sábado, 14 de maio de 2011

Sonhos tortos



Chovia copiosamente quando o palhaço se deteve no início da zebra. Pouco habituado a que parassem, dava um passo de cada vez, alternando entre o branco e o negro com os seus dois enormes sapatos vermelhos abatatados, escondido pelo guarda–chuva verde gigante que mais parecia um chapéu de praia. Mas o carro fez sinal de luzes quatro vezes, enquanto fumegava dos faróis e batia o pára–brisas como um par de asas despidas. Insistiu parado que tinha tempo e continuou a acenar na direcção dos ramos de árvore reflectidos no vidro, para que o palhaço avançasse à vontade sem hesitar. Uma rapariga altíssima vestida de negro, de tez de oiro e cabelos em chamas, acercou–se da passadeira no lado oposto da rua, junto a uma carrinha branca onde um homem arredondado descarregava caixas de madeira. Pode ter sorrido, ou piscado o olho levemente, quem sabe soprou um beijo na direcção do condutor, que a seguiu com os olhos todos, a cabeça virada, o corpo erguido do assento, e o pé caiu tenso num pedal qualquer, sem ver a frente, sem sentir o balanço, a explosão do motor. Talvez guiado pela expressão grave que sobre ela se abateu, guinou o carro para a direita em último recurso, sem saber em que pedal carregou a fundo com os dois pés, enquanto o ocupante da zebra virava o chapéu verde para baixo, como se este fosse um escudo de ferro maciço. Assustado, o comerciante largou uma das caixas que carregava e fez rebolar diversas dúzias de laranjas pela estrada, em todas as direcções, como um bando de pássaros que ouve um tiro. Caprichosa, uma das peças de fruta desviou–se de uma poça demasiado funda e foi aninhar–se sorrateira debaixo do pé de apoio do homem. Incapaz de a chutar para canto, sem mãos livres para se agarrar, estatelou–se no chão molhado. Em aquaplaning e a patinar aos rodopios como uma ventoinha de tecto, o utilitário urbano metalizado de cinco portas e tecto de abrir passou por cima de ambas as pernas do palhaço, seguiu a fazer sumo de laranja aguado para finalmente se deter num candeeiro alto e grosso que piscou duas vezes e fundiu, antes de rasgar o toldo da mercearia, a caminho do comerciante inerte no alcatrão.

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