livro ainda folheado confusamente aos últimos pingos de luz do dia:
"Agora nada de ires ver o fim" é o cuidado adulto mais infantil. Ninguém corre o risco de anular o magnetismo da leitura galgando sofregamente direito ao fim. Não saberíamos onde poisar essa pegada de gigante enjoado do presente. Não há pontaria capaz de acertar no fim à distância. Não estão inventados gps para os desfechos.
Não podemos saber se o fim está na última página ou na última frase. Ou nas duas últimas frases. Ou a partir do início do último capítulo. Talvez na primeira linha da primeira página, ou algures a meio do volume, se o autor aposta em anacronias? Não sabemos, às vezes o autor sabe, eu não sei.
Eu sei que o pano cai quando passo a mão pela contracapa. Sei que a ficha técnica já desliza lentamente quando reclino a cabeça para trás e desfoco o olhar. Mas para ouvir o último suspiro da história eu não tenho hipótese de usar uma tele. Eu sou o batedor. Tenho de aceitar a lentidão da imagem revelando-se na penumbra de laboratório fotográfico, ou sujeitar-me ao embate de um fim salteador num troço do caminho quando menos espero.
De uma forma ou de outra, estamos seguros. Não há perigo de frisarmos o sagrado fio da história com a brasa da impaciência.
Num livro (e na vida, tão nossa como tão pouco nossa, o que nada interessa aqui), nunca sabemos onde começa, por isso não sabemos onde está, o fim. A única certeza é a surpresa.

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