domingo, 8 de agosto de 2010

No bazar de Bijapur

Que me importa que se percam as minhas memórias? Elas têm a consistência dos sonhos, da brisa morna, do pulsar das ondas preguiçosas que embalam dunas na praia.
Lembro-me do bazar de Bijapur, com as suas exóticas maravilhas: jóias de jagate, frutos extravagantes de Raichur Doab, especiarias de Vijayanagar e as roupas raras de Khwashpur. A rumorosa rua era uma paleta de cores, que mil linguagens confundiam.
Numa rua estreita, como era aquela parte do bazar, nunca vemos quem caminha na nossa direcção, até ao último instante, quando nos confrontamos com o estranho, sem alternativa senão olhá-lo nos olhos. Aconteceu assim: vi aquela mulher de repente, sem preparação, a emergir num oceano de gente. Vinha na direcção contrária à minha, vestida de verde (ou seria esverdeado, com tons de ocre pálido?) Era jovem, invulgarmente bela. Pareceu-me assim, de graça bondosa e pura, e tão suave como a mais transparente das águas tropicais. Desejei agarrá-la, reclamá-la para minha escrava, dizer-lhe que ela passara no momento errado, que transformara a sua vida; diria isso numa língua desconhecida que ela não poderia entender, pois compreenderia a emoção genuína.
Mas nada lhe disse. Apenas a olhei e ela sorriu. E, depois, passou por mim e desapareceu. Tentei fixar a sua imagem. Recriminei-me por não a ter perseguido, por não me desgraçar nos meandros daquela cidade estrangeira. E a lembrança dissipava-se um pouco de cada vez e eu lutava para a fixar, até que ficou apenas aquele sentimento avassalador que se perdera para sempre uma essência preciosa. Seria banal dizer que os olhos dela eram negros e o seu corpo uma formosura como nunca existira. Mas não me lembro se os olhos eram negros, se a cara era comprida e de que cor exacta era o sari e o véu que trazia a amparar-lhe o cabelo. Pormenores esquivos, que se misturam com os ventos contrários e todas as caras que observei nas minhas vidas, e os lugares que se misturam e os fios de tempo que se entrelaçam.
Desta memória breve ficaram fragmentos. Mas algures no tempo prossegue aquele momento eterno, numa vida paralela que se repete como a ondulação na praia. Apaixonei-me por uma mulher que vi num único instante, no bazar de Bijapur, e com quem cruzei o olhar como se cruzam espadas. Ou teria sido em Mascate que se deu esta pequena ilusão da fútil tragédia do existir? Ou num bazar do Cairo?

Fantasma

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